Filho Ilustre
Escolhi posição destacada entre as mesinhas do patamar da igreja. Tinha a visada perfeita dos ângulos. Também me punha ao alcance dos olhos daqueles por quem preferia ser visto. Em completo anonimato, aguardava o leilão.
Vi chegarem, um por um, os filhos abastados do lugar que também era meu... Não tanto quanto deles é bem verdade, mas meu também porque brotei daquele pedaço de chão.
O fazendeiro Valdenor Lopes, dono de inumeráveis cabeças de chifres (e mochas), senhor de infindáveis hectares, como de costume assumia a cabeceira de um estirão de mesas. Contava com o auxílio de suas moscas varejeiras para, sem muito alarde, arrematar as prendas com os mais auspiciosos lances.
Só dois oponentes lhes faziam frente: Doutor Jurandir Nocrato. Médico radicado há tantos anos numa cidadezinha da América do Norte. Por lá, fizera fortuna da profissão. O São João era sempre motivo de retorno entusiástico à terrinha que o pariu... Filho ilustre de Manipueiras! Bem antes de – sem eira nem beira – minha pessoa sair deste buraco, já se ouvia comentários sobre certo hospital instalado nas terras do Tio Sam. Propriedade passada em cartório e tudo! Nem é preciso dizer que seu séquito também se esparramava pelas mesas adjacentes.
Basílio Pedrosa completava o que todos conheciam por “A Santíssima Trindade”, alcunha coletiva providenciada pelo ministro Cirineu (de conluio com o vigário) em sinal de eterna gratidão pelos serviços prestados à paróquia. Empresário estabelecido na capital, aprendera a fazer fortuna com inegável determinação... Segundo as más línguas, também com inaudita façanha. Vasta era sua comitiva. Homens de bem, todos eles...
Brevemente os três célebres manipueirenses reconheceriam seu quarto filho... Sorrateiramente acomodado a uma mesa de cervejaria... Sem agrados e agregados... Tão ilustre quanto desconhecido.
Assim que o pregoeiro soltasse sua língua deixaria, inicialmente, que eles rasgassem entre si os maiores lances. Padre Gonçalves, como sempre, daria pulinhos orgíacos a cada dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!
Quando me fiz valer entre os homens, todos eles me olharam descrentes. As mulheres, ouriçadas. Quem seria o forasteiro a trocar quinhentos... Oitocentos paus por um frango desmilinguido... Quem era o assoberbado dando quinze mil reais por um carneiro e ainda por cima tendo o desplante de ofertar aos reis da cocada preta!?
Alas da desunida “santíssima trindade” confabulavam entre si. Um fato inédito com toda certeza, já que a disputa sempre esteve restrita ao trio. Reuniriam forças contra mim, isso parecia claro. A população de anônimos deleitava-se. Alguns até já pareciam reconhecer-me e começavam a esboçar gestos com o polegar.
Naquela noite, acima de mim só as estrelas brilhavam; até o sereno junino evaporava-se de mansinho ao calor encorpado do populacho que acorria ao leilão feito mariposa; A qualquer iniciativa da “santíssima trindade” – agora fazendo jus ao apelido – a brincadeira de gato e rato recomeçava... Só acabando quando eu bem quisesse.
Vazava quentão, o olhar de Valdenor. Jurandi e Basílio pareciam entalados por bolo de macaxeira... Os olhos mal disfarçavam o espanto e a indignação.
De todos ali, nem mesmo o velho leiloeiro reconhecia o filho bastardo... Um dia fugido daqueles confins para ganhar a vida na babilônica Rio de Janeiro de São Sebastião.
Agora que fazia o percurso de volta, a novidade era que, desta vez, estava farto de concorrências.
Brennand de Sousa
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