terça-feira, 27 de março de 2012

Era uma vez no oeste



O diretor Sérgio Leone, o rude olhar de Charles Bronson, a beleza estonteante de Claudia Cardinale

Por Carlos Vazconcelos

Três sujeitos carrancudos se apossam da erma estação de Flagstone. Há um encontro marcado. A espera se desenrola por longos catorze minutos em que se ouve uma sinfonia de sons triviais, espécie de trilha sonora a embalar o tédio dos intrusos: o moinho a ranger com lentidão, uma goteira sobre o chapéu, o estalar de dedos, o zumbido intermitente de uma mosca.
Quando o trem estaciona não desce ninguém. A parada é rápida e o apito ecoa novamente anunciando a despedida do cavalo de ferro. Os três comparsas ensaiam dar meia-volta, mas param perplexos ao escutarem um som de gaita. Essa toada sempre prenunciará o tom soturno da morte. Por trás da gaita um homem de olhar lancinante.
“Trouxe um cavalo para mim?”
(Risos) “Parece que falta um cavalo.”
“Não. Trouxeram dois a mais."
Assim começa o maior faroeste de todos os tempos, capaz de deleitar qualquer espectador: Era uma vez no Oeste, dirigido por Sérgio Leone, com música de Ennio Morricone, estrelado por Henry Fonda, Charles Bronson, Cláudia Cardinale e Jason Robards. Filme silencioso, com poucos mas inteligentes diálogos. Não há palavrórios nem tiros ao vento. Toda bala deverá ter um endereço. Os closes das fisionomias e a amplitude das belas paisagens se alternam, mostrando que tanto nos escaninhos das faces quanto nas sinuosidades dos caminhos estão escritas muitas histórias.

No final dos anos 1960, o gênero faroeste entrava em decadência. Leone estourara as bilheterias com o sucesso do chamado Cinema Spaghetti, principalmente na famosa Trilogia dos Dólares: Por um punhado de dólares, Por uns dólares a mais e Três homens em conflito (ou O bom, o mau e o feio), que revelara o grande Clint Eastwood (“Eu gosto de Clint Eastwood porque ele só tem duas expressões faciais: uma com o chapéu e outra sem ele.” – brincou certa vez Sérgio Leone). O diretor italiano preparava seu novo e ambicioso projeto. Tratava-se de Era uma vez na América, saga italiana sobre a máfia, outra obra-prima do cinema italiano. Mas a Paramont fez uma imposição: só arcaria com os custos do novo filme de Leone se este prometesse que produziria antes outro faroeste. Leone aceitou e provou que uma obra-prima pode ser realizada sob encomenda, sem prejuízo para a arte. Era uma vez no Oeste é de 1968. Era uma vez na América ficou congelado até 1984. Leone sempre quis provar que o gênero faroeste não é apenas entretenimento.
Os quatro atores principais estão impecáveis em seus papéis e cada um singulariza com traços fortes seu personagem. Henry Fonda é o inescrupuloso bandido Frank. Até então, Fonda só interpretara mocinhos, e esta é uma das surpresas do filme. Seu primeiro close é de perfil. Fã nenhum poderia acreditar. O surpreendente Leone faz girar a câmera e revela para o espectador (sem dúvida extasiado) os olhos azuis de Fonda, a boca cheia de fumo, um meio sorriso cínico. Isso depois de haver exterminado uma família inteira, inclusive o pequeno Timmy, que saiu do casarão assustado com a chacina, mas não poderia permanecer vivo porque um dos comparsas deu com a língua nos dentes:

 “O que vamos fazer com ele, Frank?”
“Já que falou meu nome...” (Uma cusparada e... bangue!)
Tudo isso sob uma bonita e angustiante melodia de Morricone.
Charles Bronson é o mais misterioso dos personagens. Aparece na sombra e maneja dois instrumentos com igual frieza e talento: uma gaita e uma colt. É descendente de índios, impassível como uma pedra e passa a ser chamado “O Gaita” (ou “Harmônica”, e cuja interpretação inicialmente deveria ser de Clint Eastwood).

Jason Robards interpreta Cheyenne, tipo de vilão romântico, e faz contraponto com a solidez inarredável do Gaita. Entra na briga quando descobre que a quadrilha do impiedoso Frank está cometendo atrocidades e espalhando vestígios falsos, para culpar seu bando e pôr a polícia nos seus encalços.

Cláudia Cardinale é a bela prostituta Jill, que resolve sair do luxo de Nova Orleans para se casar com McBain, um visionário irlandês, homem bem-intencionado, cuja mente viaja mais depressa do que o progresso e projeta no futuro sua fortuna. Pela primeira vez, num faroeste, Leone dá relevo a uma personagem feminina, peça fundamental no conflito. Movidos por interesses distintos, Cheyenne e Gaita “assinam” um acordo tácito para destruir a vilania de Frank e sua tenebrosa malta. Frank “trabalha” para Morton (Gabriele Ferzetti), um homem ganancioso, que mal consegue se manter de pé devido a uma doença nos ossos, e habita um luxuoso vagão de trem. Mas Frank é muito orgulhoso para receber ordens de um “patrão” aleijado.
Era uma vez no Oeste é o resultado da união primorosa entre direção, atuação, trilha sonora e fotografia. Simplesmente uma aula de narrativa. A cena do duelo final, entrecortada por flashbacks reveladores, com tempo retardado para alimentar o suspense, é notável. Aliás, o duelo tem dupla conotação, pois há simultaneamente ao movimento dos corpos o confronto dos olhares, num jogo de câmeras que permitem closes extremos, exacerbados, como nunca se viu na história do cinema.
Com esta película, Sérgio Leone faz citações intencionais e presta homenagem a outros grandes filmes e diretores: Rastros de ódio e O cavalo de ferro (John Ford), Matar ou morrer (Fred Zinnemann), John Guitar (Nicholas Ray), etc. O filme é um nostálgico aceno de adeus, ao gênero, aos durões, a uma maneira de se produzir cinema, como o faria mais tarde, bem mais tarde, Clint Eastwood com Os imperdoáveis.
Se o filme é “uma dança da morte”, nas palavras do próprio Sérgio Leone, a dança dura, em sua versão completa, quase três horas (Por falar em morte, uma curiosidade: Al Mulock, que interpretou um dos três pistoleiros da cena inicial, suicida-se no set de filmagem).
Obrigatório até para quem pensa que não curte o gênero bangue-bangue, pois ninguém resiste a uma narrativa bem contada. Mas talvez fique a pergunta: e não há nada que o desabone? Como, se tudo no filme é eloquente, épico, grandioso, até mesmo (ou principalmente) os pormenores?

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