Coisas Engraçadas de Não se Rir IV: Coletividades
Raymundo Netto especial para O POVO
É palavrão, cotovelada, empurra-empurra, um calor desgraçado, forró ruim no pé de ouvido, solavancos em buracos que procriam e a turma inda se preocupa se vai chegar atrasado ao trabalho. É mole? Isso, se no percurso não for lesada de seu celular, único bem “não-genérico” implantado em meio ao seu indumento, lembrando que a finada linha “Paranjana” era estágio obrigatório da escola profissionalizante de trombadinhas.
Como é que ainda se diz, por aí, ser possível andar de ônibus nessa cidade?
Pois conheçam a história de uma passageira, a jovem que sai de casa com um cheiro e chega ao ofício com outros, levando, enrolado à bolsa (uma Luís Vuitão made in Caucaia), aquele paletozinho quente às pampas, mas escolhido pela modista trés chic da mulher do patrão.
Dia desses, habituée o seu contato veicular com os mais diversos passantes e devido às variações de temperatura e de clima sentidos apenas por quem não se locomove em ares devidamente refrigerados, gripou — uma “virose”, expediente médico que traduz “uma qualquer coisa mas que não mata”—, e daí teve até medo de recolher-se ao lar de paredes frias mesmo enviando à firma o atestado médico, pois sabia, ah que ela sabia, que o patrão entendia tal documento como a “certidão do preguiçoso”...
Noutro dia, a coitada estava lá, congestionada até a tampa, assuando em papel higiênico, nasalando a voz e até roncando, e o patrão lhe chega depois das dez, horário que o permite caminhar no Cocó, ir ao “Marreco” jogar seu tênis e desjejuar — sob orientação da nutricionista —, esquecendo-lhe, entretanto, de desejar um bom-dia, pois há pressa em trabalhar, não se pode perder tempo, “tempo é dinheiro, minha filha”... Claro que a esposa do patrão já havia ligado, começo do batente, para saber se todos haviam chegado ou se alguém de novo atrasara e, para variar, reclamar um pouco de sua vida difícil, ao mesmo tempo em que falava da indulgência incorrigível do marido com seus empregados, mas que em casa...
Oras se a moça não via as horas de cruzar o cabo do final de semana... Não confessava a ninguém, à vista que seu posto, ainda ruim, era o “top” da casa, desejado veladamente pelas suas colegas a cogitar as possibilidades de consumo de mais uns cem reaizinhos... Hora extra? Vá desculpando, mas se quiser trabalhar com ele “tem que vestir a camisa”... E ela vestiu, mas no toró que caiu na cidade, empapou-se toda e, sem substituta, cobriu-lhe o corpo pelo dia, a revelar o sutiãzinho com carinhas sem boca, como ela, da Hello Kitty. Na hora do almoço, desabafou o “tupperware”, a marmita plástica, com o resto dontem e lamentou, solidária, como aguentava a sua irmã trabalhar numa loja de shopping — ô novidade — onde o gerente em ordens expressas e vigília constante não permitia que vendedor se sentasse, podendo fazê-lo apenas em revezamento espaçoso com a colega, por poucos minutos e às escondidas, em abrigos escuros e apertados onde, inclusive, faziam as refeições e guardavam seus pertences. Pobre é assim, não entende a sua desgraça nos outros.
À noite, após outra romaria de “amassos” por estranhos em proveito da lotação da hora de pico de todas as horas, de um engarrafamento que não se acaba, de um povo que compra carro todos os dias e de um metrô que não sai, a mocinha chega a casa em festa: a mamãe guardou-lhe no forno um bocado de Miojo ao molho Arisco, afinal era início de mês, dava para luxar.
Manhã cedinho, surpresa, encontra o filhinho do patrão, em bermudas, todo em sorriso — iria passar a Semana Santa em Orlando —, a perguntar-lhe se conhecia alguém que ganhava Bolsa-Família. Revela daí, certo do charme, que estava pensando em como cadastrar a gatinha de sua casa, a Britney, para que, em posse de tal bolsa, pudesse gastar tudo em “mel”. Coube à protagonista desta crônica sem graça, cruzar os braços ao peito e retribuir-lhe, num sorriso lindo e torto, a simpatia natural dos sem-oportunidades, em passivo e quase mudo “legaaal...”
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