sábado, 21 de novembro de 2015

CRÔNICA DE PEDRO SALGUEIRO

O poeta Passarinho







“Se o olhar
se demora
sobre a beleza


perceberá
na pura luz
a aspereza.”

(A lupa, de Breviário)

Desde 1994 escuto falar em Carlos Nóbrega, quando ele venceu o prestigioso Prêmio Minas de Cultura e, por conta disso, saíram alguns poemas seus nos jornais. Lembro que andei procurando pelo autor daqueles versos arretados, depois desisti, imaginando mais um dos nossos que foram pro sul para nunca mais voltar. Após muito tempo, o irrequieto Jorge Pieiro, no meio de uma conversa, me indagou:

— Tens visto o poeta Nóbrega?

No que respostei:

— Procuro há séculos, mas já desisti!

Então segredou que o misterioso bardo trabalhava no mesmo prédio que eu, logo ali na agência bancária de minha repartição (seria, juro!, o último local onde procuraria um poeta); não necessitava nem perguntar, bastava seguir “um baixinho de careca luzente que anda bem ligeirinho”. No dia seguinte fui (de posse desse infalível retrato) “campear” o recluso versejador. Mas que surpresa, não só o encontrei facilmente, como constatei que convivera com ele por quase uma década; e – pasmem! – sentia até certa raiva do sujeito: pois sempre que ia ao banheiro dava de nariz com a fumaça de seus muitos cigarros: enquanto procurava aquele inventor de quimeras eu já o havia amaldiçoado diversas vezes.

Passei a ser seu amigo e leitor: sempre dividimos mesas de bar (com os famigerados Poetas de Quinta) e arquibancadas de campos de futebol, fanáticos que somos pelo glorioso Tricolor do Pici. E apesar de circular pouco entre escritores e de fugir dos holofotes (nem a pau dá entrevistas, lança livros ou participa de eventos literários), ele publica até com regularidade; desde a última década do Século XX, editou: A Sono Solto, Outros Poemas (Prêmio Osmundo Pontes/ACL), Breviário (Prêmio Emílio Moura), Árvore de Manivelas, O Quanto Sou, 8Verbetes (Prêmio Gerardo Melo Mourão/Ideal Clube), Lápis Branco e Canto Aceso.

Seus livros estão sempre ao alcance da mão: basta a tristeza (e/ou a burrice) um dia me assaltar que fisgo qualquer verso ao acaso e, de imediato, me sinto mais lúcido, mais humano; volto a acreditar que a sensibilidade vai, finalmente, triunfar, que a beleza logo, logo reinará neste nosso mundo tão tosco.

E não é que este vate escorregadio, tímido, de voz atropelada, sempre a escapulir da fama, completou no último mês de outubro, já 60 anos. Mas não parece, pois o espreito sempre em suas andanças de menino inquieto (até caxumba por esses dias pegou), maquinando alguma travessura: ontem mesmo o avistei de longe, sua carequinha subia os infinitos degraus do prédio em que mora seu companheiro de traquinagens, o Poeta de Meia-Tigela. Carregava uma velha mochila de colegial, dentro talvez arraias, ioiôs, triângulos, bilas, piões e, bem creio, variados sonhos!

“Já tão velhinho
o velhinho
que não envelhece
mais –
Se dissipa
em cabelos e olhares
vai no vento
como os jornais.”

(O vento, de Breviário)

(Jornal O POVO, edição de 21/11/2015)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

CINCO ESPELHOS E MUITAS DESIMAGENS

                                                           


Batista de Lima


“E5pelhos” é uma antologia com cinco poetas. O primeiro deles, Carlos Nóbrega, desdiz-se. Não é nada. É apenas feliz. Como árvore embriagada de vento, ele se embriaga de poesia. Sua paixão lembrada é a moça da lata do Leite Moça. Na vingança dos espelhos, estampa-se a ausência de Borges. Para não ser como duna que dura algum vento, ele se poemiza pétreo à beira de um zodíaco, esperando um trem antes do trilho. Como herança para algum póstero, ele leva, como prenda, três batatas e uma felicidade. E se até o coqueiro enlouquece com o vento, quem será ele para não desenraizar-se montado nos panos de sono, todos sujos de sonhos? Carlos Nóbrega tem um boi incomodado que berra no seu cinto, se contorce no casaco, mexe-se no prato quente para lhe dizer que também tem alma. Entretanto, foi no dia em que pintou de palavras sua página branca que sua inocência fugiu envergonhada. Esse poeta ferrado pelo vento leva nos ossos a inscrição CN, tu és poeta, e sobre este abismo em que caem as horas, plantarei minhas trombetas para que anuncie a ressurreição dos versos.

Frederico Régis é um poeta desbiografado. Seu verso é seu exame de sangue. Quando apresenta o poema “Curatela”, abre as comportas dos açudes que carregamos e os faz sangrar pelas janelas de nossas almas. Pungente e belo, dorido de um lirismo avassalador, é o melhor poema da coletânea. Depois, para completar, nos oferece seus avós nos semblantes de seus tios, numa lanterna sobre a mesa, numa bengala sobre a praia. Que poeta memorial! Mesmo arrependido pelo que não fez, imagine se tivesse feito. Depois sai a perguntar: “Onde será que te guardei?” Frederico Régis é poeta das dimensões da memória, a reconstruir compartimentos. Seu inventário poético é de quem não foi criança em vão.

Jorge Furtado é poeta itinerante. Transita pelo corpo da cidade como quem vasculha quartetos de um poema. Sangra pelas bribocas do poema como quem se esvai pelos escoadouros do Pajeú, do Cocó e do rio Ceará. Seu destino é o grande estuário desse paiol que é o poema. Avulso como papéis soltos, o vento que ainda resta é seu guia. No pântano de incógnitas com que se depara vai plantando mudas poéticas como quem povoa solidões. Nesta selva, o único transeunte a quem ignora é o tempo. Aos outros oferta versos como quem oferta lares. Nos seus sonhos bocadioonisíacos, Alcides Pinto lhe oferta musas. Ante o espelho, saltita o menino que um dia foi.

Lúcio Cleto biografa-se com a palavra e o traço. Sua poesia não se conforma em ficar apenas enclausurada na palavra. Ela salta do verso e cola nas paredes semióticas do mundo das coisas. Seus poemas experimentais são ávidos de dimensões. O símbolo e o ícone bifurcam-se para que o grito lírico seja crucificado na tela. Surreal é a sua criação. Do sonho à montagem, cada um dos seus murmúrios vem binário e triádico. Linguístico e semiótico esse poeta busca uma terceira dimensão do que produz. Nada para ele está definitivo. Tudo flui e reflui. Há uma correnteza, um fluxo de mensagens que se sobrepõe para dizer “ecce Cletus”.

Por último aparece o Poeta de Meia-Tigela, ou o Poeta de Tigela-e-Meia, ou Alves de Aquino, querendo distar-se do que o cerca. Começa sonetando natalynicamente em quatro estações. Suas meditações lhe meditam, afinal filosofia e poesia lhe atravessam, apolíneo e dionisíaco respectivamente. Seu amor pançudo vive da própria fome. Sua heroína, “Tia Ioiô”, desviveu para dar vida a seu melhor poema, sua culminância poética. Sua poesia tenta nos salvar a todos doentes de entulho. Esse poeta, quando transita por esses ínvios caminhos poéticos, sempre encontra alguns rostos impressos e desertos, algumas lágrimas neblinando sobre um espinho que lhe perfura entre a unha e a carne.

De tanto se perguntar, Alves de Aquino não sabe de quem são os olhos com que vê. De tanto se ver, termina por não se conhecer. Não se acha parecido consigo mesmo, para desventura dos espelhos. Tudo isso quando passa, e o poeta põe os pés em algum chão, ele metazoa zooludicamente à moda Manoel de Barros, “passarinho / nota musical / emplumada (…) cachorro / espanador / que late.” Também quando se refere ao cavalo, ele afirma que o animal “sofre espora / não despiora / só desmelhora”. Ainda passeando pelo reino animal, impressiona-se ao ver “o leão leonar / o jacaré jacarelar e o peixe-espada / espadanar-se”. Tudo isso comprova que esse poeta tigelado desmantela a linguagem e depois lhe dá uma nova ordem.

O Poeta de Meia-Tigela conclui-se no Departamento de Sonhadoria. Ali, quando a sombra ameaça anoitecer sua alma é porque a solidão quer lhe passar cadeado. Terminando seu contingente poético, Alves de Aquino nos oferta um poema piada da mais bela feitura. E é assim que essa seleta se encerra. O quinteto que espicha seus poemas ao longo da nossa leitura, nos põe em alerta diante do fazer poético. Poesia é linguagem, artesanato sofrido. Esses brinquedos verbais necessitam de experimentações. Coragem e sofreguidão se aliam nesse parto. Esses cinco poetas quebram seus espelhos para nos mostrar suas faces estilhaçadas e nos convidar para, na companhia de cada um, tentar rearrumar esse mundo que desmantelaram.        
                                                      
(Publicado no Diário do Nordesteedição de 17 de novembro de 2015)


                                                                             jbatista@unifor.br