sexta-feira, 22 de agosto de 2014




                        DOIS ANOS SEM MANUEL BULCÃO


Foram apenas três momentos em que pouco dialogamos, porém algo me diz que atravessamos séculos e mares de outros tempos. Duas destas especiais ocasiões ocorreram no barulhento e, então apinhado de gente, “Bar do Assis” em encontro dos Poetas de Quinta; a outra aconteceu na casa de Pedro Salgueiro numa noite em que celebrávamos a mudança de idade do anfitrião. Apesar do quê, o suficiente para nascer uma afinidade que caminhava franca para grande amizade. Afora isso, trocamos meia dúzia de e-mails e batemos alguns papos ao telefone. Neste meio tempo, nas duas vezes que os Poetas de Quinta se encontraram em minha casa, Bulcãozinho (assim tratavam-no os seus mais íntimos de nosso grupo) manifestou vontade de se fazer presente. Entendia ser uma oportunidade ímpar para escambiarmos nossas próprias obras. Ele me traria: As esquisitices do óbvio, A eloquência do ódio e Sombras do Iluminismo; em troca levaria um exemplar de meus livros. No entanto, desencorajado pela doença, justificou a impossibilidade de nos acompanhar naquelas reuniões expondo-me o quão era frágil sua saúde.

Noutro momento, ao ouvi-lo chateado por não ter comparecido ao meu lançamento em 2 de junho de 2011, eu deixei na portaria de seu condomínio um volume de meu segundo romance, recém-publicado. No dia seguinte a capa de Devaneios Delírios & Desamores já estava postada em seu Blog: asesquisiticesdoobvio.com.br.

Já em 2012, Manuel Bulcão me passou um e-mail dizendo que acabava de sair de uma crise de duas horas de dores aguda. Aguardava uma ambulância para ser hospitalizado. Tinha dúvidas se dali sairia com vida. Se eu quisesse poderia pegar, no hospital, os livros que ele dedicara a mim. Apesar de seu preocupante quadro clínico o e-mail transbordava bom humor. Até piadas com alguns companheiros de Quinta ele fez. Meio atrapalhado (sempre me falta jeito diante de situações do gênero), eu o respondi com votos de pronto restabelecimento e manifesto desejo de em breve nos encontrarmos para comemorar a plenitude de sua recuperação. Contudo, ao clicar o comando de enviar, antevi lágrimas lhe irrigando as faces enquanto lia minha correspondência; tempo em que a dor de quem perde um ente querido se apoderava de mim. E assim envolto em completo silêncio, revivi os laços de afeto, gratidão e respeito mútuos, que construímos. Vaguei entre a alegria e a tristeza entregue ao sentimento de fé com o olhar firme na réstia de luz e na esperança que resiste até o último sopro de vida.

Uma semana depois ele recebeu alta hospitalar. Eu, e por certo todos ao seu redor, afastava por completo o que a crença popular chama “Melhoria da morte” ou “Visita da saúde”. Fase em que o doente dá sinais de recuperação (na verdade um crédito de horas ou dias, dados pela lei divina), mas de repetente o seu prazo na Terra se encerra e o espírito sobe aos céus. Afinal é assim que a vida acontece num eterno e ir e vir. E como nós, conforme disse Clarice Lispector: “Nunca estamos preparados para o que nos espera”, eu compartilhava da alegria do amigo que retornava para casa duplamente feliz.

Primeiro porque o médico que o acompanhava estava bastante confiante na evolução de seu quadro; segundo porque o livro que acabara de concluir: O heliocentrismo de Copérnico tinha sido aprovado por uma editora virtual portuguesa. E disse mais: “Este tipo de publicação é um achado para escritores criativos como nós. Digo criativos assim com eu e você. Não o... nem o... muito menos o... brincou”. Contudo, confessava-se nervoso porque a esse propósito teria de gravar um documentário em Sobral, e, segundo suas próprias palavras, em demandas do gênero lhe batia uma gagueira de assustar.

Isso, no entanto, ele não disse, mas minha perita intuição deduz que o citado município cearense foi escolhido para ambientar o referenciado vídeo pelo fato de o teor do livro (haja vista o título) ter muito a ver com a Lei da Gravidade Geral, bem como devido à efetiva contribuição que a Princesa do Norte deu para a comprovação dessa grande descoberta do gênio da física, o cientista Albert Einstein.

A despeito da consciência que tinha da fragilidade da própria saúde, em nenhum momento vi ou ouvi Bulcãozinho se lamentar. No entanto, uma vez também por e-mail, ele deixou transparecer que os leitores não gostavam de sua obra. Certo de que esta era a verdade dos fatos, respondi que apesar de ter lido apenas algumas poesias e textos de sua lavra, postados em nosso www.poetasdequinta.blogspot.com e em seu já citado Blog, eu não tinha dúvida de que sua obra breve mente teria o justo reconhecimento. Pois confiava no bom gosto de nossos colegas de grupo, unânimes em ressaltar seu talento de escritor. Sobretudo como ensaísta técnico-científico e filosófico.

Meses depois, na busca de unidade literária para uma nova publicação, eu consultava alguns colegas e o caro Bulcão, mais uma vez em rede social, analisou com presteza, sabedoria, carinho e fez boas observações acerca do que eu o enviara.

Menos de um mês depois desta correspondência, ao retornar de viagem num fim de semana eu soube que ele estava numa UTI. Prontamente liguei para o Silas Falcão, o Pedro Salgueiro e o Carlos Vazconcelos e agendamos, para a quarta-feira seguinte, uma visita ao amigo. Uma reunião de trabalho, no entanto, segurou o Vaz além do tempo previsto e perdemos a hora da visita, que, remarcada para dois dias depois, acabou não acontecendo. É que às 19 horas do dia 23 de agosto de 2012, Manuel Soares Bulcão Neto, exato numa quinta-feira (dia e hora em que os Poetas de Quinta costumeiramente se reúnem) partiu deixando uma grande saudade e um vazio imenso em nós.

As palavras guardadas para a visita ainda me povoam o pensamento, no entanto mais calmas e consoladas pela sabedoria do coração, coexistem com a luz que cruza o meu livre-arbítrio. São recordações imorredouras que mostram e enaltecem a natureza do amigo, que, de quando em quando, eu revejo-o através de uma porta aberta pela sinfonia do céu noturno. E na perspectiva de nos reconhecermos na travessia de um horizonte de almas eternas, meu ego se dissolve perdoando-me por eu não tê-lo abraçado mais uma vez.


Bernivaldo Carneiro

sexta-feira, 8 de agosto de 2014



POETAS DE QUINTA

Carlos Vazconcelos

Poetas de quinta-feira,
de quinta categoria,
o que a cidade oferece,
o que pede, poesia?
São esquisitices do óbvio
que se buscam em segredo,
talvez ópio ou cronópio
que nos distraia, brinquedo.
Enquanto somos atores
deste palco, oito paredes,
por quem somos, não sabemos,
cruz vermelha, facção verde?
Há inimigos à espreita!
Mas também o quanto sou?
Cada um carrega em si
o peso do morto ou
um espantalho sedento
com um coração tamanho,
indeciso entre a angústia
a melancolia ou o sonho.
Sem honraria ou medalha
que o valha, a poesia
servida fria é navalha
que talha a demagogia.
Meia-tigela de versos
vale mais que um teorema,
do que o dinheiro-dejeto
de tão precário sistema.
O que a cidade oferece,
o que pede, poesia?
Devaneios e delírios,
desamores e anarquia?
Nada disso sobrevive
às garras da irreverência
satirizando, seu moço,
o mundo, resiliência.
Poetas de quinta-feira,
de quinta categoria,
sois passageiros de cúmulos,
sois uma idiossincrasia?
Uma usina de nada?
Poços de sabedoria?
Concerto número único?
Bússola sem seta-guia?
Dez cavaleiros de triste
figura e uma dulcineia.
Sois vós de meia-pataca?
Sois vós de tigela e meia?
De nada vale o dilema:
Se a vida está por um triz,
“Monte parnaso” é no Eusébio
“Pasárgada” é o Bar do Assis;
há de haver outros “olimpos:”
o Tronco do Sapoti,
Bar do Pancho, o Animaw,
certa casa no Fortim...
Poetas de quinta-feira,
palindrômica utopia,
lançar minutas do caos,
nos ultramundos seria
maneira de registrar
nossa passagem no mundo,
de navegar, mergulhar,
em mares tão foribundos.
Poetas, acangapebas
bastam umas cervas geladas,
coca-cola, carne assada,
e cadeiras nas calçadas.
Não existe protocolo
nem brasão ou livro-ata,
o fardão é uma pilhéria,
a divisa é uma bravata.
Há coisas mais importantes
advindas do imaginário:
Os vendedores de Judas...
restos de corpo no aquário...
Um breviário completo
e receita tão excêntrica
contra o princípio copérnico,
lógicaherméticautêntica.
Um muzungu africano,
um cabra do limoeiro,
outro lá dos Crateús
são mais três dos cavaleiros
a aliterar seus versos
em noite de manequins,
quem tomar banho por dentro
molha o cérebro e os rins.
Sob a lança de Nzambi
criou-se uma nova moda:
sair dançando assim
com sapatos que incomodam.
Uma estranha galeria
de tipos desengonçados
que habitam o mundo dos vivos
as noites e os dias roubados.
Nessa divina comédia,
Papaconha e Amhitar,
Dom Quixote e Bode Ioiô
terminam por se encontrar.
Repito, é mais importante,
acreditai, não invento:
Faltem-nos dantes, cervantes
Mas nunca moinhos de vento.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014


CRÍTICA “OS DIAS ROUBADOS”, DE CARLOS VAZCONCELOS.


É TÃO BOM QUE NÃO CHEGOU A ME “ROUBAR” UM DIA INTEIRO

Por João Pedro Roriz

O escritor Carlos Vazconcelos não é só conhecido como também comemorado no Ceará. O Brasil não conhece o Brazil e muitos críticos, editores e artista do eixo Rio-São Paulo que definem os parâmetros qualitativos literários em esfera nacional ainda ignoram grandes autores regionais deste nosso grandiosíssimo País de inúmeras culturas. Eis um belo exemplo!
Conheci Carlos no lançamento do meu livro “O Mistério de Troia” que ele carinhosamente ajudou a organizar e que reuniu grande público em um teatro de Fortaleza. A cultura deste escritor é vasta e seu conhecimento sobre literatura é invejável. O homem lê um livro por dia e sua figura humilde e serena nos inspira tranquilidade e confiança.
“Os dias roubados” me foi confiado para uma leitura e opinião. O livro, publicado pela Editora Expressão e vencedor do Prêmio de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Ceará em 2011, já de cara me chamou a atenção pela bela capa e pelo ótimo título.
Mas confesso que não esperava tão bela aventura emocional. O protagonista-narrador da obra conta a sua história na prisão, suas desventuras amorosas e como foi vítima de um complô político gestado contra ele no ventre da Ditadura Militar. Mais do que isso: em solilóquios intelectuais é poéticos, o personagem central escreve em seu diários as mazelas de suas prisões internas – essas que levam uma pessoa à loucura e que, em muitos aspectos, superam as asperezas típicas de quem vê todos os dias o sol nascer quadrado.
Aliás, eis um trecho do livro que muito me chamou a atenção:
“Não sei quem forjou a expressão ‘ver o sol nascer quadrado’. Parece não ter sido um prisioneiro, ou se lembraria do luar, o luar quadrado. Só um prisioneiro sabe o que é a aproximação da noite, o que é o desabar das sombras para quem não tem intimidade com a lua. Desta sacada, neste cruzamento de duas avenidas sem fim, espero o crepúsculo e penso nos que ficaram la dentro, sem a abóboda celeste, sem o renovar do horizonte, sem outras brisas e outros cheiros que não o bolor dos séculos acumulados nos cantos”. Carlos Vazconcelos. Os Dias Roubados (Expressão)
A metalinguagem contida na obra (um livro dentro de outro livro) chamou a minha atenção. Existe um quê de mistério no ar pela própria condição do personagem ser o autor do livro – e a possibilidade de ele, de fato, existir. O realismo fantástico proposto por Carlos Vazconcelos pegou na veia e sangrou. Ao me presentear com a obra, o autor sabia que me agradaria, pois encontrou em meus livros uma proposta parecida e até uma frase que coincidentemente marca a sua obra e o meu livro “O mistério de Troia”: “Vivemos muitas vidas nessa vida”. Coincidência e destino! Estávamos mesmo ligados espiritualmente! Deus abençoe os escritores, principalmente os serenos, que plantam pequenas sementes para colher, silenciosamente, ramos de flores coloridas e cheias de vida. Eu não podia imaginar, mas essa obra, pequena na forma e grandiosa na fôrma, não me “roubaria” um dia sequer. Foi lida em poucas horas, na delícia de um bom sábado.
A alma e o pensamento humano são desafiadores. Iniciei a leitura com um pé atrás. Para mim, o bom escritor se desnuda e deixa a história ser contada através de sua pena sem preconceitos, sem paradigmas, sem exageros ou cortes de censura. Como todo autor que leio pela primeira vez, avancei nas primeiras páginas com enorme interesse, mas com a desconfiança típica das crianças que têm medo da primeira aula na escola. A partir do segundo movimento da ópera composta por Vazconcelos, eu me desliguei do mundo e embarquei de corpo e alma no coração do perturbado e apaixonante personagem central. E não foi por acaso. O autor vive a cabeça de um louco ex-prisioneiro, adoecido pela dor e pelos sentimentos de vingança abafados - solitário, famoso, idolatrado e ao mesmo tempo cativo das memórias de seu cárcere. É nesse ponto em que nos perguntamos: será que o autor de “Os dias roubados” é assim? A resposta? É claro que não. Ele é apenas (e isso já é muita coisa) um ótimo autor.
Loucos? Todos somos. Sociopatas? Nos tornamos por força maior. Carlos Vazconcelos está atento e inserido no contexto literário do seu País. E, que bom, ele dá uma “banana” para quem cria uma imagem preconceituosa sobre um autor local ou regional. Vazconcelos me ofereceu sua casa e seu vinho e agora me apontou caminhos sobre a loucura e sobre a importância de estar atento e vigilante em uma vida de emendas e interesses mesquinhos.
O personagem central de “Os dias roubados” acredita que não existe espaço para a ingenuidade nesse mundo. Mas hoje ele já sabe – e eu também – que é possível sim acreditar na justiça e nos homens de bem. A obra de Carlos chega no melhor momento. Não se fala em outra coisa atualmente no Brasil a não ser o aniversário de 50 anos da ditadura militar, da criação da comissão da verdade, da política e seus desacertos. E não é a toa que Carlos aborda esses assuntos de forma paralela em seu livro! Afinal, o Ceará é mais centro do País para a muitos brasileiros do que os “BRAZILEIRO” (com Z mesmo) do sudeste pensa.
Eu só vou sossegar quando vir os livros de Vazconcelos no ensino médio e nas universidades. A obra em primeiro plano ganha pelo aspecto poético e dramático. Sob um olhar acadêmico livre de estúpidos preconceitos bairristas, se transformará em um tratado sobre política, corrupção, ética e moral. A poesia que escorre pelos dedos do narrador é emprestada de seu autor verdadeiro, mas não é forçada – é uma poesia possível e confiada aos sábios – arte essa que está ao alcance de todos. E isso também é assunto para as escolas e universidades: a motivação de sabermos que todos somos capazes de emprestar ao mundo exemplos vívidos e emocionais, culturais e fantásticos!
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João Pedro Roriz é escritor e jornalista.