quarta-feira, 30 de março de 2011



                                               Insônia

Crônica de Pedro Salgueiro para O povo

Começo de madrugada. Cachorros ladram. Um burburinho chega da vizinhança. Agora um vento frio entra pela clarabóia. De quando em vez um galo canta, e espera a resposta dos outros. Um soluço corta o silêncio na casa ao lado: alguém chora um antigo amor? Um pai lamenta o destino da filha? Ao longe uma sirene, bem mais distante um sino toca. Seria já manhã? Ou todos os ruídos da noite confluíam para aquele quarto simples de subúrbio: todos os lamentos perdidos, súplicas vãs, soluços de arrependimento ecoavam pelas paredes, farfalhavam entre as folhas da acácia, resvalavam nas frestas da persiana — um milhão de minutos pingava no relógio da sala: os rostos dos familiares mortos ganhavam uma nitidez surpreendente. Outro galo confirmava a madrugada, a mesma madrugada de outras épocas, como aquela em que amarraram o bêbado Napoleão no centro da praça — merecido castigo por seu misterioso crime — quando se fecharam todas as janelas: menos uma, logo aquela... a culpada de tudo. Um grilo agora eternizava a madrugada, fazendo com que a manhã fosse uma esperança perdida, um sonho que nunca se realizaria.

terça-feira, 29 de março de 2011


NO SEMÁFORO

Para o Silas Falcão

Sua face contrita
a mão estendida
e o roto blusão
põem em dúvida:
toda frase bendita
a terra prometida
a civilização

Por Carlos Vazconcelos
                                                  

                                     Pedro Salgueiro


enviou VOCÊ SABE O QUE É UM PALÍNDROMO?

Um palíndromo é uma palavra ou um número que se lê da mesma maneira nos dois sentidos, normalmente, da esquerda para a direita e ao contrário.
Exemplos: ovo, osso, radar.
O mesmo se aplica às frases, embora a coincidência seja tanto mais difícil de conseguir quanto maior a frase; é o caso do conhecido: socorram-me, subi no ônibus em marrocos.

Diante do interesse pelo assunto (confesse, já leu a frase ao contrário), tomei a liberdade de selecionar alguns dos melhores palíndromos da língua de Camões...

Anotaram a data da maratona
Assim a aia ia a missa
A diva em argel alegra-me a vida
A droga da gorda
A mala nada na lama
A torre da derrota
Luza rocelina, a namorada do manuel, leu na moda da romana: anil é cor azul
O céu sueco                    
O galo ama o lago
O lobo ama o bolo
O romano acata amores a damas amadas e roma ataca o namoro
Rir, o breve verbo rir
A cara rajada da jararaca
Sairam o tio e oito marias
Zé de lima rua laura mil e dez

E VOCÊ SABE O QUE É TAUTOLOGIA?

É o termo usado para definir um dos vícios, e erros, mais comuns de linguagem. Consiste na repetição de uma ideia, de maneira viciada, com palavras diferentes, mas com o mesmo sentido.
O exemplo clássico é o famoso 'subir para cima' ou o 'descer para baixo'. Mas há outros, como pode ver na lista a seguir:

- elo de ligação
- acabamento final
- certeza absoluta
- quantia exacta
- nos dias 8, 9 e 10, inclusive
- juntamente com
- expressamente proibido
- em duas metades iguais
- sintomas indicativos
- há anos atrás
- vereador da cidade
- outra alternativa
- detalhes minuciosos
- a razão é porque
- anexo junto à carta
- de sua livre escolha
- superávit positivo
- todos foram unânimes
- conviver junto
- fato real
- encarar de frente
- multidão de pessoas
- amanhecer o dia
- criação nova
- retornar de novo
- empréstimo temporário
- surpresa inesperada
- escolha opcional
- planejar antecipadamente
- abertura inaugural
- continua a permanecer
- a última versão definitiva
- possivelmente poderá ocorrer
- comparecer em pessoa
- gritar bem alto
- propriedade característica
- demasiadamente excessivo
- a seu critério pessoal
- exceder em muito .

Note que todas essas repetições são dispensáveis.
Por exemplo, 'surpresa inesperada'. Existe alguma surpresa esperada? É óbvio que não.
Devemos evitar o uso das repetições desnecessárias. Fique atento às expressões que utiliza no seu dia-a-dia.

Gostou? Reenvie para os amigos amantes da língua portuguesa.


PROJETO BAZAR DAS LETRAS RECEBE FABIANA GUIMARÃES

A escritora FABIANA GUIMARÃES nasceu em Eusébio-CE. Foi agraciada em alguns concursos de poesia. Publicou Mar violeta, seu primeiro livro de poemas para ‘gente grande’. Depois veio a lume Poemas de sopro e pássaro. Publicou vasta obra no gênero infantil, ou para ‘gente criança’, como ela prefere. São de sua autoria: Brincadeiras da minha infância, As meninas do mundo de lá, Seu Miguelito e sua mala encantada, O menino e o tempo, A festa da muriçoca e O senhor do tempo e outras histórias.

Fabiana Rocha é o novo endereço da poesia no Ceará. Ela não é apenas uma promessa literária que se desenha num futuro próximo ou distante. Ela é, já agora, uma das vozes mais belas e límpidas da poesia brasileira dos nossos dias. Uma voz que celebra as múltiplas dimensões da vida e do amor. Uma voz que acalma os ventos e as tempestades da conturbada hora presente. Uma voz que acena para os seus semelhantes com novas expectativas de esperança, de beleza e de paz.

Francisco Carvalho

Suas metáforas correm ao solfejo do verso. E é uma poesia liberta, cósmica, liricamente sensual. O que é curioso, uma poesia dadivosa, com achados e imagens notáveis. Há uma musicalidade nos poemas que encanta. E parecem um dar-se por inteiro aos vendavais da vida.

Caio Porfírio Carneiro



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segunda-feira, 28 de março de 2011



                                     Gengis Khan na poeira

Em sua obra "Memórias de um revolucionário", Victor Serge fala do seu deslumbramento a bordo de um avião: a paisagem vista do alto, nuvens - lá embaixo - aparentando flocos de algodão herbáceo… Diz, também, não compreender a atitude da maioria das pessoas: acostumar-se a ponto de não olhar, nem mesmo de esguelha, para a janela (logo que a aeronave decola, abrem um jornal, comem alguma coisa e, depois, hibernam).

Assim como Serge, sempre me maravilho quando em voo de cruzeiro. Até nas viagens que faço com minha filha, disputo com ela a poltrona ao lado da janelinha. E fico irado quando me sento e dou com a asa metálica obliterando a visão.

Outra coisa me espanta sobremaneira: eu, que pertenço à classe média mediana descendente, graças aos produtos tecnológicos da ciência moderna, ter, em muitos aspectos, uma vida melhor e mais rica que a de todos os imperadores ou potentados do mundo pré-industrial. De fato, qual deles contemplou a crosta terrestre a doze mil e quinhentos metros de altura? Gengis Khan, cavalgando nos melhores cavalos, alcançava, talvez, oitenta quilômetros por hora.

Ora, em meu automóvel popular 1.6 deixo-o na poeira: já cheguei a cento e quarenta, velocidade maior que a do mais rápido animal terrestre: o guepardo. Em quanto tempo Xerxes tomava conhecimento de algo ocorrido na fronteira do seu império? Alguns dias. Pois, numa "lan-house", alugando por cinco reais um microcomputador ultrapassado, entro em um "chat" virtual ou lista de discussão por e-mail e converso com pessoas dos mais distantes cantões do Planeta - Tóquio, Paris, Coimbra, Luanda, Alaska… - como se estivéssemos na minha sala de estar, fisicamente reunidos.

E que me venham três samurais furiosos, armados com espadas afiadíssimas. Derrubo-os com tiros de revólver calibre vinte e dois.

Hoje, por conta da tecnologia da eletricidade e da invenção do termostato, pode-se controlar a temperatura, mantê-la em graus Celsius negativos e, assim, conservar alimentos de forma mais eficiente. Por isso que, em minha geladeira, disponho não apenas de frutos de clima semiárido e da estação (tamarindo, castanhola, pitomba…) como também de ameixas, morangos e figos "frescos", transportados em câmaras frigoríficas de cargueiros transatlânticos. Já em épocas anteriores, a durabilidade de alguns alimentos, como carnes, era prolongada fazendo-os secar ao Sol, defumando-os ou os salgando a ponto da saturação. Meses depois, removido o excesso de sal, embora ainda comestíveis não tinham mais sabor. Palha pura! Daí a necessidade de sobrecarregá-los com condimentos - o que impulsionou a navegação europeia: a busca marítima por especiarias (cravo, pimenta-do-reino, baunilha, cominho, canela, noz-moscada…) em terras remotas. (Imaginem D. Manuel I de Portugal comendo um assado de panela e só sentindo o gosto do tempero)

Embora um animal frágil, graças ao neocórtex superdesenvolvido e seu produto atual, a alta tecnologia, corremos, nadamos, voamos e percebemos a realidade melhor do que qualquer outro bicho. Infelizmente, também somos assassinos inigualáveis. Em termos metafóricos, somos um ornitorrinco eletrônico com asas. E turbinado. (A propósito, o ornitorrinco, assim como o homem, é "sui generis": põe ovos amnióticos à maneira dos répteis, amamenta as crias como os mamíferos, tem um bico córneo semelhante ao das aves - bico de pato - e, do mesmo jeito que alguns anfíbios, excreta veneno.)

MANUEL SOARES BULCÃO NETO
Ensaísta

quarta-feira, 23 de março de 2011

                                                      
                    

                AQUI É ONTEM ou O MEDO DO PORVIR    
Para Frederico Regis

Por Carlos Nóbrega

Pássaros como nós, em seus eternos blablablás com deus. . .
Ah pequeno mundo tão surpreso
o que ainda vive em meu quintal:
um calango verde desfilando,
uma bananeira muito orgulhosa de seu mangará
(meu quintal teima em guardar palavras
            que desapareceram)
e algumas frutas, esponjas de luz,
a sugar a chuva e o tempo. . .
O tempo: a história desce os batentes
            da porta de trás
e eu sou esse aldeão
que incrivelmente escuta
o medo do ovo no cantar das poedeiras.


             Coisas Engraçadas de Não se Rir IV: Coletividades

Raymundo Netto especial para O POVO

É palavrão, cotovelada, empurra-empurra, um calor desgraçado, forró ruim no pé de ouvido, solavancos em buracos que procriam e a turma inda se preocupa se vai chegar atrasado ao trabalho. É mole? Isso, se no percurso não for lesada de seu celular, único bem “não-genérico” implantado em meio ao seu indumento, lembrando que a finada linha “Paranjana” era estágio obrigatório da escola profissionalizante de trombadinhas.
Como é que ainda se diz, por aí, ser possível andar de ônibus nessa cidade?
Pois conheçam a história de uma passageira, a jovem que sai de casa com um cheiro e chega ao ofício com outros, levando, enrolado à bolsa (uma Luís Vuitão made in Caucaia), aquele paletozinho quente às pampas, mas escolhido pela modista trés chic da mulher do patrão.
Dia desses, habituée o seu contato veicular com os mais diversos passantes e devido às variações de temperatura e de clima sentidos apenas por quem não se locomove em ares devidamente refrigerados, gripou — uma “virose”, expediente médico que traduz “uma qualquer coisa mas que não mata”—, e daí teve até medo de recolher-se ao lar de paredes frias mesmo enviando à firma o atestado médico, pois sabia, ah que ela sabia, que o patrão entendia tal documento como a “certidão do preguiçoso”...
Noutro dia, a coitada estava lá, congestionada até a tampa, assuando em papel higiênico, nasalando a voz e até roncando, e o patrão lhe chega depois das dez, horário que o permite caminhar no Cocó, ir ao “Marreco” jogar seu tênis e desjejuar — sob orientação da nutricionista —, esquecendo-lhe, entretanto, de desejar um bom-dia, pois há pressa em trabalhar, não se pode perder tempo, “tempo é dinheiro, minha filha”... Claro que a esposa do patrão já havia ligado, começo do batente, para saber se todos haviam chegado ou se alguém de novo atrasara e, para variar, reclamar um pouco de sua vida difícil, ao mesmo tempo em que falava da indulgência incorrigível do marido com seus empregados, mas que em casa...
Oras se a moça não via as horas de cruzar o cabo do final de semana... Não confessava a ninguém, à vista que seu posto, ainda ruim, era o “top” da casa, desejado veladamente pelas suas colegas a cogitar as possibilidades de consumo de mais uns cem reaizinhos... Hora extra? Vá desculpando, mas se quiser trabalhar com ele “tem que vestir a camisa”... E ela vestiu, mas no toró que caiu na cidade, empapou-se toda e, sem substituta, cobriu-lhe o corpo pelo dia, a revelar o sutiãzinho com carinhas sem boca, como ela, da Hello Kitty. Na hora do almoço, desabafou o “tupperware”, a marmita plástica, com o resto dontem e lamentou, solidária, como aguentava a sua irmã trabalhar numa loja de shopping — ô novidade — onde o gerente em ordens expressas e vigília constante não permitia que vendedor se sentasse, podendo fazê-lo apenas em revezamento espaçoso com a colega, por poucos minutos e às escondidas, em abrigos escuros e apertados onde, inclusive, faziam as refeições e guardavam seus pertences. Pobre é assim, não entende a sua desgraça nos outros.
À noite, após outra romaria de “amassos” por estranhos em proveito da lotação da hora de pico de todas as horas, de um engarrafamento que não se acaba, de um povo que compra carro todos os dias e de um metrô que não sai, a mocinha chega a casa em festa: a mamãe guardou-lhe no forno um bocado de Miojo ao molho Arisco, afinal era início de mês, dava para luxar.
Manhã cedinho, surpresa, encontra o filhinho do patrão, em bermudas, todo em sorriso — iria passar a Semana Santa em Orlando —, a perguntar-lhe se conhecia alguém que ganhava Bolsa-Família. Revela daí, certo do charme, que estava pensando em como cadastrar a gatinha de sua casa, a Britney, para que, em posse de tal bolsa, pudesse gastar tudo em “mel”. Coube à protagonista desta crônica sem graça, cruzar os braços ao peito e retribuir-lhe, num sorriso lindo e torto, a simpatia natural dos sem-oportunidades, em passivo e quase mudo “legaaal...”

terça-feira, 22 de março de 2011

                                            SUBSTÂNCIAS

há muito de lua
nesse levantar de olhar
que o mar alça
sobre o calçadão da praia

um pouco mais
de terra houve
no mar que apagou rodovias
diante das câmeras
sobre sumatra e japão

certamente algo haja
de saturno ou júpiter
na terapêutica água salgada
que cura e lava banhistas
na praia do futuro

(entre eles meu pai
que venceu um avc)


Frederico Régis

sexta-feira, 18 de março de 2011





                    Airton Bíuri Fu Soares
        contra o Mundo Fora de Esquadro
                         (Homenagem)

Por  Carlos Roberto Vazconcelos


Do pé da Serra, do Ipu,
Eu parti todo ariado
Cheguei na cidade grande
Vi trem, carro, muito asfalto.
Disse: “Pai, daqui gostei.
Só volto versificado.”

Tive que arranjar emprego
Pra sustentar o esqueleto
Que a alma se regalava
Com trova e com soneto
Trabalhar em banco é o sonho
De todo homem correto

Na luta de sol a sol
Fui ficando mui cabreiro
A poesia chamando
Por outro lado o dinheiro
Vou cursar Letras e pronto
Abrando meu desespero

De tanto comer pepino
Na cidade tão precária
Vi um lugar que era um mimo
De gente fina e hilária
No frontão estava escrito:
Entre! Ceia Literária.

Mourão, Felipe e Getúlio
Genuino e Ednardo
Pedro Wilson e Luciano
Marina, Câncio e Livardo
Frede, Góes e Vazconcelos
O Valdemiro e o Furtado


− Deixar o BEC? Não brinca!
Eu até pago pra ver!
Ninguém vive só de brisa.
Amor, você vai sofrer.
− Poeta Humorista Didata
Meu bem, sou PHD.

Mundo fora de compasso
Valha, Deus, seja o que for
Mamãe me disse: Mau passo!
A mulher: Tu endoidô?
− Minha gente, eu já sou PAI:
Poeta, Ator e Instrutor.

Logo o Abraço Literário
Tive o prazer de encontrar
Alque, Beth, Cris, Lucinha
Silas, Sônia e Eudismar,
Aglaís, Inês, Cleody
Lúcia, João e Edvar


São tantos os bons amigos:
Saudoso Eurico Bivar
Édna, Diniz, Amanda
Terezinha, Vilemar
E se eu esqueci alguém
Lembre-se de perdoar

Nesta vida passageira
Besta mesmo é quem padece
O sol nasce para todos
A lua pra quem merece
Se você anda abatido
Melhor remédio é AS.

Palestra, show, recital
Só não comício e velório
Quero ver você sorrir
Sofrer é muito irrisório
E se quiser aplaudir
Palmas, palmas, auditório!


quarta-feira, 16 de março de 2011

                                     Capa: Ednardo Gadelha


                            O mundo de Eudismar Mendes
                                                                                                                                                                                     
Por Silas Falcão


Avó de cães mestiços, novo livro de Eudismar Mendes, que teve o prazer de vê-lo selecionado pelo edital da Secult (2010) resulta do seu olhar de paisagem sobre as atitudes humanas registradas literariamente com a simplicidade do caráter da autora. Tive a simpatia de conhecer Eudismar, também autora de Sangue sobre o asfalto – 2004 – e Máscara da face – 2007 – através dos nossos encontros literários do Abraço Literário (SESC) e da Associação Cearense dos Escritores (ACE). Nela sempre assisti a atitudes de uma eterna jovem, dinâmica, saudavelmente inquieta. Ela é o que vislumbra em Caracol de mim: Meu sonho é do tamanho do momento que estou vivendo porque sou muito mais que tudo que possa me acontecer”. Em Sangue sobre o asfalto, a escritora se apresenta ao leitor: “Em cada página tem um pouco de mim, pois a despeito de procurar fazer arte literária, escrevo de uma maneira despojada numa linguagem coloquial para que você, leitor, sinta-se mais à vontade para entender os meus textos”. E neste seu novo rebento literário, permanece a linguagem coloquial, sincera, sem rebuscamento, características da crônica.  

As páginas que compõem este livro expõem uma galeria de personagens e estórias. Caso de polícia é um exemplo. Uma prostituta é vitima de um vigarista que, maliciosamente, pretende não pagar- e não paga - pelo “programa”, afirmando queuma louca entrou no meu carro e não quer sair de jeito nenhum”. Essa crônica é uma denúncia da humilhante realidade por que passam milhares de prostitutas, vítimas da ausência de escolaridade, das famílias desestruturadas e de uma sociedade que condena os efeitos sem analisar as causas sociais dos comportamentos humanos.

A mulher e suas bolsas é um mistério estabelecido: por que uma mulher linda e sensual usaria simultaneamente três bolsas em tons diversos de cores, formatos e adereços? “A vida é cheia de pacotes”, afirmou Mário Quintana.

Suas inquietas crônicas espelham iniquidades, como as denunciadas em Distinto vendedor. Caminhando despreocupada, a narradora observa um vendedor numa bicicleta engalanada de balões, cantarolando distintamente o anúncio de doce gelado, sapoti, coco babão, quando alguém grita: “Cale a boca, seu palhaço!”  

Apaixonada por Fernando Pessoa, Camila, personagem de Interiorização, é uma jovem contempladora de estrelas que se conscientiza de que “só posso ouvir a palavra, se meus ruídos interiores forem silenciados”. A autora, através da personagem citada, nos transpõe à arte de ouvir como habilidade essencial para o sucesso em nossos relacionamentos interpessoais. No caso de Camila, saber ouvir faz toda diferença na arte de amar. “Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito. A arte de amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas”, é o que afirma Rubem Alves, em Ostra feliz não produz pérolas. Você conhece algum caso de amor desfeito por casais que não detinham a espiritualidade de saber ouvir?

“Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lembrei de Manuel Bandeira quando li Sob o mar e a sorte, crônica social em que Eudismar inclui no mundo das dificuldades existencias um flanelinha trabalhador. Sem nome, lambuzado de oleosa farofa, um dia, escorregando pelo bueiro da orla marítima - seu local de trabalho – e nadando, ele deságua numa ilha. Grita de alegria e chora ao saber que os policiais não mais o expulsariam do banco da praça onde, às vezes, dormia sem antes ouvir os insultos de “vagabundo”. Essa ilha, onde as lágrimas são proibidas, se tornou a Pasárgada do flanelinha que agora, sob a bênção do senhor dos mares, Netuno, irá viver, “entre a superfície e o mar”, um grande amor ao lado da companheira.

As avenidas das grandes cidades (e como elas são humanamente pequenas!) não trazem apenas anúncios de produtos e serviços, exaltando o ter pelo ser, assaltos, amores desfeitos, infância abandonada. Existem nelas adultos sem bairro, sem cep, sem sonhos, sem identidade social. Essas avenidas são vitrines desbotadas expondo pedintes de variadas formas físicas. Medo no sinal, crônica de poucas linhas, é psicologicamente tão extensa quanto as dores da pobreza material vivida por milhares de pessoas representadas pela  personagem. Nessa crônica, Eudismar revela um mendigo aparentemente saudável e bem vestido. O que nos surpreende na narrativa esconde-se sob o boné que ele usa: os dois níveis da cabeça. Metade normal e a outra com uma cavidade de se colocar uma tangerina. A cena impacta. Insulta piedade, compreensão de que uma pessoa com essas características físicas sempre será desprezada pelo mercado de trabalho vorazmente defensor da aparência imaculada. Nossos preconceitos criam milhares de mendigos.

Idosa. Pele escura. Sem idade expressa na certidão de nascimento. Vivendo isolada, emburrada dentro do seu esconderijo no mato. Quando ela ia à pequena cidade, as crianças a insultavam. Francisca Maria da Conceição – Chica Pão – é uma das vidas humanas resgatadas pela literatura e um episódio real na vida de Eudismar. Sem família, a pobre moribunda viveu intensamente a solidão, a pobreza, e ”apenas sorriu para morrer”. Reli Chica Pão inúmeras vezes recordando o Chico Budu, versão masculinizada de Chica Pão. Diariamente ele passava na rua da minha infância conduzindo gemidos peditórios dentro de um pedaço de vida. Nós, as crianças, o insultávamos. Ele sofreu muita solidão, pobreza e morreu sem sorriso.  

Em Avó de cães mestiços, crônica que dá título a este livro, Eudismar metaforiza, através das personagens, o real observado nas relações humanas: egoísmo e preconceito. Marta recebe de seu “amigo da onça”, um poodle que compartilha com a comunidade canina uma nova vida. Certo dia ela encontra Dandan – uma legitima yorkshire – e Rex – o poodle – se amando. Marta se enfurece percebendo a possibilidade do nascimento de um descendente mestiço. Desloca-se a Canindé para fazer uma promessa a São Francisco. Doa alimentos aos pobres. Mas essas condutas místicas não a impedirão de ser avó de cães mestiços.  O que, para ela, é uma humilhação de mil latidos. O que a autora manifesta nessa crônica é a contrariedade diante dos comportamentos bárbaros que sancionam preconceitos e egoísmos. Ainda é lei oral, principalmente nas cidades interioranas, a tentativa de bloquear casamentos entre casais de famílias socialmente diferentes, objetivando perpetuar a imobilidade social. Dandan e Rex são representações simbólicas de milhares de Dandans e Rexs em formas humanas que sofreram ações morais paternas – nesta crônica a Marta representa o pátrio poder, o exclusivismo – com o propósito de impedir a união matrimonial de casais pertencentes a classes sociais distintas. 

Avó de cães mestiços, esta coletânea de crônicas das quais destaco também O negro Nicácio, Conversa ao telefone, Não dá para não sentir saudade, O crucifixo e a mosca, encena ações humanas fragmentadas na visão social e psicológica. Qualquer página é um começo e um fim. Neste livro não há necessariamente um compromisso com temas da atualidade. As narrativas não obedecem a uma ordem do tempo. Eudismar, dentro do seu mundo, observa e registra o que todos os escritores buscam como matriz literária dos seus textos: a realidade humana.

          


               Eram Três (ou Tema para um Conto Triste)

                                                               Para o amigo Lourival Mourão

Eram três amigos.

Eram três amigos inseparáveis.

Ficaram unidos desde a primeira vez que se viram (gostavam de se pabular disso).

Eram carne e unha desde as primeiras brincadeiras de bila, bola e arraia.

Moravam em ruas separadas, mas não distantes. Nunca houve briga, mancha alguma que os separasse.
Cresceram juntos, apaixonaram-se pelas quase mesmas meninas. Dois torciam pelo São Vicente e o outro pelo Unidos do Petróleo.
Cresceram, irremediavelmente.

Um ficou pelo ginásio e ajudava o pai na bodega. Outro foi para o seminário em Sobral. E o terceiro perambulou de festa em festa.
Fatalmente um deles seria próspero comerciante. Outro, dedicado padre. E o último, professor e poeta.
Porém um deles suicidou-se por causa de um amor não correspondido. O outro foi assassinado ao separar uma briga de casais. E o derradeiro pulou da ponte da linha férrea e espatifou a coluna.
Eram três amigos.
Eram três.
Eram.


Pedro Salgueiro especial para O POVO

segunda-feira, 14 de março de 2011

                                              Argonautas


Uma noite no século. No meu apartamento, bebida, música, baralho. Comigo, jogam pife-pafe Thiago Pauli e Alves de Aquino - Este, professor de Filosofia e escritor, tem por pseudônimo "O Poeta de Meia-Tigela" (aviso aos gulliveres e liliputianos: a tigela é de "Brobdingnag"). Eis que, numa rádio da Internet, Caetano canta "Os argonautas": "Navegar é preciso, viver não é preciso…". Assim como um estalo, associo a frase (lema da Escola de Sagres) com jogo de azar, ciência e nossas vidas inintencionalmente erráticas, "imprecisas". Nesta crônica, desenvolvo "grosso modo" meu pensamento.

O conhecimento humano, que lida com regularidades, padrões, até meados do século XVII distinguia dois tipos de fenômenos: os singulares ou "a priori" imprevisíveis e aqueles que, por se repetirem, "são legais e merecedores de estudo científico" (John D. Barrow, "Teorias de tudo", Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, p. 173). Não que os fortuitos fossem desinteressantes, muito pelo contrário: eram tidos como expressões da vontade livre - arbitrária, temível - de Deus ou dos deuses. E, para compreenderem ao menos a sombra desses supostos atos de volição, valiam-se os homens de outro método, o jogo rabdomântico: I Ching, búzios, cartomancia, vareta, Urim-Tumim, dados… (a propósito, a palavra "azar" provêm do árabe "al-zahr", que significa "dado").

Um bom exemplo, "dado que, por acaso" (permitam-me o "jogo" de palavras) evoca a escola náutica portuguesa, é a história mítica do profeta Jonas. Tal como consta no Velho Testamento, o Profeta se esquiva de uma determinação divina, e foge num navio para Társis. Ocorre que, a meio caminho, irrompe violenta tempestade. Os marinheiros, temendo por suas vidas, decidem descobrir o "culpado" pelo infortúnio para lançá-lo às águas. (Impressionante como é antiga - talvez escrita em nosso genoma, de modo que nem eu mesmo escapo - a figura fascistoide do bom-moço, para a qual a solução de todo problema é mágica: achar um "Judas" e aniquilá-lo, seja física ou moralmente.) - O que os marujos fazem, então? "jogam": "E dizia cada um ao seu companheiro: Vinde, e lancemos sortes, para que saibamos por que causa nos sobreveio este mal. E lançaram sortes, e a sorte caiu sobre Jonas" (Livro de Jonas 1: 7).

A Geometria, Álgebra e Aritmética já se encontravam bastante desenvolvidas quando os matemáticos, dando-se conta da abscôndita racionalidade do acaso, ensejaram o cálculo da probabilidade: a Estatística.

E o fizeram inspirados "nos problemas de aposta, dados, cartas e todo tipo de jogos de azar" (J. D. Barrow, op. cit., p. 172). - Cientistas exatos envolvidos criativamente com jogatina pura! Vejam só o que o desespero com a liseira é capaz de fazer.

Quanto à expressão "navegar é preciso; viver não é preciso", bem: por se tratar do lema de uma "escola" cujo objetivo era desenvolver uma ciência - a Náutica - e aprimorar a técnica da navegação, por esse motivo creio que o termo "preciso" é para ser interpretado como "certo, realizável com perfeição, absolutamente seguro"; de sorte que a morte num naufrágio se deve ao fato de a própria vida ser, em essência, "imprecisa", isto é, quase caótica, vagamente previsível, composta por boas e más "surpresas", seja a bordo ou em terra firme. Com efeito, morrer absurdamente beira a normalidade: um tropeção infeliz, um osso de galinha na garganta, uma virose…

O que não quer dizer que a interpretação mais conhecida, aquela de Fernando Pessoa ("preciso" como sinônimo de "necessário"), seja errada. E não o é porque a arte também é gnose. Para confirmar isso, não vou longe: que o diga a poesia de Carlos Nóbrega - que não poderia ter faltado àquele carteado - e a d´O Poeta, bem como a "body art" espontânea do meu compadre Thiago, vulgo - não por acaso… ou sim? - Gaúcho-Show.

MANUEL SOARES BULCÃO NETO
Ensaísta


quinta-feira, 10 de março de 2011

                                   
  
                                   Seria culpa da genética?

Por Bernivaldo Carneiro

No princípio de 1980 quando assumi o emprego que ainda hoje me acolhe, Narciso Baco Fortuna Pavão já se encontrava por aqui. Então, com apenas vinte e dois anos de idade e recém-iniciado no ofício de entornar uns tragos; já era de pôr tonto quem observasse, mesmo que à distância, o talento, a dedicação e, principalmente, a voracidade com que se dava aos prazeres alcoólicos. Mas foi exatamente quando o destino me levou a surpreendê-lo dedilhando o violão em um de seus barezinhos prediletos, que me caiu de vez a ficha: a bebida havia de fato entrado na existência de Narciso para lhe inspirar a alma no aperfeiçoar o gosto pela boêmia, trazido do berço.
 Fiel à purinha, dia após dia adicionava uma dose a mais no lubrificar a garganta e também acrescia um cigarro no poluir nossa atmosfera, no defumar suas cordas vocais e no sedimentar o pulmão com nicotina e alcatrão. Uma bola fora contra a própria saúde. Um voo em rota de colisão com a carreira profissional — a princípio, entendida por alguns como promissora. De fato, elogiáveis eram a dedicação e o voluntarismo demonstrados ao ingressar no emprego. Virtudes que despencavam em queda livre à medida que materializava a vida alada. Regrediu de pró-ativo a ativo; de ativo a reativo e em pouco tempo a inativo. Uma vez que, sem forças para se abster do álcool, abstinha-se de marcar o ponto. Isso no trabalho: esclareça-se. Ao passo que nos botecos era de uma assiduidade ímpar. Nem mesmo no dia em que o mal súbito abriu cova ao decrépito esqueleto de seu velho, Narciso se fez ausente ao seu point da época. E não esteve só em tão difícil hora. Naquele morrer do dia e nascer da noite a solidariedade se fez presente na figura dos demais papudinhos egressos do Parque da Paz.
E foi com os olhos marejados pela dor da perda e a voz embargada pela emoção da orfandade, que ele, entre um gole e outro, manifestou todo o orgulho que o pai lhe depositara no coração. — “Apesar da impiedosa doença e da idade avançada (mês passado comemoramos seus setenta e cinco janeiros) em nenhum momento meu velho deixou a peteca cair. Pelo contrário, jamais deu trela para o que decretavam, em uníssono, os médicos. E olhe que ele tinha consciência do assédio da morte. Tinha sim! E como tinha!... Mas quem disse que ele se abateu diante de tal espreita?! Jamais emborcou o copo nem tampouco deixou de acender um cigarro na bagana do outro. Enfim: curtiu bravamente a vida até o último minuto de sua estendida existência”.
Bem, dada esta breve prova da admiração de Narciso pela curtição do pai, que era também a sua, entreguemo-lo ao emprego. Não sem antes esclarecer o quanto efêmera fora a sua vida. Uma mudança de plano sem repetir integralmente o idealizado genitor. Ainda às vésperas de soprar as quarenta e seis velas, porém um ano depois de celebrar as bodas de prata da efetiva parceria firmada com a boêmia. Ou seja: cerca de oito anos depois de deixar a repartição de origem.
É que as severas cobranças do chefe da época, as chacotas e piadas de alguns e os cáusticos comentários de outros, colocavam-no os nervos de prontidão. A saída foi Narciso Baco lançar mão de seu prestígio político. E foi com hálito etílico que nosso protagonista desabafou todo seu inconformismo no ouvido de um influente parlamentar de sua especial estima. De pronto o homem se articulou com Brasília e dias depois (de peito lavado) nosso boêmio descarregava, em uma prefeitura interiorana, o apetite de gambá e a ânsia caipora que trazia no peito. Mas isso sem nenhuma disposição para o trabalho. E lá, acobertado pelo relaxado manto da municipalidade, pôs-se integralmente à disposição da Sapupara: a paixão do momento. Tempo em que iam longe os anos de fidelidade à Dandiz, à Colonial, à... A propósito, foi no Museu da Cachaça (em dias de sua lua de mel com a Ypioca) que eu vi Narciso Baco pela última vez.
Parecia feliz naquela manhã, apesar do próprio físico em nada favorecer a tal estado d’alma. O quebrado e caído bucho contrastava com a explícita carência de músculo nos braços, pernas e nádegas. Também acentuada era a tonalidade verde-cirrose de suas faces tingidas pelo efeito da “maldita”. Ou alguém ignora ser essa, a forma com que os males da dita cuja manifesta a fraqueza do sangue em organismo imoderadamente consumidor? Sobretudo, quando agravados pela potencialização da nicotina, alcatrão e milhares de outras substâncias químicas nocivas à saúde, depositadas pelo tabaco nas entranhas do sujeito. De forma que naquela minha única visita ao aludido museu, não pude deixar de ver e ouvi-lo. Encabeçando a fila da terceira degustação, Narciso tinha ao pé seus companheiros da “Van”, fretada em excursão semanal aos alambiques da terra de Chico Anísio.
Como sempre, falava pelos cotovelos e apesar do teor do discurso ser o mesmo de tempos idos; parecia lhe faltar energia ao gestual e fôlego à voz para se expressar teatralmente como antes. Uma cultura de botequim que se associava aos seus gestos cênicos aprimorados em mais de vinte anos de balcão. Enfim: discorria sobre o que ele denominava de “O elixir nosso de cada dia”. E como em sua fluência fácil não era de economizar elogios à aguardente: adjetivação era o que não faltava na apologia que fazias aos benefícios do álcool. Aliás, vantagens que, como ninguém, ele conseguia extrair desse destilado da cana de açúcar. — “Toda e qualquer pinga é um depurativo do sangue e da alma” — a entonação mesclada com resquícios dos tremores matinais provocados pela abstinência alcoólica durante o sono, não dava os menos avisados nenhuma margem à dúvida: tratava-se sim de um emérito estudioso do assunto. De um convicto consumidor do produto. — “Sabia gente que os usuários da purinha nem verme têm? E olhe que eu conheço hospedeiro de lombriga pela cara”. — Dito isso, um sorriso, a um só tempo patético e misto de lubricidade e orgulho, alastrava-se por aquele rosto erodido pelo vício. E assim assumia feições de um cientista que (com acento humorístico), dava conta ao mundo de uma valorosa contribuição para a saúde da humanidade.