sábado, 31 de março de 2012



                                                 III DIMENSÃO

Ela, na praça do centro da cidade, ao lado da filha. Criança loura, olhos azuis, sorriso inflexível.
Todo dia, o dia todo, ela senta ao lado da filha de seis anos, desaparecida há quinze anos.

Silas Falcão


                                                      
           Paisagem

   Carlos Nóbrega


   Cliquei minha yashica
   Fiz uma foto
   triste e chique
   da tua ausência
   entre pinheiros.


quarta-feira, 28 de março de 2012


       QUARESMA

Cada homem quara
Dentro de si um ovo
No calor do coração

Lá fora a chuva prepara
O terreno e o silêncio
Para a chegada do espírito

Nos céus alinham-se
Tempo e anjos
Para a passagem do sol

Está bem próximo
O momento de cessarem os versos
E a poesia fazer-se gesto



Frederico Régis Pereira

  Coisas Engraçadas de Não se Rir XVII: Uma Crônica Excitante


  Raymundo Netto para O POVO

Na época já era de se ouvir na voz de Raulzito: mesmo usando 10% de minha cabeça animal, eu sei, o dicionário está mesmo cheio de palavras que eu nunca hei de usar. Da mesma forma, me parece, podemos dizer de um curioso lardo jornalesco atual. Foi passar a vista nas manchetes e... Não é que numa ilha das Filipinas as mulheres ameaçaram greve de sexo, caso seus homens não parassem com as contínuas disputas de terra? A (des) mobilização deu certo! Não me estranha, porém, a o motivo de tal união feminina: com o bloqueio das estradas pelos homens armados, elas passaram a ter dificuldade de receber os produtos de suas costureiras preferidas. "É mais fácil um camelo passar num buraco de uma agulha..."
“As lulas são bissexuais!”, afirmam os cientistas a partir de estudos de imagens submarinas — por mais de 20 anos assistem inimaginosas cenas. Para Hendrik Hoving, chefe de pesquisa, nada mais que explicado: as profundezas do mar são tão escuras que, na hora do “vamos ver”, não dá para ver é nada, ou mesmo perguntar se quem está do outro lado é macho ou fêmea. Vira-se com o que tem às mãos... No caso das lulas, creio, muitas.
Outra aconteceu na Flórida. Rapaz de 20 anos é preso ao abusar sexualmente de... uma máquina de salgadinhos? O “Bradenton Herald”, tablóide local, garantiu que o cidadão introduziu “parte de seu corpo” na indefesa máquina. O infratarado justificou, entretanto: “queria apenas arrancar dela umas moedas”. Ora, um estupro inda seguido de roubo só poderia abalar a fragilíssima cabecinha da opinião pública dos Estados Unidos.
Uma tupiniquim: No interior de São Paulo, mulher denunciou o conotativo pato do marido à polícia. Aos prantos, berrava que o sem-vergonha estava abusando sexualmente da denotativa pata de estimação da família. Ave Maria... Caso similar aconteceu em Arkansas. O marido pediu o divórcio após flagrar a mulher com o cachorro do amante, ou melhor, com o cachorro-amante. Logo aquele que deveria ser o melhor amigo do homem, nesse caso, era o da mulher.
No Espírito Santo, um jovem contador ganhou na justiça o direito de se masturbar no trabalho. Isto, porque conseguiu provar: sofre de “compulsão erótica”, síndrome a provocar alterações químicas cerebrais de tirar o juízo se não houver "descarga da tensão". Assim, dias há em que o trabalhador “bate o cartão” 47 vezes. Com o tratamento, assegura, já reduziu a sobrecarga a apenas umas 18, realizadas em 15min, a cada duas horas trabalhadas, para relaxar.
Em San Diego, um voo realizou um pouso emergencial. Motivo? Um casal entrou no banheiro e de lá não mais saiu. Paranóicos, os passageiros captaram: ataque terrorista! O avião solicitou apoio de caças e desviou a rota a Detroit. Em solo, agentes e cães farejadores invadiram o banheiro e descobriram o casal resfolegando de ponta-cabeça com as calças no piso, vítima de sua aérea fantasia sexual.
O destaque do acervo do Museu Falológico da Islândia (e existe isso?) é o “pintinho” (quase dois metros) de um cachalote, além de órgãos de leões marinhos e outros. Agora, finalmente, graças ao nonagenário recém-falecido, Pall Arason, o museu dispõe de uma amostra humana, removida, conservada e recebida em tapete vermelho para quem ainda não souber o que é tal coisa ou a quem quiser matar saudade do velho Pall.
E, para concluir, por ora, a pesquisa da Universidade de Kansas revela: “Ateus têm a vida sexual melhor que os cristãos”. O estudo concluiu que a “culpa” é o grande agente do baixo desempenho sexual dos religiosos. Nem rezando... Segundo a pesquisa, para se amar mais e melhor não é preciso fé, talvez, um energético... Ora, assim como tudo isso, também não sei para que serve essa crônica que é tal qual a história daquele gêmeo que, pensando em suicidar-se, matou o irmão por engano...

     

terça-feira, 27 de março de 2012


Viaje Galáxico, de Alejandro Xul Solar


                                          O COMETA: “ATÉ, MOÇO!”

 
1.

O Halley passou em 1986
e eu tinha 11 anos.
75-76 anos se terão passado
até que passe novamente.
Eu mesmo serei passado.

2.

O Halley passou em 1986
e eu tinha 11 anos.
Quando passar novamente em 2061
eu não sei se terei 87.
Se,
meus olhos olharão admirados
não para o cometa
mas por ainda estarem a olhar.

3.

O Halley passou em 1986
e eu tinha 11 anos.
Mais 76 até que passe novamente: quanto tempo!
“O tempo”, diz passavelmente Kant,
“nada mais é que a forma pura da intuição sensível
do sentido interno”;
“o tempo”, digo eu,
“é não mais ver o Halley passar”.

4.

O Tempo: três ponteiros num círculo
                                                                                   vicioso.



Poeta de Meia Tigela
           Poeta é destaque na Academia Cearense de Letras


Foto: Silas ao lado de Zé Ramalho, seu maior ídolo
Com apenas 12 anos, Silas Façanha, aluno do 7º ano do Ensino Fundamental, já possui um vasto currículo. Com mais de 100 poesias escritas, ele já é conhecido como o ‘menino da caneta’, que recebeu esse título por Tales de Sá Cavalcante, dono da Organização Farias Brito. Silas que atualmente faz parte da Associação Cearense de Escritores (ACE), falou para o Blog do Labjor da sua paixão por escrever.
Blog do Labjor: Como você adquiriu esse interesse pela literatura?
Silas Façanha: Quando eu tinha 8 anos, tive um trabalho de Literatura onde eu teria que escrever um poema, daí meu interesse pela literatura só aumentou.
B.L: Você foi incentivado pelos seus pais para começar a escrever?
S.F.: Não, despertei o interesse sozinho, mesmo.
B.L. Você recebeu uma homenagem pela Academia Cearense de Letras (ACL), com o poema ‘A Caneta do Congresso’, onde você critica o Congresso Nacional por não agir com tanta eficiência como antes, de onde vem esse pensamento crítico? Pois não é muito comum ver um garoto da sua idade ter essas ideias. Como seus colegas de sala reagem ao seu pensamento?
S.F: A respeito do meu senso crítico, eu acordo bem cedo, assisto o ‘Jornal da Manhã’, leio bastante, sou bem curioso, além de que na escola meu pensamento é muito bem desenvolvido, adoro filosofia. Meus amigos acham meio estranho o que eu escrevo, e em algumas poesias dizem que eu ‘viajo’, eles não têm minha visão crítica das coisas, tudo o que eu escrevo não tem sentido para eles.
B.L.: Você já faz parte da Academia Cearense de Escritores (ACE), quantas crianças fazem parte junto com você?
S.F: Atualmente só tem eu mesmo de criança, tem um ‘xará’ meu lá, mas de criança mesmo só eu. (risos)
B.L: Em quem você se inspira para fazer seus poemas? Quem é (são) a(s) pessoa(s) que mais influencia(m) suas ideias?
S.F: Tive a oportunidade de, mesmo que rápido, conhecer o cantor Zé Ramalho, eu o admiro muito, pela sua trajetória de vida e como ele conseguiu sucesso.
B.L: Você segue uma ideologia quando critica o que se passa ao seu redor, com quem você discute isso? E qual a sua posição política?

S.F.: Eu discuto muitas vezes com o meu irmão mais velho, João Mateus, em casa mesmo. Eu tenho uma visão ‘ambidestra’, um pouco de esquerda mas, com apoio aos de direita.
B.L: Por que você escreve essa crítica para o atual cenário político brasileiro?
S.F: Acredito que as pessoas devem desenvolver um senso crítico maior, hoje elas se preocupam com muitas futilezas, coisas pequenas.
B.L: De onde vem as ideias para escrever? Você segue algum padrão de língua ou ideia?
S.F : Não sigo nenhum padrão, não gosto de padrões, muito menos de leis gramaticais, nada contra aos que trabalham com isso, mas creio que precisa ter sentimento no que se escreve principalmente e não seguir uma métrica onde todas as poesias ficam iguais, quero que o que eu escrevo seja diferente.
B.L: Academicamente falando, qual a carreira que você vai seguir?

S.F: Queria ser escritor, mas no Brasil escrever só serve como hobbie mesmo, então quero fazer vestibular para Medicina.
B.L: Medicina? Por que?
S.F: Quero ingressar na carreira de Psiquiatria, só assim eu vou tentar entender o que se passa na cabeça do ser humano, me interesso muito em entender isso.
A entrevista, que ocorreu às 21:00 da última terça, 30, terminou ao som de bocejos do entrevistado, logo após, o poeta foi se preparar para dormir, para acordar cedo para assistir o ‘Jornal da Manhã’ e mais tarde ir para o colégio, como todo garoto de sua idade.

                                     A Caneta do Congresso
(Poema de Silas, no qual foi homenageado pela Academia Cearense de Letras)
                                                       

Já não escreve mais
A caneta do congresso
E agora não posso
Escrever nem mesmo um verso

A caneta não escreve
A polícia não atira
Os médicos não ajudam
E os políticos lhe contam uma mentira
Uma mentira de ninar
Uma mentira para acreditar
E o pior
Uma mentira que faz votar
Não vou dormir após o canto
Não vou crer após os juramentos
Votar após as promessas?
Outubro é mês dos nojentos
Nesse Brasil
Há política de lixo
Homem briga na câmara
Como se fosse bicho
Nessa política
Não vou votar jamais
Já que a caneta do congresso
Não escreve mais


Texto de Pedro Motta
                                    O QUE NÃO ME FALAM...


Pedro Salgueiro para o jornal O POVO


(Dalton Trevisan e o artista plástico Poty bem jovens) 

O mestre Dalton Trevisan (o mais recluso e misterioso escritor brasileiro) costuma escrever referências autobiográficas camufladas em seus contos: no meio de um diálogo aparentemente banal, não raras vezes no próprio título da história, ou mesmo em “orelhas” não assinadas de seus primeiros livros, ele dá pistas de suas leituras, de suas fontes históricas e literárias, até de seus métodos para apreender suas famosas narrativas, de como as escreve, e não raramente em frases cheias de ironias e “cascas de bananas” que só quem conhece muito bem sua obra vai decifrando aos poucos.

Numa delas dizia: “O que não me contam escuto atrás da porta”.

Tempos depois de encontrar a intrigante (e instigante) frase num de seus livros li num artigo escrito pelo poeta José Paulo Paes (seu colega de juventude na Curitiba dos anos 1950) que um grupo de insipientes escritores costumava andar pelas ruas bisbilhotando pelas frestas das portas e janelas e escutando conversas alheias: o Vampiro de Curitiba era um deles.

***

Quase todos os escritores têm como fonte de sua literatura conversas ouvidas das mais diferentes maneiras, umas lícitas, outra nem tanto.

Eu propriamente (descontando a desigual comparação) vivo de ouvido aceso, em filas de bancos, em alcovas, nos escurinhos dos cinemas, pois daí pode surgir uma pérola anônima, um bom tema para um conto, ou no mínimo um mote para uma conversa banal na repartição.

Certa vez vinha eu num ônibus com o ouvido atento a um relato escabroso de traição contado por uma senhora em cadeira vizinha. Já passava uns dois quarteirões de minha parada quando a tal senhora simplesmente resolveu mudar de assunto. Senti uma vontade danada de lhe dar uns “cascudos”.

Desci irritado e sem o final esperado de meu conto.

Não raras foram as vezes em que não consegui escutar todo o desenrolar de uma fofoca, notícia no rádio ou conversa de estranho (talvez por isso muitos de meus continhos não tenham um final, o que tem irritado por demais os meus parcos leitores).

Mas dia desses travei estes dois estranhos diálogos reproduzidos abaixo (não por possuírem, em si, algum valor literário, muito mais por terem as palavras ficado rodopiando em minha mente por bastante tempo, quando então peguei uma caneta e anotei mais para me livras delas):


Na rua
— Oh, cristão, me dê ajuda para eu enterrar uma neta de vinte dias que morreu de cansaço!

— Perdão, minha senhora...

No ponto do ônibus
— Olha, meu filho, a situação está difícil...

— Pois é...

— Outro dia encontrei um ex-aluno meu na Praça do Ferreira e ele quase chorando me confessou...

— Sim!?

— Moço! (Apurando a vista)... É o Parangaba/Papicu?

— É, sim, senhora!

— Obrigada!...

— ?

— Até logo, meu filho!...
                                    ELA ME PÔS LICANTRÓPICO
   Um Lobisomem Apaixonado" (1991), de Amadeu Escórcio (1954)

Poeta de Meia Tigela

                                  Ela me pôs licantrópico,
Sedento, espumando esguio
Ao mundo, à luz arredio:
Injetou-se em mim, narcótico,
Ve(ne)noso rio. Idiótico,
Sofri cada calafrio!
...Mas escapei por um fio
Do seu domínio despótico:
E escrevi este estrambótico
Poema de recém-sóbrio.

 

(Publicado na revista Pechisque; Extraído do " CONCERTO Nº 1NICO EM MIM MAIOR PARA PALAVRA  E ORQUESTRA", 1º Movimento, Abertura do Livro 4)

Era uma vez no oeste



O diretor Sérgio Leone, o rude olhar de Charles Bronson, a beleza estonteante de Claudia Cardinale

Por Carlos Vazconcelos

Três sujeitos carrancudos se apossam da erma estação de Flagstone. Há um encontro marcado. A espera se desenrola por longos catorze minutos em que se ouve uma sinfonia de sons triviais, espécie de trilha sonora a embalar o tédio dos intrusos: o moinho a ranger com lentidão, uma goteira sobre o chapéu, o estalar de dedos, o zumbido intermitente de uma mosca.
Quando o trem estaciona não desce ninguém. A parada é rápida e o apito ecoa novamente anunciando a despedida do cavalo de ferro. Os três comparsas ensaiam dar meia-volta, mas param perplexos ao escutarem um som de gaita. Essa toada sempre prenunciará o tom soturno da morte. Por trás da gaita um homem de olhar lancinante.
“Trouxe um cavalo para mim?”
(Risos) “Parece que falta um cavalo.”
“Não. Trouxeram dois a mais."
Assim começa o maior faroeste de todos os tempos, capaz de deleitar qualquer espectador: Era uma vez no Oeste, dirigido por Sérgio Leone, com música de Ennio Morricone, estrelado por Henry Fonda, Charles Bronson, Cláudia Cardinale e Jason Robards. Filme silencioso, com poucos mas inteligentes diálogos. Não há palavrórios nem tiros ao vento. Toda bala deverá ter um endereço. Os closes das fisionomias e a amplitude das belas paisagens se alternam, mostrando que tanto nos escaninhos das faces quanto nas sinuosidades dos caminhos estão escritas muitas histórias.

No final dos anos 1960, o gênero faroeste entrava em decadência. Leone estourara as bilheterias com o sucesso do chamado Cinema Spaghetti, principalmente na famosa Trilogia dos Dólares: Por um punhado de dólares, Por uns dólares a mais e Três homens em conflito (ou O bom, o mau e o feio), que revelara o grande Clint Eastwood (“Eu gosto de Clint Eastwood porque ele só tem duas expressões faciais: uma com o chapéu e outra sem ele.” – brincou certa vez Sérgio Leone). O diretor italiano preparava seu novo e ambicioso projeto. Tratava-se de Era uma vez na América, saga italiana sobre a máfia, outra obra-prima do cinema italiano. Mas a Paramont fez uma imposição: só arcaria com os custos do novo filme de Leone se este prometesse que produziria antes outro faroeste. Leone aceitou e provou que uma obra-prima pode ser realizada sob encomenda, sem prejuízo para a arte. Era uma vez no Oeste é de 1968. Era uma vez na América ficou congelado até 1984. Leone sempre quis provar que o gênero faroeste não é apenas entretenimento.
Os quatro atores principais estão impecáveis em seus papéis e cada um singulariza com traços fortes seu personagem. Henry Fonda é o inescrupuloso bandido Frank. Até então, Fonda só interpretara mocinhos, e esta é uma das surpresas do filme. Seu primeiro close é de perfil. Fã nenhum poderia acreditar. O surpreendente Leone faz girar a câmera e revela para o espectador (sem dúvida extasiado) os olhos azuis de Fonda, a boca cheia de fumo, um meio sorriso cínico. Isso depois de haver exterminado uma família inteira, inclusive o pequeno Timmy, que saiu do casarão assustado com a chacina, mas não poderia permanecer vivo porque um dos comparsas deu com a língua nos dentes:

 “O que vamos fazer com ele, Frank?”
“Já que falou meu nome...” (Uma cusparada e... bangue!)
Tudo isso sob uma bonita e angustiante melodia de Morricone.
Charles Bronson é o mais misterioso dos personagens. Aparece na sombra e maneja dois instrumentos com igual frieza e talento: uma gaita e uma colt. É descendente de índios, impassível como uma pedra e passa a ser chamado “O Gaita” (ou “Harmônica”, e cuja interpretação inicialmente deveria ser de Clint Eastwood).

Jason Robards interpreta Cheyenne, tipo de vilão romântico, e faz contraponto com a solidez inarredável do Gaita. Entra na briga quando descobre que a quadrilha do impiedoso Frank está cometendo atrocidades e espalhando vestígios falsos, para culpar seu bando e pôr a polícia nos seus encalços.

Cláudia Cardinale é a bela prostituta Jill, que resolve sair do luxo de Nova Orleans para se casar com McBain, um visionário irlandês, homem bem-intencionado, cuja mente viaja mais depressa do que o progresso e projeta no futuro sua fortuna. Pela primeira vez, num faroeste, Leone dá relevo a uma personagem feminina, peça fundamental no conflito. Movidos por interesses distintos, Cheyenne e Gaita “assinam” um acordo tácito para destruir a vilania de Frank e sua tenebrosa malta. Frank “trabalha” para Morton (Gabriele Ferzetti), um homem ganancioso, que mal consegue se manter de pé devido a uma doença nos ossos, e habita um luxuoso vagão de trem. Mas Frank é muito orgulhoso para receber ordens de um “patrão” aleijado.
Era uma vez no Oeste é o resultado da união primorosa entre direção, atuação, trilha sonora e fotografia. Simplesmente uma aula de narrativa. A cena do duelo final, entrecortada por flashbacks reveladores, com tempo retardado para alimentar o suspense, é notável. Aliás, o duelo tem dupla conotação, pois há simultaneamente ao movimento dos corpos o confronto dos olhares, num jogo de câmeras que permitem closes extremos, exacerbados, como nunca se viu na história do cinema.
Com esta película, Sérgio Leone faz citações intencionais e presta homenagem a outros grandes filmes e diretores: Rastros de ódio e O cavalo de ferro (John Ford), Matar ou morrer (Fred Zinnemann), John Guitar (Nicholas Ray), etc. O filme é um nostálgico aceno de adeus, ao gênero, aos durões, a uma maneira de se produzir cinema, como o faria mais tarde, bem mais tarde, Clint Eastwood com Os imperdoáveis.
Se o filme é “uma dança da morte”, nas palavras do próprio Sérgio Leone, a dança dura, em sua versão completa, quase três horas (Por falar em morte, uma curiosidade: Al Mulock, que interpretou um dos três pistoleiros da cena inicial, suicida-se no set de filmagem).
Obrigatório até para quem pensa que não curte o gênero bangue-bangue, pois ninguém resiste a uma narrativa bem contada. Mas talvez fique a pergunta: e não há nada que o desabone? Como, se tudo no filme é eloquente, épico, grandioso, até mesmo (ou principalmente) os pormenores?

sábado, 24 de março de 2012



                                                DEPRESSÃO

                               O que poderia não ter sido e que foi.

                               Silas Falcão


                                                 
 CLARIVIDÊNCIA

 Poeta Frederico Régis

Estou no limiar do não dizer
Soa-me familiar planície
Onde me calco no voo

Já entendi a natureza da manhã
E nada acrescentaria ao enigma
Dos anos então contidos na alma

Sobrepujo ambições e ergo a edificação
Que só eu contemplo do silêncio
Já me sei unidade no mundo

Preciso me debruçar nos pássaros
E buscar entender a aerodinâmica
Que erigiu o olhar da consciência

Sou um ser rufante
E acerto a palavra rude
Isso me é feitio preciso

Frente à certeza de que o cosmos
É não somente o estar atento
Guio pousares com meu amuleto

Estou no limiar do só viver
Talvez um átimo pleno de luz
Substantivo objetivo direto

sexta-feira, 23 de março de 2012

                                                             
                                            O Górki de Ângela

Batista de Lima.
Caderno 3, Diário do Nordeste, 20/03

Tépido e gorduroso é o texto de Ângela Calou. Calorento, fogo de monturo, borralho. Sebosa sua metáfora. Suja de eras, balseiro de signos, coivara de suposições. Ler essa moça é um desossamento. É preciso extirpar musculaturas, atolar-se. Não se consegue tomar pé nas suas dimensões. Falta fôlego para tanta fundura. Lodaçal de possibilidades. É uma senhora madura, nascida em 1988, mas que já existia muito antes dos aluviões. E é de Juazeiro do Norte. Infeliz de quem ler "Eu tenho medo de Górki". Mais infeliz de quem não ler.
Há um buraco que ela constrói de dentro para fora. Uma explosão que intumesce as coisas, como um estômago que se instaura onde a gente pensa que nada há. Ângela garimpa as coisas nas palavras e as palavras nas coisas. Suas escavações desestabilizam os códigos e criam pulsações onde vidas se refugiam. Perversa, seu corte é feito com gume cego. Doloroso corte que vitima o leitor invasor dos seus domínios. Seu texto esburacado só permite leituras trepidantes. Não é apenas poesia em prosa, mas também uma troca de sopapos com Clarice que ousou partir mais cedo. É um texto cheio de calos, novelos invisíveis, palavras blindadas em perscrutação. Ela prospecta em desertos para encontrar oásis.
A certa altura da jornada, ela chama os mortos para o jantar no dia do avesso de Joana, uma das suas enigmáticas personagens. Quando está movida a desimpressão, encara a paz das telhas e faz chover canivetes e demônios incautos para martírio das cicatrizes. Por isso que seu choro é para dentro e tudo que por fora fica, oco se torna. Tudo vaza para dentro em contrapassos da lógica. Isso porque essa moça é um poço de rebeldia, um calabouço das convenções. Seu coração é guardado numa pochete cadeada. A fome ela guarda no congelador porque acha terrível não ter fome. Mas quando se chega ao conto "Eu tenho medo de Górki", é o leitor que se fere sobre um formigueiro de imagens. Dóris emerge como última esperança de salvação do código. A palavra sobrevive.
Em "Capricho 43" ela revela: "Eu sou o inseto sobre a cama (...) Eu sou os dois - o que observa e aquele que se abandona à medida da vista de seu observador (...) Eu sou uma frase de não-sentido". Já em "Quase uma fantasia", ela mostra muito conhecimento de Beethoven. Chega a concluir que não foi o compositor que ensurdeceu mas o mundo que de repente emudeceu. Tudo semelha a uma "ode à melancolia em fim de tardes maceradas e distraídas no mormaço da escuridão". Essa melancolia também transpira do texto de Ângela como para dizer que é a morte que abre as portas ao mundo da alegoria. Daí que seu talento é assombroso e seu mundo é como que algo despedaçado a necessitar de um ajuntamento de cacos para dar sentido ao existir.
Além da colocação da fome no congelador, Ângela ronda a cidade com os olhos cheios de sede. Mesmo assim, sua verdade é verde, a morte é branca. Ela consome a cidade e,ao mesmo tempo, dela vaza pelo oco incrustado no meio das falas e das coisas. Então ela pensa em não mais pensar, mas apenas transitar pelos "caminhos lodosos de suas rusgas internas", como quem conta grãos sem a certeza de que os está contando. Isso não impede de, escondida, rasgar as coisas de dentro para fora e brotar nelas, emergindo de mergulhos. Essas coisas são tão vasculhadas que, personificadas, a autora praticamente executa uma terapia que funciona a partir do leito das metáforas.
A leitura do mundo, feita por Ângela Calou, dispensa significantes porque seu pé de apoio está muito aquém das superfícies. As poucas vezes em que emerge dessas profundidades é para roubar as cores das coisas, numa traquinagem que estilhaça as encostas da tarde. Daí que sua escritura radical se torna encantadora. Há um singelo encanto radical que faz do paradoxo uma brisa de outubro e extrai das metáforas mais sisudas seus sentidos mais inconfessos. Por isso que o foco de suas incursões no campo do humano se fixa na fala. Ela atua no que há de mais tenso entre o indivíduo e as engrenagens sociais. Essa tensão é sua matéria prima. Acontece que as coisas também entram como actantes nesse processo.
Essas coisas são personificadas, dialogam entre si e também possuem seu código para colocar o mundo em desarranjo. É daí que nasce sua fala, como rescaldo dos atritos entre metáforas e metonímias. O corpo dá lugar á corporeidade, como uma desconfiança diante da pouquidade do que é sólido. Há um Antoine na sua vida que ousou entrar no texto, concha, molusco e boca, enquanto a sede é da narradora. Amá-lo é amar-se. É por isso que pela segunda vez ela tem dezoito anos. Antoine é o Poeta de Meia-tigela? É o que sugere o Posfácio, que se configura como a culminância do livro. São indizeres que não deixam de dizer. São doeres que não deixam de doer. São desestórias que não deixam de historiar.
É difícil não ter medo de Górki. É uma leitura para ser feita pelo avesso. Uma transgressão precisa de uma leitura transgressora. É preciso alojar-se na estrutura profunda para encetar uma emersão de dentro para fora. É preciso impregnar-se de sombras para a conquista da mais nítida claridade. O oco que ela vasculha nas falas e nas coisas é um buraco a ser preenchido pelo leitor, é um vazio que quanto mais repleto fica, mais oco se torna. Não se lê Ângela Calou se não se usarem as suas e as nossas ferramentas de escavação. Há uma teia que ela tece, que pesca o leitor de fora para dentro, para que tudo comece pelo porão. Há uma caverna que nos engole, metáfora de Jonas, o profeta.
Por fim chega-se ao final do livro com a ilusão de que se conclui a leitura. Impossível livrar-se de um afogamento se a batalha da emersão não continuar além do texto que nos é dado. Ângela Calou abre apenas uma fenda que engole o leitor, afogando-o. A leitura é pois um desafogamento. O signo verbal parece ser incompetente para ajustar significado e significante. O referente cai numa deriva que o obriga a criar um porto para chegar. Esse dilema sugere a metáfora do dilúvio quando a autora promove um ponto de chegada. A leitura desse livro é um exercício de coragem. É preciso perder-se para se conseguir achar-se. Se Ângela Calou tem medo de Górki, eu tenho medo de Ângela Calou.