domingo, 29 de julho de 2012

                                                   



                                                  MANGANGÁ


Pedro Salgueiro para O Povo

A lembrança é este besouro mangangá, que de repente nos assusta com seu zunido grosso quando passamos por qualquer caminho. Crianças, tentávamos descobrir de onde vinha o tal zumbido forte — se da boquinha quase invisível, se das asas fortes que mais pareciam feitas de alumínio: ele sempre nos pegava de surpresa num vôo rasante para sumir logo em seguida na direção das cercas e depois de várias investidas acertava o buraco na estaca e sumia no oco da madeira. Perscrutávamos um minuto, vacilantes: tentando adivinhar a direção seguida, e com o tempo aprendemos a dar leves toques na madeira, descobrindo pelo som a parte ocada, em seguida aprumávamos um vidrinho de remédio vazio ou mesmo uma caixa de fósforos (mas somente em último caso, pois esta não nos permitia enxergar o besouro depois de preso); após colocarmos cuidadosamente o frasco no buraquinho (aí um de nós assumia a tarefa, geralmente o maior, pois era a tarefa mais difícil: que precisava de firmeza nas mãos, paciência e sangue frio para ver o mangangá passando a poucos centímetros dos dedos), dávamos golpes de pedras em toda a extensão da estaca, acompanhando com os ouvidos a trajetória, os avanços e recuos do voadorzinho acuado — levávamos às vezes manhãs inteiras desentocando um deles (e os menores eram os mais trabalhosos, coisa que não entendíamos, porém aceitávamos como mais uma verdade entre as tantas que íamos aos poucos descobrindo: e as tardes eram gastas nas análises, questionamentos e hipóteses a respeito do nosso prisioneiro: das simples elucubrações dos coleguinhas mais novos às mais complexas especulações dos mais velhos (e ali fazíamos os nossos primeiros embates mentais, pois até então apenas havíamos usado a força, nas brigas e partidas de futebol): quem tinha mais criatividade conquistava o respeito e a admiração dos outros, e não raramente os papéis se invertiam: aqueles mais fortes nas arengas e nas brincadeiras tornavam-se fracotes nesse jogo sutil de hipóteses e divagações.
Nós, os mais novos, aproveitávamos essa arena livre para adquirir respeito: nem sempre conseguíamos, e não raras vezes exagerávamos nas elucubrações e fantasias e éramos saudados com sonoras vaias, mangações que persistiam pela tarde inteira e até pelos dias seguintes (de acordo com o absurdo das afirmações). As vaias e risadas quase sempre eram acompanhadas de tapas e cutucões. De forma que aprendíamos também a dosar nossa imaginação para não cair no ridículo (não conto às vezes em que tive que me trancar em casa por dias seguidos, acuado pelas brincadeiras dos amiguinhos por causa de uma opinião mais exagerada).
                                                  (cavalo-do-cão)
                                                          

A caça ao besouro não era brincadeira constante, pois dependíamos de ele nos aparecer de surpresa, o que não era frequente: portanto, assim como as lembranças, não podíamos nos prevenir, mesmo assim guardávamos sempre um vidrinho vazio no bolso do calção.
 
Quem dera serem eles (e elas) como o feio cavalo-do-cão que constantemente nos assaltava pelos terreiros, com suas asas compridas e seu vôo desajeitado: insultava-nos corajosamente, até ser abatido e esquartejado impiedosamente por todos nós: e não raramente o despedaçávamos com uma raiva sincera, que ele inexplicavelmente despertava em nós… com seu corpo negro, magro, peludo como deve ser a figura do satanás.
Mas o que ele nunca despertava — apesar da estranheza de suas formas e do medo que nos causava — era a nossa imaginação.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

MONUMENTO AO ÍNDIO GALDINO
                                               

GALDINO

Chegaram Olharam Jogaram
Gasolina
Tacaram fogo.

E riram e cantaram e dançaram muito brancos
Em volta do
                              Corpogritoflamejante
Como fossem índios
Em festa,
Como fossem
Algo mais que playboys
Brancos.

Queimaram o índio
Queimaram-no lixo
Queimaram-no bicho
                                       morto
Queimaram-no vivo.

Queimaram-no indi-
                                     gente
Os pretensos indígetes:            
Tomás Oliveira de Almeida
Eron Chaves Oliveira           
Max Rogério Alves            
Antonio Novely Cardoso e           
(G de Galdino?) G.N.A.J.
, este menor de idade mas já enorme           
Boçalidade.

Queimaram o índio à vontade
Queimaram minha vontade
De ser gente.



O Poeta de Meia-Tigela

sexta-feira, 13 de julho de 2012



                                            A REPRODUÇÃO
                                             
                          Em ti Darlene encontrei da Gioconda
o mesmo riso zombeteiro e insinuante.
A boa aura e aura má que nela ronda
d’igual maneira se derrama em teu semblante.

A calma sanha que ia n'alma de Da Vinci
pintou-se em tua face atenta e ausente.
E por mais que te dissociar eu tente
tu me incitas com o mesmo olhar perto e distante.

Tu vais nas ruas como anda esta pintura
sobre os tempos para que o mundo se arrependa
E plagiário eu me tornei pela injúria
de tê-la visto em carne e alma e osso e lenda.

Que queres tu de mim estranha deusa?
Que eu creia ser mentira o que tu finges?
Nem queiras que eu te decifre ó bela esfinge
pois o que mais na vida quero é ser tua presa.

Carlos Nóbrega

quinta-feira, 12 de julho de 2012


                          Da Preguiça como Método de Guerrilha

Pedro Salgueiro para O POVO

Desde que me entendo por gente sou um sujeito lesado. Minha mãe diz ter suspeitado até quase o oitavo mês de que eu não nasceria, tamanha era minha imobilidade intrauterina: não chutava, não me virava, permaneci (para desespero dela e do médico) quietinho até a véspera do parto. Até a véspera não, até a hora exata, pois mesmo já enxergando a luz forte vinda da janela do quarto de minha avó ainda aproveitei para uma última e descompromissada cochiladinha dentro daquele líquido quentinho.
Claro, não sou bobo, que nasci a fórceps.
Cresci um menino mofino: vivia pelos cantos coçando a cabeçona cheia de lêndeas. Por conta disso levei muitos cascudos de meu pai, bastantes gritos de minha mãe, além de mangação dos amigos e irmãos. Em compensação, na escola eu era o mais comportado. Não por convicção, verdade se diga, mas por puro comodismo, preguiça mesmo de fazer bagunça. Logo, fui me tornando um adolescente atípico, preferia músicas lentas, ambientes despovoados, colegas tristes, os esportes menos radicais. Jogar bila e soltar arraia eram minhas brincadeiras preferidas, nelas desenvolvi grandes habilidades. Mesmo no futebol, esporte obrigatório no colégio e no bairro, escolhi (claro) a posição de “beque parado”: compensava com um bom passe a minha total falta de mobilidade.
Nunca entendi por que me apelidaram de “coqueiro”, que não foi o pior dos muitos apelidos que levei pela vida afora. “Marcha lenta”, “Devagar com câimbra”, “Recordista de cem metros rasos para tartarugas” e mil outros mais. Se na época já se falasse em bullying, eu seria um caso a ser estudado pela universidade.
Mas graças a Deus me tornei um adulto tranquilo, me casei cedo... porque sempre fui caseiro, para desespero dos de casa. Tenho um verdadeiro fascínio por televisão, que minha adorada esposa diz (sem dó) ser o vício predileto dos malandros. Também adoro livros, muito embora passe meses para terminar um reles voluminho de contos. Poesia é minha preferência, haicais especialmente. Com o tempo fui me aventurando pela prosa, contos e crônicas sempre, romances jamais. Até arrisco escrever alguns minicontos e ganhei diversos concursos literários. Ah, sim, meu livro preferido é Da preguiça como método de trabalho, do mais que “acomodado” e querido poeta Mário Quintana, e a música que vivo cantarolando por aí é Soy latino americano, de Zé Rodrix, um “molenga” convicto.
Concluí a faculdade de Turismo em longos doze anos, quase o triplo do tempo permitido e quando já havia recebido vários avisos ameaçadores da coordenação. Mas terminei, mesmo tendo que ir colar grau em data especial, pois esqueci o dia da solenidade. E como todo bom “descansado” passei mais alguns anos pensando num emprego que se adaptasse ao meu ritmo, que com a ajuda de amigos e familiares não foi lá muito difícil. Hoje sou um modesto funcionário público, que cumpre todo santo dia o calvário de bater ponto, não sem contar (e marcar no calendário sobre a mesa) religiosamente os dias que faltam para a minha tão sonhada (e ainda distante) aposentadoria.
Atravessando a meia idade vou adquirindo o meu ritmo ideal, pois o avançar dos anos vai me concedendo os álibis necessários para uma vivência mais tranquila.
 Mas para fechar minha penosa missão aqui na terra decidi finalmente fazer um mestrado, sonho antigo de quando ainda terminava a faculdade (e lembrado até a exaustão por minha família em muitos enchimentos de saco). Escolhi o tema, soletrando na cartilha de Dom Gilberto Freyre e rezando na igreja de São Cascudo: a lenta e eficientíssima guerrilha (mais eficiente que o magistral pacifismo de Ghandi) movida pelos nossos “preguiçosos” indígenas contra o ganancioso explorador europeu que aportou em nossos “tristes trópicos”. Tática tão eficiente que os forasteiros tiveram que recorrer ao continente africano para conseguir mão de obra escrava para seus nefastos projetos. Até escolhi (mentalmente, claro) a bibliografia a ser usada e, principalmente, já elegi a eficientíssima arma (e símbolo) usada pelos nativos em seu paciente (e vitorioso) empreendimento – A REDE, esse que talvez seja o símbolo maior dessa maravilhosa guerrilha e com o qual nosso primeiro habitante enfrentou e venceu o poderoso inimigo. Objeto lúdico e mortal que, hoje em dia, apenas o pobre Estado do Ceará usa.

P.S.: Até já teria começado a rabiscar as primeiras linhas de meu projeto, não fosse a encomenda de uma croniqueta de duas páginas sobre a “preguiça”, feita por este prestigioso jornal, que me consumiu os meses de maio e junho todinhos, e que talvez ainda me levem uns bons dias de revisão.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

                       
                                  Secult – Uma renovação urgente
Ednardo Honório de Lima¹historiador – graduado pela Universidade Federal do Ceará

O Estado do Ceará possui a mais antiga Secretaria de Cultura do Brasil, sua fundação foi resultante de uma cobrança feita por intelectuais, ainda na década de 40, quando no então Congresso de Escritores do Ceará no ano de 1946, o historiador Raimundo Girão expôs que era necessário agrupar todas as manifestações culturais dentro de um departamento, para salva guardar tão precioso patrimônio, vinte anos depois na década de 60, precisamente ano de 1966, no dia 09 de dezembro era este órgão instituído pelo governador Plácido Aderaldo Castelo – lembrando que teve sua origem ainda no governo Virgilio Távora, chamado I veterado (1963-1966) – seu primeiro secretário o mesmo que alertou da necessidade de sua criação. Hoje a Secretaria de Cultura do Ceará que teve relevante presença na estrutura do governo estadual, passa atualmente por uma situação de abandono, que se agravou nas últimas décadas, pela negligência de governos que prometeram mudanças, mas não cumpriram.
A degradação da Secult é resultante de anos a que ficou relegada um assunto importante que é referente ao seu quadro funcional, das nomeações da época da sua instalação, não dá para contar mais, pois a grande maioria está se aposentando e para suprir tal falta entra as terceirizações que hoje são presença predominante nas repartições públicas, é algo alarmante, a falta de servidores chegou a ser confirmado pelo ex – secretário de cultura o jornalista Nilton Almeida: “há décadas não se faz concurso para órgão”² por falta de um quadro funcional fixo, presenciamos que os equipamentos da Secult não têm a devida operacionalidade que se espera. Vejam no caso o Arquivo público , seja em sua sede na Rua Senador Alencar , como no chamado arquivo intermediário localizado na Rua Pinto Madeira, é nítida a escassez de servidores, que levou o diretor do APEC, Márcio Porto dizer: “O último concurso público foi há muito tempo, nem faço ideia. Talvez nos anos 70 ou 80” ³ outro equipamento a fazer coro de tal situação é o Museu do Ceará, sua diretora a historiadora Cristina Holanda também apresentou esse problema para imprensa em matéria especial referente ao Museu histórico : “Aliás, falta espaço e faltam funcionários para dar conta do potencial que o acervo tem.”4
A imprensa cearense grande aliada na defesa do bem público e da cidadania coloca em matérias nas paginas dos jornais impressos, na tela da TV e na internet, esse descaso com a cultura do nosso estado, embora as haja particularidades ou as razões mais complexas para justificar tais descuidos, o que ronda na verdade é um perigo visível ao patrimônio cultural do Ceará, seja material ou imaterial, até quando vamos ouvir tantas desculpas, ou melhor, palavras vazias de um secretário ou mesmo do governador, no final o verdadeiro responsável por deixar acontecer isso. Mas digo para uma secretaria que chegou aos 45 anos de existência soa como uma desculpa difícil de acreditar.
Faz-se urgente a renovação na Secult de seu quadro de servidores, pois somente através de concurso público, acima de tudo seguindo o que determina a nossa constituição de 1988, e tal seleção não seja algo exclusivo para sua nova sede, que se desdobre aos outros equipamentos da referida secretaria.
É uma questão de respeito ao bem público e a história desta secretaria, pois vai chegar um momento que vamos ver o domínio do privado no lugar do público, se continuar neste ritmo o que podemos visualizar é um cenário dantesco, embora já se pronuncie esses primeiros sinais.
O maior perdedor nisso tudo na verdade é o Estado do Ceará, como também aqueles que tanto prezam pela nossa cultura, lembremos o que disse o grande jurista Clóvis Beviláqua: “Aquele que não defende o seu patrimônio não é digno dele” 5
Renovação já para nossa Secretaria de Cultura do Estado do Ceará para que possa realmente agir como secretaria e como defensora do bem que ela guarda e é responsável.

[1] historiador – graduado pela Universidade Federal do Ceará
[2] Nilton Almeida (1998-2002) In: Santos, Fabiano dos. 40 anos da Secretaria da Cultura: a história da Secult por seus secretários. Fortaleza: Secult, 2006, p 86.
[3] Chaves, Raquel. Memória em reconstituição. In: Revista Universidade Pública-UP, nª 62, Fortaleza: Expressão gráfica, Julho/Agosto de 2011, p 20.
[4] Marques, Fábio. Histórias em Movimento – Museus: O desafio da memória In: Caderno 3 – Diário do Nordeste, 8 de janeiro de 2012 , p 04.
[5] JUSTA, Gastão. O escritor Brasileiro em face do Direito Autoral In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES SEÇÃO CEARÁ – CONGRESSO CAERENSES DE ESCRITORES, Fortaleza : Edições Clã 1947, p 132.
Bibliografia e Fontes

1.     Periódicos·      
*Diário do Nordeste, Fortaleza, Caderno 3 – Museus: O desafio da memória. 08 de janeiro de 2012.·       
*Revista Universidade Pública nª 62, Fortaleza: Expressão Gráfica Julho e Agosto de 2011.2.    

Livros·       
Santos, Fabiano dos. 40 anos da Secretaria da Cultura: a história da Secult por seus secretários. Fortaleza: Secult, 2006.·       
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES – SEÇÃO DO CEARÁ Afirmação In: CONGRESSO CEARENSE DE ESCRITORES, 1947, Anais… Fortaleza : Edições Clã , 1947.

                                

                        Casinha


Carlos Nóbrega


Casinha espremida entre os grandes prédios,
lhe falta até a obrigação de ter um número.
Tão inocente!
Tão inocente a avozinha da rua...
E ao meu olhar
os edifícios, em colossal solidão,
suplicam a ela a todo instante
uma esmolinha de humanidade.

quarta-feira, 4 de julho de 2012



                                                O século seguinte


Carlos Nóbrega



Eis o tempo
da profunda busca

em que se busca
o que já está nas mãos.


                                

                               O CONTO NA TERRA DO CONTO

Crônica de Pedro Salgueiro para O povo

O conto é o gênero literário mais cultuado no Ceará (alguém já afirmou que temos mais contadores de histórias que bodegueiros). Rara foi a geração que não nos deu pelo menos meia dúzia de bons contistas. Mas raros são os excepcionais, visto que o gênero é difícil, escorregadio, enganoso, muitos acham que basta contar uma anedota interessante, alinhavar bem um caso curioso, para obter êxito.
Atualmente temos pelo menos quatro gerações produzindo narrativas curtas de boa qualidade por aqui. Não sem tempo, a SecultCE editará em breve edição completa dos contos do saudoso Moreira Campos, trazendo inclusive seu livro inédito A Gota Delirante. Em agosto próximo, o nosso maior contista vivo, o oitentão Caio Porfírio Carneiro, lançará em Fortaleza (comemorando 50 anos de sua estreia com o já clássico “Trapiá”) sua nova coletânea: Veredas da Caminhada.
Há poucos meses dois escritores que publicaram pela primeira vez nos Anos 70 nos presentearam com dois ótimos livros: Airton Monte lançou o longamente aguardado, Os Bailarinos, e Nilto Maciel editou seu nono livro de narrativas, Luz Vermelha que se Azula. Obras importantes que solidificam dois dos mais importantes nomes de nossas letras.
Depois de quase 3 décadas afastados da literatura, dois remanescentes dos Anos 80, Eugênio Leandro (que só havia editado Rei Piau, acaba de lançar o pujante A Noite dos Manequins) e Isa Magalhães (que estreou com Psiu, o síndico pode estar ouvindo, editará em breve O Jogo do Amor) retornam ao gênero conto.
As ótimas Inez Figueredo (que estreou maravilhosamente bem no conto com Palavras por Aí à Ventura) e Maria Thereza Leite (que com seu terceiro livro de histórias curtas, Avenida dos Ventos, a ser lançado brevemente, se solidifica como uma de nossas melhores contistas) enriquecem com seus talentos este gênero que no passado recente recebeu importantes contribuições de escritoras como Margarida Sabóia de Carvalho, Natércia Campos, Beatriz Alcântara, Regine Limaverde, Joyce Cavalcante, Angela Gutiérrez, Lurdinha Leite Barbosa e muitas, muitas outras.
De uma geração que estreou nos Anos 90 dois excelentes escritores nos trouxeram obras singulares: os premiadíssimos Joan Edesson de Oliveira, com seu fantástico O Plantador de Borboletas, e Tércia Montenegro, com seu belo O Tempo em Estado Sólido, que recentemente venceu o prestigioso Prêmio Governo do Estado de Minas Gerais. Geração que já nos deu Ronaldo Correia de Brito, Dimas Carvalho, Luciano Bonfim, Paulo de Tarso Pardal, Jorge Pieiro, Alano de Freitas, Astolfo Lima Sandy... 
Outro livro de narrativas breves bastante aguardado foi Os Acangapebas, de Raymundo Netto (vencedor do Edital da SecultFOR e do Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, da Academia Cearense de Letras), digno representante de uma geração recente que já nos apresentou Fernando Siqueira Pinheiro (com O Tatuador de Palavras e Ao Lado do Morto), Carlos Vazconcelos (com Mundo dos Vivos), Túlio Monteiro (com Dois Dedos de Prosa com Graciliano Ramos), Carmélia Aragão (com Eu Vou Esquecer Você em Paris), Alan Santiago (com Lua de Ur num Prato de Terra), Renato Barros de Castro (com Dulcineia em Hollywood), Brennand Bandeira (com Entre Oito Paredes), Junior Ratts (com Sweet Dreams), Dércio Braúna (com Como um Cão que Sonha a Noite Só), Angela Calou (com Eu Tenho Medo de Gorki), dentre vários outros.
Através de Edital da SecultCE, recentemente foi publicada a coletânea Quantas de Nós, com histórias curtas de Carmélia Aragão, Cleudene Aragão, Vânia Vasconcelos, Ruth de Paula, Maria Thereza Leite e Inês Cardoso.
De uma geração ainda mais nova foi editada a seleta Metropolis (Edital da SecultFOR), que traz sete contos de cada um dos sete participantes: Anna Karine Lima, Fernanda Meireles, Flávia Oliveira, Joice Nunes, Mariana Marques, Natércia Pontes (que lançou o livrete Az Mulerez) e Jorge Pieiro (único veterano do grupo, que acaba de publicar o livro de contemas, como ele denomina seus relatos breves, O Outro Dono do Fim do Mundo), quase todos inéditos em livro e que têm na internet seu principal campo de atuação.
Além dessa quantidade formidável de lançamentos recentes, os contos vêm sendo incansavelmente publicados nas diversas revistas literárias (Acauã, Corsário, Pajeurbe, Pindaíba, Literapia, Caos Portátil, Singular, Para Mamíferos, Aldeota, Pechisbeque etc.), mas principalmente nos muitos blogs e sites na internet (dentre os quais destacaria os textos em prosa de Ruy Vasconcelos no seu excelente http://afetivagem.blogspot.com//).

P.S(1).: Não podemos nos esquecer de cearenses que residem há muitos anos em outros Estados, como Caio Porfírio Carneiro, Sérgio Telles, Adriano Espínola, Carlos Gildemar Pontes, Ronaldo Correia de Brito, Rinaldo de Fernandes, Everardo Norões, Majela Colares, entre outros, que continuam publicando bons livros de contos com uma regularidade impressionante. 

P.S(2).: Quem cita acaba sempre esquecendo nomes, mas eu jamais poderia omitir três recentes lançamentos: O Romance que Explodiu, de Carlos Emilio Corrêa Lima (que já havia publicado Ofos, de narrativas, nos Anos 70), Malindrânia, do poeta Adriano Espínola (que faz sua estréia no gênero conto) e O Professor de Piano, de Rinaldo de Fernandes (maranhense hoje radicado na Paraíba, mas que fez faculdade, co-editou a revista Acauã e publicou seus primeiros livros por aqui).
   


                                   O Prisioneiro no Espelho

Pedro Salgueiro para O POVO

 O pobre do cronista, acuado pela falta de assunto, vive à procura de um personagem na multidão de anônimos que pululam pelas ruas de nossa escrotinha loura desmazelada pelo sol. Um perneta ali, um careca acolá, bem adiante um velhote de pente no bolso e brilhantina no cabelo ralinho (cuidado há de ter o infeliz do escrevinhador desocupado, pois, como assegura nosso cronista maior Airton Monte, negro não é mais negro, gordo não é mais gordo, pobre não é mais pobre, nem puta é mais puta, então se procura logo, para não criar problemas com ninguém, um danado de um eufemismozinho de meia-tigela).
 Dia desses encontrei um personagem que não tinha lá muitos predicados físicos que o destacasse da maioria ignara: altura normal, magreza sem graça, uma feiúra quase suportável. Tirante a canela finíssima e uns olhos esbugalhados, passaria despercebido em qualquer fila de banco.
 Mas o que o distinguia dos outros e o colocava na fila dos personagens que poderiam ser utilizados pelo cronista sem assunto era uma característica psicológica notada por todos: o ressentimento. Olhando de perto não se acreditava — como era ressentido o nosso futuro personagem! Conversando meia hora com ele já teríamos uma coleção valiosa de pérolas do ressentimento.
 Primeiro, ressentia-se de uma infância sem novidades: não jogou bila, bola ou bilhar com os companheirinhos. Não tomou banho de açude ou rio, nunca de chuva, apenas de bica. Na adolescência era sempre deixado de lado pelas meninas mais bonitinhas, nem paquerar conseguia. Por conta disso casou-se com a primeira namorada, quase sem conhecer ainda as muitas nuanças do amor, suas veredas e atalhos: tornou-se, portanto, um ressentido do amor. Ver os colegas bem casados para ele era um tormento, então não se cansava de tentar separá-los: paquerava com uma, mandava bilhetes para outras, piscava o olhão para a incauta da mesa à frente.
 Escolheu uma profissão terrível, só tédio e monotonia. Mas para fugir dos percalços de sua vida tristonha resolveu se dedicar às artes, pois tinha uma ponta de sensibilidade em meio ao profundo poço (cheio de esterco) de sua alma. Incansavelmente publicou, com o próprio dinheiro, um livro atrás dos outros por anos e anos. Tantos que até ele mesmo tinha dificuldades em contá-los, nomeá-los, classificá-los...
 Se sua poesia não agradasse aos outros, coitados dos outros. Se sua prosa mais que comum não satisfizesse os críticos, coitados dos críticos. Se as editoras nem bola dessem aos seus insistentes envios de originais, infelizes das editoras. Se um colega escritor fosse agraciado com um prêmio, estudado no vestibular, convidado a escrever num jornal ou revista; e se fosse, então, solidamente casado, jovem e bem apessoado, que Deus o protegesse. Enfim, coitados de todos os colegas.
 O homem era um poço de ressentimentos: transbordava aos borbotões por todos seus poros a ira da inveja, o asco da maledicência. Ruminava diuturnamente suas próprias fezes e extraía do seu hálito fétido o mais puro e maléfico veneno, que (depois de bem estilado) ele ia, pouco a pouco, injetando nas veias dos que estivessem na sua mira.
 E como era de se esperar, o ressentido acabou sozinho: os filhos bem distantes, a ex-mulher só lembrava-se dele na hora de receber a pensão, os amigos foram saindo de fininho, os vizinhos foram aumentando os muros. Quando nem bem esperava (ou será que esperava e, num teatro de puro masoquismo, se regojizava com tudo isso?) ele acabou sozinho em sua grande casa, cercado de livros, os muros ao redor altíssimos mal o deixavam ver uma frestinha de luz do sol. Então, já não podendo mais exercer seu triste ofício do ressentimento, postou-se na frente do espelho e sobre ele jogou todo o seu ódio guardado desde a mais remota infância.
P.S.: Um amigo maldoso (mas bem inteligente e afeito a generalizações) afirma que, na verdade, não se trata de um indivíduo, mas de uma geração inteira de ressentidos; e ainda tenta teorizar sobre a tal geração (que ele intitula “degeneração”): “Era uma turma da qual muito se esperava e bromaram todos. Que, também, esperava muito de si. Cada um surgiu com um rei na barriga, atirando pedras em quem estivesse no caminho: e hoje (que quase todos os reis foram destronados, só lhes restaram as barrigas), tantos anos depois, só lhes sobrou a empáfia, o fracasso, o melindre. E o ressentimento!”. Depois, dando uma gaitadinha cínica, ainda arremata (feito um vampiro com sua faca de prata): “Esta, sim, é a verdadeira Geração Perdida, não escapou um!”.

                                                       
                                              Beleza inútil


Ao Carlos Nóbrega


Versos inúteis,
Mas não gratuitos,
Desnecessários
Como o lixo.

Bem ao contrário,
Inúteis e raros
E preciosos
Como o luxo.

Manuel S. Bulcão Neto