quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


                                              
                                                  Eu. Ele.
Ele aproximou-se do carro e ofereceu-se para lavar o vidro. Sem olhar, eu fiz que não com o dedo. Ele insistiu, a fala penosa, com fome. Eu disse que não tinha moeda. Ele disse: “Doutra vez o senhor me dá”, e molhou o vidro, com raiva. Fiquei sem ação diante da ousadia. Ele sorriu, com fome, e continuou. Balancei a cabeça, sem ter o que fazer ou dizer. Ele concluiu seu trabalho e ficou parado, fitando-me, com raiva. Encarei-o. Levantou o polegar e sorriu de novo, com fome. Atirei-lhe duas moedas, ele agradeceu e se afastou como se nunca me tivesse visto.
O sinal abriu. Eu fui para casa. Ele ficou lá. Com raiva e com fome. Com raiva e com fome.
Do livro Mundo dos vivos, de Carlos Roberto Vazconcelos.



                                               Chuvantiga


Seria uma crônica sobre a chuva? Mais uma, dentre tantas, não fosse o fato de que, ao entranhar a lembrança no pensamento, senti chover-me no peito a chuvantiga. A quedar-me assim, comecei:

Numa das ruas do Monte Castelo, seguia um barquinho de papel a correr-lhe pelas águas frias das coxias. Sem pressa, sem pressa, chuá, chuá, imaginava: todas as aventuras do mundo cabiam naquele barco a desmanchar-se lentamente enquanto vaguejante por sobre um céu baço que parecia, na meninice, ser tão grande.

Nas calçadas, buscando bicas, outros meninos e meninas saltavam felizes a tiritar, braços cruzados ao peito, inda livre, crentes na simplicidade de uma vida a viver ainda distante e muita.

À praça redonda, as peladas nas areias corriam entre pernas ligeiras. Os menores piscinavam no antigo chafariz coberto em mosaicos vermelhos que nem vi crescer, assim como aquelas crianças.

Em volta, pretos guarda-chuvas cumprimentavam-se com bons-dias domingosos; o peixeiro a cantar para as freguesas aos portões; encimando os muros baixos, verdes em limbos, as buganvílias, afirmando um vai-e-vem, dançavam; os cães a ladrar o estranhamento; as águas cortinavam, de cores, arco-íris na varanda; as empregadas corriam a desroupar o varal: “Chega, menina!”; o cheirinho de terra molhada entupia as narinas quando os respingos frios — vinham das venezianas do quarto — jaziam no travesseiro; o tactac repenicado no telhado acompanhava o grito do vizinho no alto do muro do quintal; o quintal avermelhecido em acerolas.

Era manhã e na sala inda escura o café esperava — passado no pano —, com leite, o pão francês quentinho e a manteiga de lata.

O pai, a mãe, os irmãos: nunca a mesa fora tão pequena.

Chovi com a chuva a tarde que ribombava.

“Mundo, mundo, vasto mundo”... Ah, se eu não me chamasse Raymundo, como vento gemeria, não em prosa, mas em poesia, todo o vivido retrato que, só no escuro deste quarto, a rasgar os céus azula-me o clarão, pela janela distraída do nublado coração.


Coluna quinzenal do Vida & Arte de O POVO: Raymundo Netto.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

                                                

                               A matemática da natureza

Não tinha sido igual.
Casas, prédios, carros destruídos pela fúria volumosa da chuva negra que deslizava os morros.
Pelas ruas desfiguradas, pedras gigantescas, enormes troncos sucumbidos, postes quebrados, lama, animais mortos.
Evacuando de si enormes lágrimas e pânicos, os sobreviventes desnorteados se deparavam, procurando familiares vivos ou mortos.
Dos escombros misturados com restos humanos, gritos de socorro amontoavam desesperos.
Nas cidades serranas do Rio de Janeiro, vidas se rompiam a qualquer sopro.
Na soma das agressões humanas contra o meio ambiente prevalece inevitável como o sol, o vento, a lua, a matemática da natureza.  


Por Silas Falcão


          Conversa de Nilton Maciel com o poeta Carlos Nóbrega
Como a maioria dos escritores brasileiros, Carlos Nóbrega é um desconhecido. Mora em Fortaleza (como outras dezenas de bons poetas, contistas e romancistas), não aparece nos jornais (e quem aparece?), publicou cinco “livrinhos” (por pequenas editoras, é claro) e, vez por outra, sai de casa ou da empresa onde trabalha, para tomar um chope e conversar com os poucos amigos, também escritores. Um deles sou eu, que gosto de ser jornalista (do tipo antigo, sem formação em curso de jornalismo) e de ouvir quem tem muito a dizer. Conversei com ele (via correio eletrônico) durante alguns dias do final do ano passado. Só então fiquei sabendo de seu nome completo: Carlos Alberto Medeiros Nóbrega, descendente de paraibanos. “Nasci no Henrique Jorge (bairro popular da capital cearense), poucos anos depois da inauguração do Conjunto Residencial Casa Popular. Foi uma infância bárbara, selvagem, no mato. Tão maravilhosa que ainda hoje, 45 anos depois (tenho 55) me fornece alumbramento. Depois cresci, fiquei careca, fiz um curso de Gerência Financeira na UFC, casei, descasei, recasei, extraí cinco filhos daí, e escrevi uns versinhos bobos que ficaram enfeixados nos livrinhos A sono solto, Outros poemas, Breviário, Árvore de manivelas, O quanto sou e 8verbetes. Mais nada que mereça ser relatado, lembrado ou registrado, a biografia é magrela mesmo”.

ENTREVISTA

Nilto Maciel – Saiba que não quero história. Evito isto. Talvez para os pesquisadores do futuro, quando você for morto e famoso, para os biógrafos sua história vá interessar. Quero falar de hoje. Onde você se insere, em que nicho da poesia brasileira você se sente (ou se senta)? Você se sentaria ao lado de quem (sem constrangimento, para você)? Ou não há cadeiras vazias para você?

CN – No joguinho de palavras sente/senta, vou dizer primeiro o que sinto sobre o assunto poesia. Nós, os milhões de poetas soltos por aí como poeira no vento, compreendemos muito bem que fazemos uma arte menor, uma arte pobre, uma arte coitadinha... sempre achei que poetas como eu não passam de músicos que não deram certo, contistas preguiçosos, romancistas frustrados... ou poetas pela metade. Mas fazer o que, não é?, a não ser ficar se (me) repetindo em tudo quando é texto só por causa de um vício que eu peguei quando conheci Manoel Bandeira. Que me levou a João Cabral, que me levou a Lorca, e por aí vai. Depois disso curti cada cara em seu tempo: Francisco Alvim, outro tempo com Leminski, etc. Mas os três primeiros ainda me perseguem. E como eles já estão muito longe de mim no espaço, no tempo e na glória, eu me sentaria, sim, e ficaria muito à vontade e muito honrado, ao lado do nosso conterrâneo Horácio Dídimo. Gosto muito dele, me ensinou muita coisa.
Quanto às cadeiras vazias, talvez eu responda melhor assim: leio e repercuto tudo, e aqui e ali até livro didático de matemática que não consigo entender. Hoje estou lendo o Corão. Sei que se eu não dormisse, nem comesse, nem trepasse, nem trabalhasse na Caixa Econômica há três décadas (e confesso, para estranheza de muita gente que eu adoro esse trabalho), se eu não fizesse outra coisa a não ser ler, não daria para conhecer um décimo por cento do que eu desejo, parece que a falta e a ânsia de ler o que não leu vão aumentando à medida que você vai lendo cada vez mais, isto é uma constatação, até Pascal já disse uma vez. Para a minha resposta ser mais clara sobre as cadeiras vazias: para mim não há cadeiras vazias, de todo livro e autor com quem me deparo eu aprendo um pouco ou muito, tenho medo até de um dia ser apanhado em flagrante delito, este pequeno texto, por exemplo, eu botei o nome dele de plágio por medo de ele ter existido realmente antes: O PLÁGIO// teu braço me lembra/ Vênus// Pelo muito que teu braço /me falta// Por que não és/ pelo menos/ apenas uma simples/ estátua? Pode perfeitamente ter sido roubado de Ferreira Gular, ou de Waly Salomão ou de Nilto Maciel ou sei lá mais de quem.

NM – Você prefere papas na língua ou línguas na papa?
CN – Dependendo da pressão sanguínea, do momento, eu uso três, quatro, sei lá mais quantas formas de papa. Agora, por exemplo, estou respondendo com as cujas na língua. Do contrário eu diria: ô perguntinha escrota! Mas é isso mesmo. Às vezes digo o que me vem na telha, às vezes me policio e refaço o pensamento nas palavras. Não se trata de ficar em cima do muro, é que, quando dá tempo, eu temo mesmo as consequências. Afinal, como dizem por aí, quem fala o que quer ouve o que não quer. Muitas vezes eu falei ou escrevi (e ainda falo ou escrevo) o que quis e depois quebrei a cara por calcular quanta energia gastei naquilo e que foi inútil, pois eu estava errado. Mas infelizmente ainda não consigo me controlar e lá vai prejuízo. Afinal, por falar em papas, eu não sou o papa nem o dalai lama, – então: ô perguntinha escrota!
NM – Foi uma brincadeira, mas consegui arrancar de você alguma preciosidade. Agora vai outra casca de banana. Poeta (escritor, de maneira geral) deve “falar” muito ou só precisa escrever? Entrevista, memória, depoimento e outros gêneros extraliterários têm alguma importância? Você se sente à vontade ao desnudar-se assim ou prefere se esconder ou se revelar no poema?

CN – Nilto, estou bêbado, e quero responder bêbado (corrigi a palavra bêbado três vezes). Se o cara estiver bêbado do que escreve, se fizer com gozo, então faça o que lhe der na telha. Eu não faço nada além do que uns versinhos bestas porque não tenho força pra fazer alguma coisa grande. Quem puder tentar isso de outro jeito que tente. Que jogue flechas do ar. Que arrisque. Alguns atingem o alvo na mosca. Pelo que me consta Baú de ossos é um livro de memórias, e é um monumento. O Diário de Anne Frank é um caderno de adolescente (abstraiamos a situação em que foi escrito), e é mais lido no mundo do que Machado de Assis e do que Ezra Pound juntos. E eu não me desnudo nas besteiras que escrevo: nunca o que escrevi tem a ver com o que vivo. A verdade está na cerveja, como não diziam os gregos. Não estou pensando em nada, não estou calculado nada, mas estou super inspirado. Escreverei alguma coisa. Se passar pelo controle de qualidade de quando eu sóbrio, eu te mostro. Ich! Tin-tin.

NM – Escrever é prazer, dor ou nada disso? Se for prazer, é muito natural, humano. Se for dor, é masoquismo (que também é um prazer). Pode ser também sadismo. Fazer o leitor sofrer. Sim, o leitor sofre quando lê, tanto quanto o escritor. Isso não o enche de culpa?
CN – Ao contrário da música, da dança, que muitas vezes expressam felicidade, o fato é que a literatura é o muro das lamentações da arte. Não foi à toa que Vinícius disse numa canção que o poeta só é grande se sofrer. Mesmo nos contos infantis, que têm final feliz, o assunto central é o sofrimento, a humilhação ou a impotência. Quando rimos dos devaneios de D. Quixote nem imaginamos que estamos rindo de nós mesmos, de quando temos esperança. Por isso não me coloco de uma forma pessoal no centro da pergunta. Todo autor explora o lado escuro das pessoas, isto é, o lado escondido (pode ver: rimos em público, mas choramos às escondidas). Não é, portanto, uma questão de se ser masoquista, é lidar com a matéria prima da literatura.
NM – Poesia e livro, poesia e internet. Você tem medo de se perder no universo virtual e prefere ser visto nos livros? De qualquer forma, você (e muitos outros) é apenas uma fagulha? Ou acredita ser uma galáxia, uma estrela, um brilho perpétuo no firmamento? Ter cinco leitores é o suficiente?
CN – 1) Não faço restrição nenhuma ao computador, a ter um blog, a ter um site com textos literários, é um meio de publicar barato e prático e que tende, inevitavelmente a ter prevalência sobre os meios tradicionais; mas o fato de passar 6, 8 horas no escritório onde trabalho lidando exclusivamente com a máquina, me daria a impressão de que meus poemas seriam mais uma de minhas atividades burocráticas, então por enquanto fujo disso, a poesia me é uma atividade lúdica, e eu não quero absolutamente confundi-la com o lado árduo de meu outro trabalho. Por isso ainda prefiro publicar em papel. Portanto, não é uma questão de temor, é uma opção justificável pelas circunstâncias da minha relação constante com a máquina. Um dia, quando eu me aposentar, certamente tratarei disso.
2) Responderei ao tamanho sideral desta pergunta com bem pouquinho. Nunca serei um ser espaçoso nem no tempo nem no ar (noir?), não sou porque primeiro não sou mesmo e depois não faço questão, ou seja, não sofro chiliques pelo fato de não ser, jamais irei ao Saara buscar a água rara da glória. Faço sincera autocrítica das coisinhas que eu escrevo: são umas tolices que a mim me divertem e a poucos interessam, nada mais do que isto. Então talvez eu chegue apenas a um pouco além da fagulha, para ficar na metáfora que você está usando, digamos que se trate de no máximo o tempo do palito de fósforo se queimar. E não ria o riso dos irônicos por achar que estou usando de falsa modéstia ou que seja o reconhecimento da minha santa mediocridade, esse é um sentimento sincero que possuo a respeito dos meus livros, e acrescento que não sou absolutamente infeliz ou incomodado ou injustiçado por causa de me sentir mero fogo fátuo, sou comum mesmo e trivial, gosto de futebol, de tomar umas, de ouvir piadas infames (só de ouvir, porque não sei contar)... – você acha que alguém assim poderia entrar no reino da imortalidade? Nunquinha. Quero a mortalidade e me belisco todo dia para saber se está tudo bem.

3) Ter somente cinco leitores realmente não é uma coisa boa, mas fazer o que? Há algo que dói mais do que isto quando a gente publica um livro: é a sobra. Minha primeira publicação foi de 1000 exemplares. Quanta inexperiência, quanta ilusão neste número! Consegui me desfazer (sic, sic – mas é este o termo) de uns duzentos e poucos, e aquela imagem, aquela coluna negra (a capa era preta) que, em vez de diminuir, cada vez mais crescia aos meus olhos, me aborrecia de verdade, me torturou durante uns quatro anos seguidos, quando finalmente resolvi juntar todinhos e fragmentá-los, queimá-los ou vender para o papel velho, nem sei mesmo o que foi que eu fiz, sei que tirei da minha frente aquele pesadelo, aquele abandono. Hoje publico 300, 500 exemplares no máximo, e ainda sobra... quem sabe não chegue o dia de eu publicar os tais cinco exemplares para sentir o prazer de lançar (que glória!) uma 2ª edição?

NM – Falamos de você e de quem é poeta (os outros), do poema, do prazer e da dor de escrever, do livro de poemas e dos poemas em computador, dos leitores (esses outros que somos também nós). Você pode falar do que é poema? O que você quer, quando escreve? Poema é para ser lido/ouvido/visto? Quem lê, ouve e vê, precisa ser bom leitor e bom ouvinte? Ler com (ou por) avidez/paixão.

CN – Poesia é uma manifestação dos espíritos (no plural), por isso se mostra de formas absolutamente diferentes. Alguns se confessam poetas cerebrais, outros intuitivos, há quem construa textos como se estivessem fazendo desenhos, outros compõem coisas herméticas, tudo igualmente bom ou igualmente ruim. Mas eu não acredito que exista a criação puramente cerebral nem puramente intuitiva, vejo nessas classificações apenas estágios do fazer. Quando esses impulsos (sentimentos, insights, ou seja, o que for) se materializam, aí os textos refletem um pouco (e às vezes apenas um mínimo) da idéia ou do sentimento original do criador; partindo de mim, portanto, não acredito em sinceridade absoluta, em fidelidade absoluta, entre o produto final e a embrião imaterial do poema. É algo totalmente transformado. Veja bem, quantas coisas foram iniciadas a partir de um impulso, e o cara ao tentar melhorá-las sob o aspecto estético, terminou dizendo o contrário ou algo muito distante de seu sentido original? Acho que esse “desvio-padrão” acontece com todo escritor e em qualquer gênero. O que eu acabei de dizer significa exatamente minha vivência com a poesia, ou seja, é uma coisa desmistificada, embora que eu jamais me definiria cerebral... Na verdade, nunca penso muito sobre o modo de fazer, eu a faço de maneira selvagem, primitiva, sem estilo. O que eu posso dizer com segurança é que: 1) algo sem nome acontece quando eu percebo que surgirá na minha frente uma fileira de palavras que me farão arrepiar, e aí se dá uma fuga da realidade que dura alguns segundos (chamam isto de inspiração, mas eu considero pejorativa essa denominação); 2) Repito quase sempre as mesmas temáticas; são recorrentes, por exemplo, o tempo e o destino; e sempre busco ser simples para ser compreendido (ainda assim, uma tia minha – e também muitas pessoas cultas falam que não compreendem bulhufas); e 3) finalizado o texto, o que eu sinto é: ora uma sensação de prazer parecido com o fato de ter comido uma coisa boa, ora a de alívio por me desfazer de um peso que estava carregando. Por fim, eu não chamaria de paixão o sentimento que tenho pela poesia, chamaria de alegria, pois paixão nos chega sem ser chamada e depois se acaba, e alegria a gente busca.
NM – Para finalizar, você está contente com o que escreveu? Pretende escrever mais? Ou escrever não é pretensão? É sina?
CN – Não estou contente de jeito nenhum. Noventa e tanto por cento é ruim. Um por cento talvez seja bom. Mas eu vou continuar tentando, um dia, quem sabe, eu termine alguma coisa que considere o resto excessivo. Por enquanto, não. Embora eu já me veja como um veterano das tentativas e perceba as possibilidades se escasseando, vou continuar caçando esmeraldas, (por si só isso me diverte pra caramba), e um dia, quem sabe, eu encontre uma pedrinha comum, mas bem bonita. Se isto acontecer, e quando acontecer, eu te digo, você vai ser o primeiro a saber. Combinado? Obrigado pelas oportunidades que você me deu aqui no seu blog.
Fortaleza, janeiro de 2011.




Estrela



Sonho ou não:
Poeiras de estrelas grudaram-lhe à pele
Queimaram-na
E das feridas, em pústulas ardentes,
Rompeu uma lua nova.



Poema de Raymundo Netto


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011


                                   Gramática do silêncio


...Uma carta iniciada:
Mais nada (jamais conclusa).
Uma frase delicada
Mas muda (de tão confusa).

Questionário sem quisito,
Descrente em confessionário.
O dito pelo não dito,
Melhor dizendo, o contrário.

E um desejo de que não
Permaneça a boca, não escrava.
Mesmo se de extremunção
Dissesse uma só Palavra.


Poeta de Meia-Tigela
             


                                  EM TODOS OS SENTIDOS


                       

1.  Eu vivo porque vejo.                                         O olhar
Sou a planta que vira o pescoço
inclina o caule imantado
para que a folha castanha
o olho verde de folha
a cor que olha desfolhe
o girassol que é o sol,
Guarde-o dentro da bolha
e transforme as formas em fé.
Vejo, que é minha oração
que rezo todo contrito
Mas quero da luz ser o meio
pois vejo Deus e não creio
que de tão grande e bonito
exista e seja o que é.
                                  
                                   *
2.  A côdea invade a boca                                      Céu/Inferno
ensangüentada de café. É a manhã.
A boca sabe o que Deus quis dizer
na carne da maçã -
Não gerem filhos meus
            bocas desirmãs...
Em Damasco ou Lima
a hortelã
fala à mesma língua
como se uno fosse o homem.
E eis a cebola cortada em hóstias,
a água que é vinho e sangue
O milagre do peixe em postas,
e o gosto amargo da fome.

                                   *
3.  Ó narinas                                                           O perfume
por onde a alma das coisas se escreve em mim
Notai: - Estão chegando no ar
as moças saídas do banho
E para que nunca se apaguem
anotai nos livros do encanto.
Olhai os lírios do campo.
Há vales e bois pastando
nos cheiros do que me lembro...
Bebei o suco no vento
dos frutos da estação
Ouvi no cheiro da chuva
o chapinhar antigo dos cascos,
Colhei o suor das mães
nas flores dos seus sovacos.

                                   *
4.  O que tu falas                                                    A canção
põe na minha boca
o sabor do pão
Põe nos meus ouvidos
a intenção dos hinos
Põe na minha alma
o sopro e a força.
O que te ouço
pinta de luz
o que penso
Desenha o sorriso
em meus lábios
E faz escorrer
de meus olhos
as águas doces do mar.

                                   *
5. É sábia a pele.                                                     A carícia
A febre sabe em si
            o sol do meio-dia
E sabe o mar a pele
            por ter sal
E sabe o rio, o sabre, a seda
            e sabe o ardor
E sabe mais porque se
            excita de intangível.
Assim se a pele negra
            sente náusea da História
E a branca expele
            o suor de seu rancor
Somente a pele nua,
            a que se despe de sua cor,
Sabe da carícia ser sua ave
E eriça o poro, não por frio,
                       por amor.


Carlos Nóbrega

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

                                                GESTO


a mão na boca
o germe
                   na barriga

o pensamento
                   incólume
atravessa o ser
e se faz
gesto

infinitésima matéria
do bem
e da destruição


Frederico Régis Pereira

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

                           O Homem Bom

Brennand de Sousa


“Por que me chamas de bom? Bom é meu Pai que está nos céus”. Eis o aforismo com o qual Cristo larga-se do Céu para irmanar-se conosco.

Da minha parte, não compreendo que bonomia seria esta que desperta nos outros o sentimento de confiança e gratidão.  O que em mim atrai mendigos, tristíssimas donas de casa, desempregados, prostitutas, renegados de toda ordem a me requisitarem os mais inusitados adjutórios? Enquanto missionários atocaiam incréus em pontos visivelmente estratégicos, minha presença chama – involuntariamente – os crédulos saídos das mais obscuras brechas feito mariposas. Acalma-os.

Reparando-me no espelho penso que a resposta pode estar na composição suavemente assimétrica do rosto. Os olhos tristes e desalinhados insinuam uma placidez monacal, inspiram confiança. Não só isso, a superfície esquerda da face, de relevo mais suave, possui maçã um pouco menos angulosa; a boca, bem delineada, em conjunção com as largas aletas do nariz, deve conferir à moldura redonda de minha cara, um toque infantil, sugestivamente confiável.  Essas sutilezas fisionômicas passam despercebidas nesse mundo de pouca atenção, onde as pessoas dão-se umas às outras sem qualquer preparo analítico. Vai saber! Busco compreender essa atração. Um rosto de simetria especular, de fato, revela algo de inacessível, tal qual a escultura de um grande mestre renascentista. Já as faces francamente assimétricas repelem por outra forma, conduzem a uma inevitável feiúra... Criaturas quasimodescas nunca inspiram empatia.

No entanto, por mais evocativo que se mostrem os traços de uma feição, estes não possuem atributos que definem o etos de qualquer indivíduo, embora as pessoas – inclusive você que me lê – sejam propensas à credulidade estética. Oh dúvida! Não sendo a geometria de minha expressão, a responsável pelas freqüentes abordagens na cena urbana, o que seria então? Minha conduta? Menos provável ainda. Esta só a conhecem os poucos que me são próximos e ainda sim ilusoriamente. Mesmo não sendo o completo canalha, tenho plena consciência de que todos os meus passos, inclusive aqueles que podem ser reputados meritórios, são na verdade motivados em causa própria. Todos os atos nobres possuem intenções muito bem guardadas. A solidariedade é o emblema oculto da vaidade humana, embora bem poucos atentem para isto. Se as pessoas não fossem tão carentes quanto obtusas, notariam que quando ofereço o ombro, presto o favor, sou diligente, na verdade estou testando minha superioridade luciferina travestida de cristã. Em que momento ofertei-me de bom exemplo sem, contudo, pegar carona na oportunidade? Não me recordo.  Aliás, pouco me importo, sei que não sou diferente de ninguém, ou por outro, se difiro-me é pela prospecção com que executo minhas benesses.

Tive o essencial para que a tão decantada bondade divina em mim desabrochasse: O amor assistido dos pais, juntinhos até que um dia a morte viesse a separá-los, o conforto de um berço aconchegado pela ternura, onde nada me faltara e jamais viria a faltar... Depois obtive razoável formação intelectual, sinceras amizades, festas, prazeres... Uma arquitetura social toda favorável. Natural, pois, para um burguês insensato, os ataques de Madalena Arrependida... “Muito será cobrado, a quem muito foi dado” Contrapartes! É amigo, estava farto delas! A parte que hoje me cabe, faço-a sem dever nada a ninguém, somente à minha clarividente vaidade.
           
             Todos que se dedicam a nobre arte da compaixão disputam, com voracidade, a alma do Homem. Talvez, também eu, em minha cínica honestidade, esteja querendo açambarcar a sua, ou quem sabe, não passe de um ingrato que deu uma tremenda cusparada no banquete como costumam os camicases da poesia e que almejam justamente o mesmo que todos.

Tu tens princípios, disto tenho certeza. Refiro-me obviamente aos bons princípios. Já desconfiastes, alguma vez sequer, do suor que os mantém? Buscaste a fundo as ocultas motivações que os representam?  Mas buscaste a fundo perdido ou temendo diante dos Credores? E então? Que fios invisíveis e inconfessáveis suportaste enxergar? Que volume de vazio descobriste por baixo da tábua a que te apegaste?

Quero, por fim, dividir contigo somente o que não possuo. Se depois do teu auto-veredicto (onde espero francamente que não te tenhas absolvido – tampouco condenado-te) a vaidade blindada não houver cegado-te de todo, dá-me a certeza: Haverá, em nós, algum sinal benéfico, salvador e que nos credencie bons... Pelo menos perante àqueles que nos desconhecem?
    




quarta-feira, 12 de janeiro de 2011



Crônica Desamada

Raymundo Netto especial para O POVO


Bar do Assis – janeiro de 2011 (foto: Francis Hime, que tocava ao piano – sim, no Assis tem piano)

Eu que não ando só, mas somente em boa companhia, dava fecho à noite de segunda, numa boêmia sem razão de ser, no sempre Assis da Gentilândia, a conversar fiadamente sobre futebol, política e nosso cancioneiro com Vinícius de Morais e o irmão da Ana de Hollanda, ambos pilequeados sob véu cinzento da fumaça de cigarros. Vinícius, flagrando meu constrangedor desinteresse sobre tais coisas externas à alma, vessou o ar e apontou a contenda ao tema de sua predileção: a especialidade no exercício penitente do amar.

Até eu, falso poeta, que nunca fui com as coisas do amor — não sei beber uísque nem tão pouco ganhar dinheiro com poesia e menos ainda credito em amaravilhas — sei que os olhos dos poetas minam de seu peito, daí que os males do coração lhes são o desejo incontrolável de não querer ver o tanto à certeza de que são demais os perigos desta vida.

O Poetinha, feito branco mais preto do Brasil, com as mãos em vagas ociosas à superfície da mesa, entornava a garrafa cor âmbar, num tranquilo discurso de pureza, em nome de viver seu grande amor:
— Quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu. E mais eu digo: ai de quem não rasga o coração. Viver sem ter amor é não viver, compadre Chico!

— O amor, Vinícius, eu... eu... eu bem sei, já provei, é um veneno medonho. É difícil dizer que foi... que foi... bonito... É muita mentira para mim... — e lançando seu copo ao ar, a rir e a tropeçar no gaguejo das palavras, bradou: Deixem em paz meu coração que ele é um pote até aqui de mágoa!

— O amor só é bom se doer, mas o bom amor dói em paz e a tristeza é a mais bela... Ponha um pouco de amor na sua vida, assim como o faz num samba, pois que a alegria é a melhor coisa que existe, não é mesmo, capitão Raymundo?

Enquanto o Chico dentava uns amendoins torrados e contemplava transverdemente o poetar de um crente, eu, emudecido, na provocação de que para viver um grande amor se é preciso um grande amor para viver, concorria-me às coisas doridas, quase que divinas, ao canto e à beleza das musas-louçãs. Lembrava do último instante, jazido eterno, enquanto esquecia meus olhos na face branca petalada e à constelação brilhante dos olhos da mulher amada. E no videjar de todas as horas, dês o seu raiar até o fenecer que vem com a noite silenciosa e desestrelada, caía em profundos e porquanto insensatos sofreres, a embolar em fundos de armários ou de gavetas, as noites que cria lhe dar. Sem excessos, sem promessas, nem esperanças e por compromisso apenas o descuido do passado e a vida vivida dia por vez. Ah, mar sozinho é o que há de mais triste. Ensaiei uma única fala e, para impressionar, enfeitei-a. Ela vinha, quando o Chico a estorvou:
— Sei não, mas não é legal chorar o leite derramado. Sabe que venho até remoçando, me pego cantando sem mas nem porque? O sujeito para amar tem... tem... tem que tentar entender as mulheres... Mas quantos e tantos são seus mistérios...

— Ora, parceiro, uma mulher tem que ter qualquer coisa que chora, que sinta saudade, que seja só perdão. E daí que ela seja só linda? Quer saber? A vida é uma só e se o amor é fantasia, eu me encontro em pleno carnaval. — levantou-se e experimentou uma desengonçada dancinha requebrosa, imitando samba, ao pé da mesa, sendo aplaudido pelo companheiro a rir-se da marmota.

À beira da alvorada, o bar ia fechar e na loucura de ir à rua beber a tempestade que chega a nossa Fortaleza, se foram, mas antes concretizaram a nossa parceria nessa crônica de poeticidades, afinal, quem bebe com Vinícius tem logo que, facinho, sagrar-se parceiro.

Entretanto, confuso e esquecido de casa, não sei mais se hoje tenho apenas uma pedra no meu peito ou se mesmo o amor que não compensa é melhor do que a solidão, mas, de toda forma, Saravá e, a todo pessoal, adeus!

Alguns dos trechos da crônica foram adaptados da obra de Vinícius de Moraes e Chico Buarque.

Raymundo Netto que não sabe cantar, não se lembra de uma letra, mas chove no molhado. Contato: raymundo.netto@uol.com.br   blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Poetas de Quinta no lançamento da antologia da Associação Cearense de Escritores- Ace.



LARGO

Carlos Nóbrega

Gostaria que não tivesses nome
e se o tivesses, não fosse de homem,
fosse de Vento: Praça de Sonho.

Não precisava haver em ti
nenhum relógio, nenhuma lâmpada,
nenhuma lógica. Fonte nenhuma.

Existirias sem nada disso.
Tinhas que ser,
és o que és,
Existirias

(o que se fixa
no olhar disperso
dos transeuntes

é o que se altera
no olhar transverso
dos que te habitam).

Existirias porque teus loucos te criariam
e não fossem eles
o homem comum te sonharia;

existirias porque tuas putas te sonhariam
e não sendo elas
as que são santas te criariam;

e se não fosses o púlpito
para os alucinados de Deus,
uma confraria de ateus te fundaria.

E se os teus velhos não tivessem em teus bancos
o ardor dos colegiais,
e as anciãs não vagueassem por ti
            lambuzadas de cosméticos,
jovens desesperadas
em tuas árvores armariam suas forcas,
e te edificariam com seus atos.

E se os apressados não reduzissem os passos
ao te cruzar
os mutilados se apressariam em te criar.
Os mendigos o fariam, ou os viciados,
ou os homens ricos, ou este vira-latas.

No entanto tu és a construção inacabada
do dia-a-dia
que mãos opostas edificam em mutirão.

E se ninguém, nem mesmo o Mito,
te tivesse criado,
eu te criaria, pois sou um pouco de todos
            os que pulsam em ti.
E se não posso cantar o mundo,
te canto, ó praça dos boticários,
ó praça das rameiras
dos estrangeiros
das balconistas
das crianças perdidas
dos deserdados
das bem sucedidas
dos desocupados
das bêbadas
dos que se irradiam,
Ó praça do mundo inteiro.

Há um relâmpago
sobre ti que não se apaga,
que vem dos vivos
do olhar dos vivos
da voz dos vivos
e das suas almas.
És o que és
Praça da Luz
o espaço que alforria
            as peles de toda cor
E todos os que estão em ti
ardem do que são
os pequenos ladrões
as grandes ladras
os cafetões e as namoradas
            com seus olhares enigmáticos
os gazeadores
os artistas sem ribalta
as gordas e magras
os anjos caídos
as moças grávidas
os avarentos
os demagogos
os apostadores
todas as mágicas
todos os mágicos
mestres da vida
E esta menina em laços de fita
dando milho aos pombos,
            que é teu monumento
Te quero sempre assim incompreensível
ó Praça
Sempre assim à beira do delírio.