terça-feira, 26 de julho de 2011


                        Quando meu amigo Lúcio Flávio se foi

Crônica de Pedro Salgueiro para o Povo

Uns choraram feito crianças (um merecido choro), afinal tinham perdido um amigo daqueles que não se encontra em calçada alta.
Outros reclamaram de Deus, por ter levado tão cedo uma alma tão boa, ensaiaram pequenas blasfêmias.
Alguns, ainda, ficaram taciturnos pelos cantos, emburrados pelos cantos, reclamando pelos cantos, lamentando pelos cantos, calados...
Eu, por minha vez, preferi fingir que ele ainda tá por aí: trabalhando, em sua mesa impecável de rapaz velho cheio de manias e humores, na Justiça Federal da Aldeota, ou bisbilhotando as coisas de seu querido (e um de seus poucos defeitos) Ceará Sporting Clube, ou indo de vez em quando ao “sebo” do Geraldo na 24 de Maio procurar um livro que emprestou a um amigo (e que se esqueceu de lhe devolver) , ou mesmo deitado em sua rede na varanda em frente ao “tanque” olhando calmamente a Rozi aguar os flamboyants no jardim.
Tanto é verdade que guardo ainda em minha agenda seus dois números de telefone, seu livro rabiscado com uma dúvida para lhe perguntar, e vez por outro releio seus últimos e-mails.
E (prometo, amigo!) qualquer dia desses respondo aquele em que você me confiava um conto falando de como tem gente estranha nesse nosso mundinho.
Ou talvez apenas telefone para deplorarmos o baixo nível técnico do nosso futebol.
Ou, quem sabe, apareça por aí para bater um papo com você e o Bivar.

P.S: Lúcio Flávio Holanda Chaves escreveu um livro sobre o Ceará Sporting Clube, Um Retrato Branco e Preto, assim como organizou a revista comemorativa dos 95 anos do alvinegro de Porangabussu; já o artista plástico Eurico Bivar deixou um legado também no teatro. Os dois foram mestres nessa difícil arte de fazer amigos.




quarta-feira, 20 de julho de 2011



                                        Os livros, as viagens

Por Carlos Vazconcelos

Todos dizem que ler é viajar. Isso é fato consumado, mesmo na opinião de quem nada lê. Ler Josué Montello, por exemplo, é transportar-se para o Maranhão. Jorge Amado nos leva à Bahia. Com Machado, retrocedemos ao velho Rio de Janeiro imperial (e às profundezas da alma humana). João Guimarães, Graciliano e Rachel nos conduzem a uma pátria chamada Sertão.
E assim segue o leitor, nas mais variadas e pitorescas aventuras, turismo espiritual. Desse modo, quem tem boa biblioteca possui de saldo uma agência turística virtual, sem os protocolos e a burocracia das convencionais.

Pois estive viajando, esses dias. Li Érico Veríssimo e viajei ao México...
– Ao México, tchê?
Sim, senhor! E de trem. Mas tudo bem, compreendo a estranheza. Quem lê Veríssimo viaja não é para os pampas? E escuta aquela música ao longe (talvez um solo de clarineta), vinda do tempo e do vento, que varre os lírios do campo pelos caminhos cruzados?
Floreios à parte, explicarei melhor. Estou me deleitando com a leitura do livro intitulado México, do escritor gaúcho. É daqueles livros injustamente esquecidos. Como se dizia antigamente, o lado B do long play. São notas de viagem, testemunhos de vida, capítulos de humanidade de um escritor que, ao sentir-se sufocado pela faina diplomática, em Washington, consumido pelo desejo de umas férias, chega em casa e sugere à mulher:
– Vamos ao México?
Esse bem poderia ser o título do livro, pois realmente o convite se estende ao leitor. Qualquer um o aceitará prontamente depois de ler o Prólogo, onde o autor trava um delicioso colóquio com o mestre William Shakespeare em torno das razões que o aliciam a arredar pé da metrópole americana. Lá, tudo funciona direitinho, um modelo de organização, um primor de urbanismo. E sentindo-se um gato preto em campo de neve, desabafa ainda: Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia.
Sempre em que se tratar de um grande autor, devemos dispensar um pouco mais de atenção a alguns livros considerados menores. Um grande escritor é multifacetado e dificilmente sua pena admite um rótulo impostor.
Para uma grande pena, não existe literatura amena. Exemplo: na consagrada obra machadiana, não esqueçamos jamais de ler O Alienista.
Com tantas investidas assediantes em torno de Gabriela ou Tieta, alguém se lembrará de ler Terras do Sem-fim, de Jorge Amado, talvez o seu melhor romance?
Da vasta bibliografia de Érico Veríssimo, num cantinho escuso de prateleira, achamos o México, a paisagem do México, o sentimento do México.
Viaje! Não perca tempo! Vá à biblioteca ou livraria mais próxima, solicite seu livro. E quando puder (não desaconselho) solicite também seu passaporte. Você viajará com conhecimento de causa.
Aproveite as palavras veríssimas do mestre Érico: A vida não merece bocejos.
E hasta la vista!

quarta-feira, 13 de julho de 2011


Quando o Amor é de Graça II: Bem Querer Sem Querer
Raymundo Netto especial para O POVO
Aprendi de amor assistindo — “das colinas tão distantes” — aos Teletubbies. Eu sei, eu sei, eu sei que isso não é coisa que se diga, de então, perdão, explicarei.
Em verdade, tal esdrúxula afirmação nada tem a ver com aquele maçante e recorrente programa inglês ou com sua famigerada “hora de dar tchau”, nem tampouco com sua bendita “torradinha”, “torradinha”, “torradinha”...
Sempre gostei de televisão. Muito. “Alucineava-me” com as produções cinematográficas, grandes roteiros, interpretações conflitivas, fotografias belíssimas e todas essas coisas que só o cinema traz de ruma, mas com o nascimento de minhas filhas passei a deixar a TV ligada sempre em infantis. Era uma maratona de programas em canais exclusivos para crianças, como Teletubbies; Bob, o construtor; Barney; Clifford, o cão vermelho e outros mais de nomes complicados.
Passados dois anos é que, um dia, encostado ao sofá, dei por mim assistindo à porcaria toda apenas para fazer companhia às meninas. Ali mesmo, diante de intermináveis e coloridos “tchaus”, fiz uma retrospectiva e cheguei à conclusão de que não há no mundo amor mais verdadeiro do que aquele cuja renúncia nasce sem sofrimento. Amor? Só podia de ser!
Aliás, percebi também: quando se têm filhos, todas as crianças do mundo assemelham-se a eles. Batem numa criancinha na Cochinchina e a gente sente daqui. Engraçado isso... Passamos a nos sensibilizar gravemente pelas crianças largadas em cestos de lixo, feridas em guerras no Oriente Médio, espancadas ou encarceradas pela violência do lar. Passamos a afagar a cabeça de pequenos estranhos e a distribuir-lhes sorrisos em playgrounds. Enfim, é como se a paternidade pudesse, ou devesse, ser compartilhada.
Quando a Lua e a Lia nasceram, padeci da experiência de um ano sem dormir uma noite completa. Acordavam-me todas as noites. Era uma seguida da outra, ou, quando às vezes, as duas juntas. Quando apenas uma, plantava-me à janela aberta à escuridão e cantarolava, balançando-me num movimento contínuo — uma espécie de forró em “slow motion” — e esperava seu sono chegar. Não funcionando, o plano B era sair ao sereno do condomínio — enrolava-as numa manta — e caminhava lentamente até o quarto bloco, tempo geralmente necessário para adormecê-las. Porém, quando chegava lá e elas ainda tinham os olhinhos abertos, pulava do plano C para o D, de desespero, a encrenca seria grande e, provavelmente, dessa vez, daríamos bom-dia ao Sol...
Morava num apartamento que não tinha nem 50m2 e quando elas acordavam a chorar, o bloco inteiro, ou mesmo o condomínio, noticiava no outro dia: “Elas deram trabalho ontem, né?” Pois é.
Quando completaram 3 meses, ao surgirem as famigeradas crises das cólicas, as visitas corriam por todos os lados, pulando as janelas em pavor: “Não aguento ver isso, não!” Era o que diziam.
Aos domingos, a mãe delas cumpria seu plantão no hospital e eu passava o dia todo com aqueles bebês do berço do quarto à sala. As cabeças eram grandes e carecas e o pescocinho parecia não poder dar com elas. Eram assim meus domingos: preparava o leite, trocava as fraldas, as banhava e ficava por ali jogando brinquedinhos para elas pegarem ou lendo meus livros no tapete da sala a ouvir aquela conversinha que não me dizia nada, justificada apenas pelo sorriso banguela, engraçado e o olhar brilhante que, de criança, ainda se tem.
Hoje, acho tediosas as frias e intermináveis discussões sobre “o amor que estraga as crianças”. Muito menos critico aos avós que, quase aflitos, o ofertam. As nossas crianças e as do mundo inteiro têm mesmo é que aproveitá-lo, pois, num futuro próximo descobrirão que desta nossa humanidade de discursos vazios e teorizações caleidoscopicamente inúteis o que sentirão falta sempre é de amor.

Contato: raymundo.netto@uol.com.br
Blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com

terça-feira, 12 de julho de 2011



Eco no Labirinto

Carlos Roberto Vazconcelos
Inicia-se o ano de 2006. Surpreendo-me lendo o romance O Nome da Rosa, do italiano Umberto Eco, num momento em que só aumenta, nas livrarias e bibliotecas, a procissão em busca do Código da Vinci, de Dan Brown.
Às vezes ando mesmo na contramão. E tenho manias muito pessoais: visitar cemitério em dias comuns, que não o de finados; preferir os templos vazios às missas ou cultos; cascavilhar nas locadoras de vídeo não os novos lançamentos, mas os eternos clássicos... Ler o Eco, em vez do Brown?
Na verdade, tentei ler O Nome da Rosa em 1991. Desci à biblioteca, abracei o livro e me dispus a decifrá-lo. Já adiantado na leitura, foi com decepção que verifiquei faltarem trinta páginas do volume. Devolvi-o à prateleira, assisti ao filme mais de uma vez e nunca mais quis saber do calhamaço.
Talvez eu demore quinze anos para decidir ler O Código da Vinci... e Anjos e Demônios... e Fortaleza Digital... Existem modismos, mesmo em literatura... Não sou obrigado a segui-los. Sou anacrônico. Não pela vaidade de ser. Mas por que nossa geração está cada vez mais ávida por novidades? Vivemos a era do descartável. A música de hoje não sobreviverá amanhã. Os derradeiros quintais deverão ser devastados para os arranha-céus florescerem. As estrelas que se apaguem para a sobrevivência do neon. Hoje leio Eco, mas deveria ler Brown?
A edição que tenho em mãos (33ª) é de 1991. Não havemos de nos assustar com tantas reedições, pois o livro de estreia de Eco foi realmente um êxito de vendas no mundo inteiro, um “sucesso unânime de crítica e público”, como veio anunciado na própria capa. Um best-seller (atente-se para a ambiguidade dessa expressão).
O autor dialoga com o escritor inglês Conan Doyle, estabelecendo referências explícitas ao personagem Sherlock Holmes. O “herói” da narrativa é Guilherme de Baskerville (primeira referência óbvia), um investigador cerebral, capaz de deduzir com acerto o que não viu. Lógico, exato, cartesiano, politicamente correto e de fina ironia. No cinema, nenhum outro ator poderia encarná-lo melhor do que Sean Connery. Perfeito. Aliás, justiça seja feita, o filme é uma obra-prima à parte. O parceiro de Guilherme é o noviço Adso, espécie de Watson, que vive os acontecimentos junto ao mestre e também se responsabiliza de narrá-lo à posteridade. Encontra-se uma vez o epíteto consagrado: Elementar, meu caro Adso (Watson), embora ele haja se popularizado sem aparecer uma vez sequer na obra original de Doyle.
A história é uma espécie de policial noir. Crimes misteriosos, insinuações eróticas, traições, cujo cenário é um mosteiro medieval da velha Itália. O livro é carregado de erudição (como não poderia deixar de ser, em se tratando de Umberto Eco), mas tem como leitmotiv a desmistificação religiosa, a denúncia da hipocrisia ocultada por trás dos hábitos, e principalmente, o fanatismo superando qualquer outro sentimento, inclusive o de Deus. Não seria justo negar que, em alguns momentos, o ritmo da narrativa é arrastado, monótono, bastante enfadonho, com incansáveis citações latinas e erudição escorrendo pelo ladrão. Algumas páginas parecem até desnecessárias para um enredo brilhante. Mas isso não ocorre também no Crime e Castigo, de Dostoiévski? No Guerra e Paz, de Tolstói? N’O Corcunda de Notre Dame, de Vítor Hugo? Não seria essa característica própria dos romances destinados a serem clássicos? Ou seriam prolixidades de estreante? Pensa-se até em desistir, mas a curiosidade é maior. Por que tantos crimes no ambiente sacrossanto? Onde há o crime deve haver o criminoso. Instala-se o suspense. 
Eco vai nos levando pelos labirintos do mosteiro, e das naturezas humanas, e da biblioteca, ponto crucial de toda a trama. Lá está Jorge de Burgos, personagem inspirado na figura de Jorge Luís Borges. O cego e seu labirinto. O minotauro à espreita... A biblioteca é um grande labirinto, signo do labirinto do mundo. Entras e não sabes se sairás.” (Eco, p.187). O labirinto é o símbolo mais evidente de estar perdido. (Borges).
O próprio enredo labiríntico da obra é intertextualidade. Dialoga com o conto A Biblioteca de Babilônia, de Borges. Eco valida o conceito do velho mestre de que livros podem nascer de livros, literaturas podem derivar de literaturas. Outro gênio, nosso Machado de Assis, também sabia estabelecer a perfeita diferença entre a recriação e a mera imitação.
Ah, e quanto ao título? A leitura não torna explícito. Que rosa? O conhecimento, a sabedoria, o sagrado...? Aí começa o mistério. O autor é semiólogo, homem preocupado com a representação dos signos. Possivelmente, o título foi inspirado em um dos versos de Romeu e Julieta: O que há em um nome? O que chamamos rosa cheiraria tão docemente com qualquer outro nome... Isto só reforça ainda uma vez a tese da intertextualidade
Eco nos conduz às consequências do fanatismo, fio tenro entre a razão e a loucura. No fim, resta-nos a lição de cinco linhas apresentada em mais de quinhentas e sessenta páginas:
Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, freqüentemente antes de si, às vezes em seu lugar. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.  
Em suma: Foge do presunçoso que detém a verdade absoluta.
Fica a pergunta: Ler ou não ler O Nome da Rosa? Aos mais exigentes, sim. Aos imediatistas, vejam o filme. Mas não esqueçam: a obra literária original sempre superará qualquer adaptação, mesmo as superproduções cinematográficas. Ora, quem dera pudéssemos ler os clássicos sempre nos idiomas originais. Ah, quem dera!   

segunda-feira, 11 de julho de 2011


Poetas de Quinta no lançamento do livro Avó de cães mestiços, de Eudismar Mendes.

Silas Falcão, apresentando o livro
Haroldo Felinto, Edismar, Raymundo Netto
Dionísio, Silas e Ednardo Gadelha
Airton Soares (AS) interpretando um ébrio personagem do livro
Vazconcelos, Eudismar Mendes e Eloise, filha do Vazconcelos
Vazconcelos, Eudismar e Marina
Entrevista de Eudismar Mendes, para o Papo Literário

quinta-feira, 7 de julho de 2011


                                     Nas pedras do Estoril

Bem ali, onde hoje é o calçadão, ela e o namorado passavam, antes de um show no Pirata.
A grana entre o ingresso e o bagulho.
E enquanto palmilhavam mar adentro o espigão perceberam as sobras compridas dos três bem atrás. Um com a mão nos bolsos. O segundo agitando nervoso os braços. O outro despejava calmamente goela abaixo o litro de aguardente.
As sombras foram diminuindo. O primeiro agora segurando a faca. O do meio maquinalmente tirava a roupa. E o terceiro reluzia o gargalho à luz da lua.
O despido agarrou o braço dela. Puxou com força sua calcinha e marcou sua coxa. No salto a lâmina fez um talho no braço dele. Em sua cabeça os vidros e o restinho da cachaça.
Ao acordar ela chorava ao seu lado. A lua lá pras bandas do Pirambu.
Eles quase nunca mais se falaram.
Depois certa dúvida se fora mesmo verdade.
Ele jamais retornou ao bairro. E esconde na manga longa da camisa a marca fina do arranhão, que subiu um pouco na direção do ombro. Mas só consegue gozar se se recorda enfim do triste episódio, variando até o infinito o seu desfecho.
Ela raramente se lembra do que aconteceu. Mas quando passa de carro pela Abolição não se furta de dar uma espiada, meio de esguelha. Olha, então, longamente para o marido e procura logo um assunto.

Pedro Salgueiro para O Povo


                          
                             De Sabão e Areia


Meu céu era ferro, naquele momento... E só.

Cilindros, bases, confusão de conexões... Chassi recoberto de lama petrificada.
De ferro tinha que ser meu ânimo para cumprir a tarefa, mas... Tarefas estão aí, meu caro; cumpre-as quem delas precisa.

Pra começar, presilha e gaxeta é coisa besta, mas necessário faz-se um exame prévio antes de arrancar qualquer parafuso mais incabuloso... A boa observação, por vezes, economiza preciosos minutos de energia, coisas que nós mecânicos – de uma e de outra – pouco dispomos numa despropositada manhã de segunda-feira.

Nem sempre o cuidado do olho detecta o caminho interno do defeito. Aí, moço, é respirar fundo e principiar desde fora... Por onde, evidentemente, tudo se começa. Engatar freio de mão, empurrar o jacaré, sacar pneus, despinçar pastilhas, meter fora o disco de freio... Depois é prensar-se com o rolimã entre o cimento e o teto de aço. Trabalho mesmo começa é logo depois, desatarraxando as oito sapatas de sustentação das juntas homocinéticas. Grande desafio de espírito, principalmente depois de uma domingueira envenenada. E quando então o parafuso teima em não dar folga? Naquela manhã, abafada de luz, me lembrava dos filmes de kung fu, do treinamento dos chineses pra pegar pressão. Sujeitinho franzino, mas no final dos exercícios virava artista capaz de esfarelar – de uma única lapada – uma pilastra dessas, dessa oficina de merda.  Precisão e força, moço... Tudo concentrado ali, nas falanges dos dedos. Vai! Vaai... E o satanás não ia!  Ô parafuso abençoado!  Nem um chio! E olha que se afobação enricasse, profissão mais concorrida do mundo seria a nossa. Quando o juízo rodopia não adianta continuar. Um cafezinho cai bem, mas aí tomava e olhava o cartaz daquela loura na parede, com aquela garupa toda empinada em minha direção, desfazendo-se de minha luta. “Olha aí bestão, essa aqui tu nunca vai montar!” Lembrei-me da nega do dia anterior. Que é que há?  Vá lá... Pelo menos estava ali, sob minhas posses... Esse do papel... Rabo de papel! Que serventia me tem? Muito diferente é rebolar com um corpo quente, de carne... Colocá-lo sob domínio, em poder dessa mão aqui, ó! Venha!

Pois bem, as sapatas quando encasquetam!... Mas já havia resolvido, por bem ou por mal, o resto da cachaça iria embora! Encaixei a angulação correta do antebraço e nem apliquei a maior das forças para o primeiro parafuso apitar. Viva! Lembrei do chinês fazendo apoio de frente com o polegar e o indicador... O mestre escanchado em sua cacunda. E me ri. É que se um parafuso assim me dá esse trabalho, moço, não vou pro seguinte enquanto não amolecer o bichinho e, pode ter certeza, mais cedo ou mais tarde o danado se rende nem que pra isso me arrebente junto com ele. Depois de afrouxada as bases, o feixe de molas cede. Mais um pequeno golpe de chave e eis o amortecedor em minhas mãos. A essa altura o suor escorria em caldas por baixo da Hilux... Duvidassem e pensariam que eu teria arriado o radiador.  Uma rápida vistoria nas buchas e... Veja bem amigo, qual a diferença minha para o médico? O carvão... E só! O carro é ver o corpo humano. Fluidos, cabos e amortecedores são o quê, além de sangue, nervos e cartilagens? Aqui já te mostro essa junta homocinética... Vê os rolamentos? Tá próximo ou não de uma artrose? Não é a rótula de um joelho? As buchas das sapatas... Completamente desgastadas! Daí para estourar um amortecedor é questão de tempo. Depois me vem o muquirana do proprietário achar que temos tramóia com casas de peças só porque falo pra trocar as buchas todas! O tal não entende nada de conjunto e se acha!

Naquele dia é porque tava queimando ruim. Não era para ter vindo, sabe como é, o cara quando é bom no que faz o patrão considera, sabe que o sistema da gente em dia de segunda-feira rende dez, vinte por cento... E olhe lá. Mas vim... Fiquei escornado ali naquele cantinho esperando o mundo acabar.  Aí me chega um cliente vip e o patrão não costuma alisar quando se trata de agradar gente desse tipo. Média por cima de média, não sei se me entende. Eu que tava semimorto tive por fina força de levantar o pé da cova pra deixar de ser otário.

Cinco horas e meia de serviço pegado! Cismei com a gata da parede. Só se rindo de mim com essa cinturinha que dá pra abarcar assim ó... Com minhas duas mãos. Ou tava doido, ou ouvia a fala de deboche de sua voz gozosa. “Trabalha jumento! Vai, trabalha!” Não reclamo, mas a vida bem que poderia levar um pouquinho de graxa, não acha?

Ao final inspeciono minuciosamente cada peça.  Mecânico tem que ter cabeça boa, moço. Vai que ele esquece de lubrificar algo ou deixa de voltear o parafuso um tantinho mais... É o tal médico que esquece linha e tesoura na barriga do paciente!

Serviço terminado, o negrume do dia que escorre pelo ralo só sai na base do sabão com areia.  E a cachaça? Você me pergunta. Nem vestígio!

Dia seguinte, não... Sou homem pra qualquer serviço.


Brennand de Sousa



segunda-feira, 4 de julho de 2011


                          “Ô de casa”
                          “Ô de fora” 

As residências estão habitadas de medos.
As câmeras de segurança desconfiam de qualquer pessoa. Alarmes estão prontos para delatarem assaltos. As guaritas blindadas procuram suspeitos. Cingindo a residência, cercas elétricas armazenam o choque fatal. O interfone não permite olharmos a cor dos olhos da irritada voz feminina perguntando: o que é? Cães pit bull latem apetitosos por ataques mutiladores.
Os extensos muros de pedra dos luxuosos condomínios residenciais difundem a rusticidade dos castelos medievais, que protegiam seus moradores dos povos invasores. Nesses condomínios - será que eles já possuem passagens subterrâneas? - cada inquilino soma às suas necessidades de defesa, outros equipamentos de segurança: portas e janelas gradeadas, assemelhando-se a celas prisionais.
Vizinhos não conversam mais. As cadeiras que pertenciam às calçadas embalando as conversas de boca de noite, hoje são imoladas pela TV.
As ruas estão habitadas de ausência de crianças. Tanta coisa a fazer. Tanta conversa. Tanta novidade. Elas não brincam mais de bila, de triângulo, de peteca. Não existem mais as rodas de meninos trocando figurinhas de álbuns. Todos estão nos majestosos condomínios, algemando-se ao computador.       
As residências de hoje são solitárias, lado a lado.
Sempre inventamos novas maneiras de errar.
Lastimável o ontem não ser para sempre. Casas de portas abertas aos ventos. Janelas escancaradas acolhendo a luz da alvorada. Muretas permitindo olhares para as azaléias, buganvílias e violetas nos jardins. Liberdade! Assim eram as casas da minha infância. Quando alguém chegava, batia palmas, se anunciando: “Ô de casa”. Da cozinha cheirosa de temperos, vinha a resposta: “Ô de fora”.
Mesmo não sabendo quem era. 

Silas Falcão

sexta-feira, 1 de julho de 2011



                                        Sinuca dois irmãos
Brennand de Sousa

... Aí não, roxinha! Pára! ... Filho-da-puta ladrão! Quase encobriu a seis! Porra! Vou perder outra! Como é que vou tirar vinte pontos com duas bolas na mesa? ... Se esse viado acha que vai me depenar, está muito enganado! Viro esse jogo! Ah se viro!  Fiu, fiu, fiu, fiu, fiu, La-ra-la-la-la... Vamos lá, filha, seja boazinha com o papai...  ...Na maciota! Melhor que a encomenda! Tá me vendo de rosa, malandro?

Ah Elizete, tinha que sair contigo justo ontem! Acabou com minha base, os braços tão um molambo. Vai, porra!  Joga!  Fiu, fiu, fiu, fiu, tra-lá-ra-la-la... Nunca mais invento de foder em véspera de jogo... Vai, filho-da-puta! Você me pôs em dificuldade, agora quero ver sair dessa. Essa daí é intirável, mano. Pago pra ver. Sabia! Sabia! Fiu, fiu, fiu, fiu...  Só treze pontinhos! Essa sete... deixa ver... deixa ver... É tudo ou nada, tudo ou nada...  Fiu, fiu, fiu, fiu... Bola sete, caçapa do meio!  Urhuuuu! Eu cantei! Tô no jogo, tô no jogo! Putz! A seis não ficou tão boa. Se errar ele me come. Não posso vacilar... Agora não! Fiu, fiu, fiu, fiu, la-ra-ra-ra-lá. Sangue frio! Tenho de virar pedra. Afinar a pontaria. Assim, assim, assim... Bola seis, canto esquerdo. Vai, vai, vai roxinha! Aí! Urhuuuu! Resta a sete, ai mãe!

Que há, mano? Ganhou as seis primeiras e o psicológico tá mexido? Tá. Não me engano.  Para ser bem sincero, nosso jogo é igual. A diferença é que alisamos bancos diferentes; você o da faculdade, eu o do boteco. Na moral mesmo... Nossas partidas são muito equilibradas. É que hoje, você tá infernal... Eu, um cagão!  Com certeza percebe, desde a primeira partida, que algo de errado anda com meu taco. Você sabe, claro!  Só não sabe o motivo. Elizete! Esgotei a noite toda na morena. Essas coisas afrouxam os nervos. Eu aprendo!   Essa partida tá quase na mão! É só respirar pela boca, congelar nas veias, o sangue. Descalço, não volto pra casa. Já perdi a grana toda... o relógio... Agora, a única dignidade que me resta...? Os sapatos, não perco! Sair daqui de pé sujo?  Fiu, fiu, fiu, fiu, tra-la-tra-la-ra. Eu sim, farei o doutorzinho voltar descalço pra casa... Puta-que-o-pariu! Como é que passo uma bola decisiva dessas! Ah Senhor! Tanto que fiz! Tem piedade! Assim não dá!

 Vai, lambuza essa taco de cuspe, sacana! Espirra, infeliz, vai! Sempre faz isso pra roçar o giz na sola do taco, filho-da...! Ele quer minar meus nervos! Sei disso. Se não me controlo, perco mais uma. O mano é sacana, tá a fim de humilhar. Quer me ver saindo de pé no chão...  Ai! Lá vem a pretinha deslizando no rumo certeiro do buraco... vai cair... A porra dessa caçapa tem uns sessenta centímetros de vão... Balançou nas quinas!!! Viva! Deus é pai!  Maravilha! E não colou na tabela, não colou!  Ffffuuu! Preciso manter o controle. A sorte tá do meu lado! Sobrou espaço entre a redondinha e o filamento da borracha. Três dedos. Suficiente! A angulação é boa, os nervos é que me estão em frangalhos. Não estava enganado! O mental dele tá ferrado. Amarelou bonito! Preciso definir agora, ou será a penúltima jogada da partida. Disso tenho certeza. Tabela, caçapa do canto! Concentre-se! Apague tudo à sua volta: o calor dos espectadores, o ruge-ruge das apostas, esse olho espichado do mano tangenciando a bainha da argola... Teu agouro não pega, véio! Essa já era!  A carambola vai estralar a sete contra a tabela e vai dormir lá no canto.  Assim será.  Vai dormir no fundo da caçapa, a pretinha. Como sei? Pressinto. Quer ver...? Foi! Vai macia, filhinha! No fundo do filó! Tchau! Urhuuuu! Urhuuuu!  Ganhei seu felá, ganhei, ganhei! Eu sou foda! Eu sou fooooodaaaaa!   Fiu, fiu, fiu, fiu, La-ra-li-ra-la-la... Ô mano, favor descalçar o pisante!  Isso, vai tirando os sapatos! Agacha. Adoro te ver menor!

 Em nenhuma derrota exasperei-me. Fui frio como o mármore...  Como? Como é, seu puto? Como vai me dar só um dos sapatos? Por um acaso você é perneta? Racho tua cabeça com esse taco! Como é? Não racho? Escrooooto!
 Na manhã seguinte vieram reclamar que quase matei meu irmão com uma porretada. Um veio me dizer que o pedaço do jacarandá saiu ricocheteando pela porta da rua, outro veio contar que a paulada pegou por cima da moleira, que o infeliz entrou em convulsão feito peixe fora d’água, outro ainda que, mesmo assim, com o mano tremelicando todo, arranquei-lhe o segundo pé...  Zequinha, a quem tinha como verdadeiro amigo, me disse que só fiz aquilo por medo de prosseguir com as revanches e meu irmão, esse passa bem... Sem os sapatos.