quarta-feira, 29 de junho de 2011

                                          A pasta azul

A chuva espalha um vento frio. Em segundos, os relâmpagos clareiam fragmentos da escuridão.
Ligo os faróis. De repente um vulto acena. Paro o carro no acostamento.
– Boa noite.
– Boa noite, respondo.
– O senhor pode me dar uma carona até o cruzamento?
Desconfiado, olho o estranho vestindo uma capa branca. De qual ermo desta BR ele surgiu? Arrisco a carona.
– Pode entrar.
– Obrigado.
– De onde o senhor vem?
– De um atendimento.
Observo a sua pasta e o seu olhar de quem abstrai memórias.
Percorro quilômetros, acompanhado do seu mutismo. O olhar imóvel continua.
– Desço aqui.
– O senhor está bem?
– Estou.
– Qual o seu nome?
– Enzo Flores. Muito obrigado pela carona.
Assim como surgiu, ele some no cruzamento.
A chuva se desgruda da terra.
Sob a florescência das lâmpadas iluminando a madrugada, procuro o número da casa da minha irmã.
Ela abre a porta com um sorriso que eu não contemplava há vários anos.
Saboreando uma xícara de chocolate quente, falo-lhe da viagem.
– Dei carona a uma pessoa estranha.
– Quem era?
– Um senhor alto, forte, uns 70 anos. Cabelos grisalhos. A voz grave e hospitaleira.
– Qual o nome dele?
– Enzo Flores.
Graussá sentiu seu coração disparar e os joelhos tremerem.
– Meu irmão, você tem certeza que o nome dele é esse?
–Lógico. Fiquei muito atento quando ele falou.
– Mas...                                                                              
– O que foi?
– Esse senhor era médico nesta cidade e percorria a região fazendo atendimentos gratuitos. Ele morreu faz anos!
 
Silas Falcão

    


                                         O jogo de damas

Pedro Salgueiro

Há cento e trinta anos jogava aquela partida; os parceiros se revezavam até sumirem de vez; os filhos e netos os sucediam e tornavam a envelhecer, enquanto ele permanecia ao pé do balcão, pelo lado de dentro: somente ele sentado – o tilintar dos dedos da mão esquerda continuava a fazer sulcos na madeira: os parceiros teimavam em desaparecer.
Na madrugada em que vieram me avisar que ele jogava à luz de candeeiro na mesma mercearia virada para o nascente, no mercado, eu comecei a chorar e rezei três terços e acendi duas velas em cada canto da sala; não dormi a madrugada inteira, sem coragem de ir vê-lo;  a rua deserta, os cães ladrando insistentes, até os grilos pararam...
...eu pequenino e fugia da oficina de meu pai e maquinalmente corria à mercearia do avô, onde já divisa, de longe, as latas de bombons enferrujadas, e nunca as vimos por dentro, é um mistério que estamos levando para o túmulo... o tac-tac das pedras no tabuleiro de vidro nos invadia os ouvidos e nos atraia pra lá.
Disfarçados, fingíamos nem ligar, sentados a um canto. E apenas um mundo girava em seu eixo naquela tarde morta em que os únicos ruídos eram o trovejar das moscas no saco de açúcar e o arrastar das pedras no vidro.
O silencio doía. Comentários, só os dele, irritado com alguma demora do adversário – cantava às vezes uma musiquinha insistente, quando ganhava folgado: “– caboclo, caboclo... ô caboclo perigoso!” ou insistia por horas na mesma palavra, até o limite da exaustão: “– mas homem, mas homem, mas homem...”
Madrugávamos com o reco-teco das pedras no tabuleiro da cabeça, o começo incisivo, a vagareza do meio, rumando para o final nervoso de horas depois; no resto da tarde, imitava-se com a dama riscada na areia e nos enraivecíamos por as pedras de cacos de telha não chiarem no tabuleiro do chão...
... e o vizinho contava de novo que o viram jogar, cantarolando a mesma palavra a madrugada inteira, o bater de pedras invadindo o mercado e assustando quem passava desligado pelas calçadas àquela hora da noite.
Acendi mais uma vela, pensei em quebrar a dama empoeirada e não tive coragem... ela estava gravada, fazia tempo, na lembrança; abandonara para sempre o baú velho em que fora esquecida. Perseguia-me. Agora o bisavô do meu vizinho vinha insistir que o deixassem descansar, que parassem com aquele jogo a noite toda, sem sossego.
...decidi abrir o armário antigo, há décadas fechado. Jogaria o tabuleiro no cacimbão ou quebraria a marteladas, contudo...
...abri de chofre a tampa e, entre casas de aranha e poeira, a jogada já não era a mesma da noite passada; movi a minha pedra, fechei o armário num supetão, rezei meu terço, acendi as velas...

   (Do livro O Cravo Roxo do Diabo, o conto fantástico no Ceará)


               Quando o Amor é de Graça I: As Primeiras Filhas

Raymundo Netto para O POVO

“São duas!” Era o que saltava à garganta a um telefone público numa manhã ventosa da praça da Igreja do Carmo, em 1999. Saíra da clínica onde Ana Rachel, minha esposa, grávida, fazia exame ultrassonográfico. “São duas!”: Luana Rachel e Liana Rebeca. A Lua e a Lia de ainda hoje e sempre.
Casados há quatro anos, aguardávamos melhor momento para ter filhos — hoje, elas têm onze, e vejo, pelos critérios da época, tal momento ainda não chegou —, mas um dia, ao ser tangido pela sensação involuntária de que casamento sem filhos é dividir morada, decidi planejar a “gravidez familiar”. O estranho nisso? Não comentei tal plano com a futura gestante, certo de ela ser a maior interessada — até hoje não acredita em patavina da história que agora escrevo.
Pus-me a escolher o destino deste “seria” (como ainda não “era”, ao invés de “ser”, “seria”): nasceria em junho, canceriana — como eu —, signo artístico, emotivo, cujo astro regente é a Lua... Preferia fosse menina — há de sempre me gostava mais as mulheres — e o nome gritava: Lua Rachel. Tudo a ver! — mais tarde, pensando na possibilidade de tornar-se motivo de chacota entre coleguinhas despeitadas de classe — haveria de encontrá-las e de ser linda —, “Lua” virou “Luana”.
Para garantir o êxito do meu plano, consultei um ginecologista, tracei cálculos conceptivos, marquei a data de “lançamento”, o dia propício para o “big-bang” e, finalmente, DEUS-e o resultado. Não vinda, ineditamente, a “regra” — nunca me dei bem com regras —, Rachel procurou sua médica. Contrário ao esperado, esta afirmou que a chance de gravidez seria “de uma em mil”, desfiando, sem pena, o seu rosário semiótico de contas micropolicísticas dentre outros motivistos.
Rachel saiu dali certa da condenação, mas eu, embora não saiba baseado em quê, não. Chegou a data de recebimento do exame laboratorial e — “Para quê?” — não foi buscá-lo. Pois fui eu. Resultado positivo: “Rachel, você está grávida!”, contei-lhe ao telefone. E, assim, a expressão dessa alegria em seu rosto nunca vi, mas por motivos que só pondera o imponderável, eu não a esqueço. Ah, claro, não mais voltou àquela médica agourenta que de nunca será contemplada em loterias.
Meses após, íamos à ultrassonografia e, nesse dia, sonhei: olhava com atenção, deitadas na cama, duas meninas bem parecidas, como os são os irmãos, não como gêmeas. Incomodava, deu-me a entender, imaginá-las de parentesco tão próximo e, ao mesmo tempo, completamente estranhas... acordei!
Daí, a surpresa ao exame. O médico, olhando à tela, disse: “Uma menina... Já tem nome?” “Sim, Luana Rachel, doutor” “Rachel? Pois vamos ver agora a Rebeca...” “São duas?” Sim, eram, e eu, dado a crer em “sinais”, aceitei de pronto o batismo de São Doutor: Rebeca. Liana Rebeca. A nossa Lia.
Nasceram assim, minhas DUAS meninas, porém, em oito meses, malogrando o meu plano de canceriano, na madrugada do dia DOIS de maio de DOIS MIL, no quarto 222 da maternidade.
Onze anos depois, como quando naquele sonho, inda as estranho, principalmente no instante em que me reconheço nelas e as abraço como se fora possível tomar-me de volta uma vida inteira.


sexta-feira, 24 de junho de 2011


O AMIGO DOS ANJOS

(Pedro Salgueiro para o jornal O POVO)
"Apago o incêndio do olho
com um simples gesto da mão.

Ando com minha bengala:
a perna esquerda mecânica.

Sou o fantasma de minha rua.
O aleijado mais trágico do meu país.

Ninguém me ama
mas sou amigo do Anjo.

Não negocio a paz do morto
nem o silêncio do meio-dia.

Caminho à sombra de Deus.
O sol me ilumina.

Durmo todo o inverno, à beira dos rios.
Acordo no estio com o canto das cigarras.”

                                                          (J.A.P)

Ele, que nunca foi íntegro nem inviolável (a provar isso suas mil e duas contradições, seu corpo magro e vulnerável, que sofreu horrores até tombar triste e bestamente no asfalto ainda molhado das últimas chuvas de julho de 2008), nunca pensou em reconhecimento póstumo, dizia a qualquer um que a cota dele queria em vida.
Com sua costumeira lucidez sabia, mais que todos, que morrendo o corpo dificilmente sobreviveria por muito tempo a obra, mesmo a sua, que também sabia mais que outros de seu perene valor.
Mas desconfiava de nossa memória urgente, curta.
Dia três de julho próximo completaremos três anos sem seu corpo magro, sem seu riso simples, sincero, escandaloso e triste.
Mesmo sabendo que sua sombra incorpórea (e sem faltar um só de seus gestos físicos) continua transitando pelas ruas desertas do Benfica.
Continua todo domingo, impreterivelmente, indo à missa na igreja de São Benedito, acompanhado de seus queridos Antonin, Jamaica e Alessandra.
Ele continuará sendo o velho fantasma de preto escanchado no arame farpado dos quintais de nosso conformismo. Misteriosamente colhendo o silêncio com suas mãos invisíveis e tecendo uma mortalha com o nó dos dedos para vestir o próprio corpo magro.
Mesmo sendo hoje apenas um retrato destituído de cor e dependurado nas paredes da velha casinha amarela da Vila Cordeiro, o sabemos vivo, vestido e nu, louco e poeta. Acima de tudo um poeta, lúcido e louco, refletido nas mil luas, nos abismos bem fundos dos poços. Continuará como aqueles místicos intocáveis e impossíveis, que viveram sem jamais se conhecerem.
Por isso santos.
E que jamais conhecerão a morte.
* Singela homenagem aos três anos de ausência física de José Alcides Pinto, usando frases de seu poema “Eu”.

sábado, 18 de junho de 2011

   
                                   
                                     Patrimônio

As coisas que possuo são todas reais
e me falta espaço para abrigá-las
por vezes, até sufocam-me
gavetas e sonhos

O desejo, por exemplo, que me leva a caminhos estreitos
rasga-me a pele aos clarões e me desvia a atenção
(como pássaros e estrelas cadentes)

Minhas posses, de tantas, me obrigam a sonegá-las
no inventário da vida
poemas e canções
despertos da aniquilação
(ou sonâmbulos na máquina de fazer futuros)

Tenho coisas demais, que mal as conheço
uma delas é esta manhã
que tento eternizar
no vasto museu do meu coração



Frederico Régis
Poeta por necessidade
Engenheiro de formação
Bancário por sobrevivência

quarta-feira, 15 de junho de 2011

I. O CORAÇÃO NÃO SENTE

Abandono meus dias
na porta de um bairro distante
para que não voltem durante o sono

na distância erma
dos aterros de lixo
em algum lugar do monturo
ficarão

espasmos alegrias
cuspos da matina
e o urinol em nacos e limo

debaixo do tapete do mundo
e acima do teto da sensatez
ficarão
às cascas
enquanto com a barriga empurro
a mancha tóxica

coisa, como o corpo,
que alma sempre joga fora


      II. OS OLHOS NÃO VÊEM

Desperdiço minhas promessas
aos ouvidos de uma turba inumerável
para que não me cobrem a palavra dada

na saliência profunda
das grutas turísticas
nas entrelinhas das pichações
serão lidas (sentidas)



ladainhas inúteis
sandices em tinta
e a fétida lembrança em coliformes e
manchas

sobre o cinzeiro do suicida
e na frente da retina escura da ignorância
ficarão
às remelas
enquanto empurro o bonde
protegendo a fronte

algo, tal palavra dita,
que a boca tola... sempre recicla.


(Frederico Régis e Antônio Ximenes)

             Coisas Engraçadas de Não se Rir XI: Mas nem Assim?

Seguramente a insegurança tomou-nos de assalto em tema banal. Vivemos num Rio de Janeiro, entretanto, nosso Cristo Redentor não traz mais uma cruz, esta foi depredada, restando em seu lugar um “T”, provavelmente, de “Também eu fui roubado!”.
O povo pede polícia, mais polícia, mas polícia não resolve o problema — às vezes, até o cria —, nem construir prisões para custear a vida ociosa que proporcionamos aos bandidos, antes vítimas e depois vitimadores. O que precisamos é de professores, mais professores, mais qualificações e melhores salários, além de investimentos certeiros e acertados em Educação, e não estou me referindo a atropelamentos, lançamento de balas de borracha ou spray de pimenta — que nos olhos dos outros é refresco! Esse investimento, sim, é criminoso.
O Governo, por meio de grande campanha, conseguiu levar as crianças de volta à escola, parabéns, mas não garante que elas conseguirão ser alfabetizadas mesmo quando concluem o Ensino Fundamental. Isso assegura que os alunos das escolas particulares, “estudantes profissionais”, continuem, aparentemente de forma democrática — como fosse possível supor como democracia um regime de injustiças sociais tão nocivo e irresponsável —, tomando as vagas dos melhores cursos das universidades públicas, enquanto que o sofrido estudante das escolas, também públicas, mesmo os mais empenhados, passem pelo dissabor de colecionar o fracasso pré-determinado de uma vida escolar e voltar às filas desesperançadas de crescentes senzalas sociais distribuídas a olhos fechados pelo egoísmo de uma cultura de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, sabido que tal farinha, guardada a sete vezes sete chaves, é tomada e desperdiçada da forma mais vergonhosa, muitas vezes pelo próprio estudante privilegiado em noites em que sai para beber todas, estourar carros, roubar (por diversão), bater em prostitutas ou queimar os mendigos de rua.
Pergunto-me por que as universidades públicas não obrigam seus médicos, dentistas e advogados, assim como os demais profissionais formados em seus bancos com o dinheiro do povo — inclusive pela maioria que não os tem acesso —, a pagarem, obrigatoriamente e com justiça, após festejada e cara formatura, o investimento do Estado com o suor de seus serviços em equipamentos públicos.
Enquanto isso, os trabalhadores, oriundos das escolas desprivilegiadas, paradoxalmente, são obrigados — têm a esperança de melhoras de vida —, a fazer cursos noturnos em universidades particulares se endividando para pagá-las, porque, infelizmente, ainda têm que comer.
Certo mesmo é que as leis continuam sendo elaboradas e servindo apenas para o controle do pobre, em nome de uma igualdade desigual e de uma capa hipócrita e fantasiosa de respeito ao direito alheio que apenas ele, ou melhor, nós, devemos lembrar que existe.
Também os nossos representantes dos não-poderes, dentre eles juízes, vereadores, prefeitos, governadores, deputados, antes de ingressarem em suas funções públicas deveriam fazer um estágio probatório de um mês circulando em ônibus nessa cidade. Basta um mês. Ou eles desistiriam, ou humanizar-se-iam. O ônibus é a grande tribuna do cidadão. Vê-se e ouve-se de um tudo. Veja que é preciso ser um forte para encarar todos os dias tal monstrengo.
Meses-há, aconteceu algo inusitado na cidade. Havia um velório num bairro de periferia (hoje, em Fortaleza, tirante o shopping Iguatemi, o resto é periferia), quando dois homens invadiram a sala e foram logo tomando carteiras, celulares, terços (deviam ser católicos) dos velantes e, pasmem: os sapatos do morto! Ora, vejam que nem morrendo o coitado escapou da rotina do assalto. Mas, por outro lado, no resta o consolo: não mataram o defunto, pois que ele já se encontrava mortinho da silva e, por isso mesmo, como bem recomenda a preventiva inteligência policial, não reagiu! Cabe-nos saber, agora que o infeliz já tem cadastro no Céu, a quem compete o caso: à providência policial ou à Divina...

Raymundo Netto especial para O POVO


terça-feira, 14 de junho de 2011


                                             A decisão

Tem que pisar estrada, do contrário não tem vida. A ordem foi executada. Eles nunca mais retornaram o caminho da visita.
No casarão de corredores ocos de alegrias, a noite invernosa acrescenta-lhe desesperos.
Na parede idosa, o passado o observa: ele, a esposa recém falecida e os quatro filhos.
Diante do retrato, ele não confirma nenhuma dúvida.  
Sob fortes ventos farpados, a velha cidade ouviu o único estampido.

Silas Falcão

segunda-feira, 13 de junho de 2011


                                     Safari

Brennand de Sousa

Em boa parte dos sertões brasileiros conhecia-se por atiradeira, estilingue, bodoque... Aqui no Ceará chamávamos baladeira! Uma palavra contundente como a pedra em trajetória reta.

Andávamos em bando pelas cercanias dos quintais... Infantes da vida e do mundo, farejávamos caça feito nosso primo neandertal... Com a vantagem de já encontrarmos o almoço pronto na volta para casa.

“Espia o sanhaço dando sopa naquele pau de cerca!”, alguém avistou. A ave, estática, encarava o sol como geralmente só elas conseguem: altaneiras. O peito estufado e a penugem cinza-azulada cintilavam ao estranho brilho de nossos olhos.

“Quem quer ver pena voar!?” Tuca buscou a bola de barro seco no fundo de seu bornal surrado. Esgueirou-se feito gato maracajá por cerca de vinte passos. Sua baladeira era diferenciada; em vez de câmara de ar, velhas ligas de soro... daquelas que hoje só se usa pra catar pulso fugidio. Esticou o látex a esbranquiçar e disparou... O torpedo explodiu na estaca de sabiá! Quase! Demos boa gargalhada do arranque do bicho!

“É... tava longe...” Mais uns cinco dedos pra cima (dedos de homem) e o balaço pegava de cheio! Tuca possuía boa pontaria. O sanhaço é passarinho grande, mas concordamos com ele... Tava longe... Qualquer um erraria... Qualquer um, menos Lino... Pensei comigo! Se ele estivesse lá com sua famosa besta... Tadinho do sanhaço... O elástico de sua arma era de um filamento grosso. “Aqui é pneu de avião!”, gabava-se ao estirá-lo com força.

Nossa pequena confraria não tinha paciência de armar a “saplam”, de esperar penosamente que o bichinho viesse comer o alpiste na bandeja. Queríamos ação!  Além do mais, por as mãos num galo-campina, num canário-da-terra, num pintassilgo!... Isso era coisa pra gente do ramo. Nas proximidades da cidade o máximo que podíamos capturar era um golinha, um sibite ou com muita sorte um bem-te-vi! Vibrávamos mesmo era com a chicote da bolota naquilo que alçasse voo! Quanto mais belo e inacessível o passarinho, maior o mérito! Quem primeiro enxergasse o animal tinha a prevalência sobre o disparo. Era lei... Inviolável.

Infelizmente foi Leco, neófito da turma, que deu conta do inacreditável. Escondido entre a ramagem do juá, um casal de legítimos canários-da-terra! O troféu máximo! Estavam tão próximos um do outro que não havia como perder a linha do tiro. Suspendemos o ar. Pensei em Lino... Com certeza derrubaria os dois de uma lapada só! Mas Leco... Olhávamos desolados uns pros outros. Apesar de saber que tão cedo teríamos outra chance daquelas, o código não podia ser quebrado.

Não entendia ainda a cega necessidade da beleza sempre vir acompanhada da raridade, mas assim é a Natureza! Além do mais, diante de tão magnífico espécime haja nervo!

 No encanto do namoro, o casalzinho não parava no galho. Seria preciso uma calma que ele, Leco, não possuía. “Vão voar! Vão voar!”, gemia baixinho enquanto o braço tencionado pela baladeira aguardava a melhor visada. Ffvvruuuu!!! O projétil varou a leve brisa de junho para perder-se na copa do juá!
Enfim, constatamos boquiabertos que pelo menos um fora atingido! Vimos que a bolota espatifara a asa esquerda do bichinho que piava dolorosamente entre as raízes da árvore. “Esse é meu!” Segurou o prêmio entre os dedos curtos e possantes. Num ato de caridade, arrancou-lhe a cabeça dum estalo só.

Depois, contritos, acompanharíamos o ritual que Lino recomendara para que aguçássemos a mira.

Com pequeno canivete apartou a minúscula titela e achou!... Um grão de feijão-de-corda inda seria maior!

“Tem que engolir o coração”, ensinava-nos o nosso preceptor. “É o coração que aumenta a pontaria”

O sangue marcando o lábio inferior e um resquício de pluma dourada no sorriso do menino Leco fazia dele o nosso herói do dia.

Só o devir nos revelaria o quão indigestos são os corações!
          


sábado, 11 de junho de 2011

                             
                                                                                                               
                                               A casa


O sol golpeia sua face encolhida de solidão.

Expulsando o sono faminto, ela se levanta recolhendo o lençol sobre o colchão.

Copiando os ontens, vagueia pelas ruas observando lobos metropolitanos e metragens das angústias urbanas.

De repente para, apreciando obras de artes na vitrine. Num canto da harmonia, uma tela traga sua atenção: rio, montanhas, primavera e uma casa de porta e janela.

Ela recua passos e passos e passos que o mundo maltratou e avança, mergulhando na casa.

Silas Falcão

POEMA ESTRANHO
Carlos Nóbrega                                 

Uma casa, um casarão de outra era
rodeado de tempo e abandono
pintado com a descasca do tempo...
O terreiro de pó e sertão
torra de sol e de sono
e é só p’ra torrá-lo que  há vento.
Izabel de barro e espera
com sua cara de luto e fundura
me chama com sua voz dura
e me dá água impura e um pão.

No alpendre o vento de agosto
não sopra nem sopra: ele traga
Mas vem nesse vento a contragosto
rangendo de angústia uma rês magra.
Não imagino esta casa morta:
eu a sinto e a toco - a distante
e conto-lhe as ripas da porta
de sete madeira’ em cada banda
oito armadores na varanda
quatro batentes ao léu
expondo os tijolos de antes.
A casa não há, nem Izabel
mas com ela estou lá nesse instante.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

                      "Cabeça de Orfeu" (1905), de Odilon Redon (1840-1916)


                            O A E O Z
O mais que nos dizemos são veredas,
quasefala que exulta e silencia.
O gemido de espasmo em que segredas
o sulco, o sumo oculto da lalia.

Com a força milenar de um Rigveda
nossa semipalavra se irradia.
O grunhido a mudar-se em labaredas
e a fervilhar em Verbo, em Parusia.

O amor que te sussurro em afonia
e que decodificas e desvelas
será cedido a outrens algum dia.

Desaparecerá a maladia
que ora devasta o mundo e o desmantela:
seremos todos Um, na Poesia.


(Poema publicado na Revista MAMBEMBE - Ano 1, N. 3, 2010, e extraído originalmente do "CONCERTO Nº 1NICO EM MIM MAIOR PARA PALAVRA E ORQUESTRA", 4º Movimento, Livro 1, Seção 1)

Poeta de Meia Tigela



                                            Engenheiro

Pedro Salgueiro para O povo

                                                   O engenheiro sonha coisas claras
                                                       João Cabral de Melo Neto

Construiu em três dias o dormitório em que Agripino, pai de Amadeus, passaria os últimos seis meses de sua vida — ventilação perfeita, claridade regular, paredes finas apoiadas em chão áspero.
Gastou um ano levantando a torre da camarinha de Vicença, viúva de primeira mão, em nova viagem de núpcias — vista para os três lados, telhado caindo para o poente, amortecendo o sol forte daquelas paragens, canto escuro para a cama (sábia penumbra a esconder desencantos); vento noroeste que traz boa sorte; escada em círculos; chão lisinho; teto alto.
Porém faz sete anos que constrói a cadeia, procurando o ângulo correto para a fresta do calabouço — barulho algum deve chegar às celas; janelas altas com parapeito largo onde os presos devem se postar pensativos, observando o horizonte infinito em que nada, a não ser a cordilheira distante, deve servir de barreira: um horizonte vasto para um cubículo e a noção exata e infinita fora, a diminuir mais e mais o já minúsculo quarto; vasto abismo circulando o prédio, a noção do precário e eterno a mexer com os nervos — estuda cada detalhe como se levantasse o teto que lhe serviria de abrigo pelo resto da vida.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

                                                 
(Toulouse Lautrec, Crouching Woman Red Hair, 1897)

                                       
                                             Não te preocupes
                                         
                                             ao ficares nua
                                             o meu olhar te veste
                                             com a veste mais linda
                                             que já tiveste.




Carlos Nóbrega

sexta-feira, 3 de junho de 2011

                                         José Alcides Pinto

 “Eu sou eu, íntegro e inviolável dentro de mim mesmo. (…) O que está no limiar e afogado no abismo.” (José Alcides Pinto)

                                 Quando morre um poeta

Pedro Salgueiro

 “Eu sou eu, íntegro e inviolável dentro de mim mesmo. (…) O que está no limiar e afogado no abismo.” (José Alcides Pinto, 10/09/1923 — 03/06/08)
 
Quando morre um poeta o mundo fica lastimavelmente mais pobre. Terrivelmente mais triste. Inevitavelmente mais feio. Às 11h15min de um sábado, dia 31 de maio de 2008, um imenso dragão, disfarçado de motocicleta, atacou impiedosamente o velho poeta, de 85 anos, José Alcides Pinto, em plena Rua General Sampaio, bem em frente ao palacete conhecido como Vila do Barão, de ladinho da Praça da Bandeira, nos arredores da Faculdade de Direito do Ceará.

O rapaz da banca de revista próxima disse que ele havia passado cedo com alguns envelopes na mão, “dessa vez não vinha com a moça loura”, completou; no envelope iam os dois livros recém publicados, mas ainda não lançados, que despacharia para alguns amigos do Rio e São Paulo. Voltava devagarinho (talvez ainda não recuperado do cobreiro que o maltratara meses atrás), esperou debaixo de uma árvore o trânsito acalmar, apressou o passo e… Parou no meio da pista ainda molhada pela garoa de fins de maio, quando finalmente avistou o pássaro enorme em vôo rasante, ainda deu pra notar o vermelho dos olhos da fera, as teias de aranhas das asas e o barro seco das garras, que era com certeza lá das coroas do rio Acaraú.

O poeta saiu quebrado numa ambulância, o motoqueiro foi manquitolando atrás; a moto esquecida na sarjeta. 40 minutos depois sua filha passa tranqüilamente na mesma calçada; o rapaz da banca grita para avisar do acidente, ela apressa o passo fugindo do enxerimento. Quem deve ter lhe contado a triste notícia?

No dia 02 de junho a alma, também magérrima, do nosso saudoso poeta maldito foi, na frente, esperar pelo corpo que já ia em cortejo rumo a São Francisco do Estreito, Santana do Acaraú, Fazenda “Terras do Dragão”, comboiado por Sérgio Braga, Lustosa da Costa, Audifax, José Teles, Carlos Augusto Viana e outros amigos do peito. Deu tempo ainda de pôr os últimos números em sua lápide, que havia sido meticulosamente preparada por ele anos antes. Não havia tido coragem de adivinhar o último algarismo. Reencontrava enfim seu pai, sua terra, sua paz…

Sob o signo da polêmica

Na juventude frequentava a casa de Otacílio de Azevedo, convivendo com os filhos do pintor e poeta, Rubens, Miguel Ângelo (Nirez) e Rafael Sânzio; já tinha um jeito despojado e falaz. Sua alcunha entre os estudantes era “Alma de Gato”, talvez pela magreza exagerada. Sua ida para o Rio, sua volta à terrinha, sua saída do emprego na Universidade Federal do Ceará, seu uso de um traje franciscano, sua adesão ao nascente concretismo, seus amores e desamores, enfim, seu comportamento de uma vida inteira foi marcado pela polêmica.

Enquanto os outros grandes poetas de sua geração vestiram o paletó e(ou) a camisa da oficialidade e(ou) o da reclusão, ele arriscou a jaqueta surrada da marginalidade e da maldição; enquanto uns cavavam prêmios e condecorações e outros se fechavam mais e mais em seus casulos, ele corria calçadas, mexendo com as moças, instigando jovens poetas sujos e cabeludos, espalhando boatos difamatórios sobre si mesmo. Criou uma imagem tão forte e polêmica sobre ele próprio, que às vezes ele mesmo esquecia quem realmente era: um sujeito frágil e religioso, bom pai, que ia à missa toda semana e rezava antes de dormir. E tinha uma das gargalhadas mais sinceras que conheci.

Sempre estava cercado (e ajudado) por uma leva de boas almas, mas também por uma corja de parasitas, cujas benesses (e elogios) ele sabia manipular com maestria; todos admiradores de seus poemas e de seu comportamento arrojado. Sobre os de boa-fé quase sempre despejava injúrias, não raro alguns de seus melhores amigos e colaboradores saíram magoados de seu convívio; em cima dos oportunistas jogava iscas, elogios falsos e prefácios não escritos. Sempre esteve acima do bem e, principalmente, do mal; todos debitavam suas ações polêmicas ao seu gênio literário. Os ofendidos perdoavam sempre; os canalhas engordavam à sombra de suas asas negras.

Estava acima do bem e do mal: tanto fazia engendrar um poema genial (e pendurá-lo no arame do varal) como caluniar um amigo que tanto o ajudara. Todos o perdoavam com um rizinho de escárnio. Estava acima do bem e do mal.

Uns altos muito altos, uns baixos…

Ao amigo que me dizia que ele tinha altos e baixos, eu retrucava: “— E qual o poeta que não os têm!?”. Depois lembrava que para cada poema fraco dedicado a Lady Diana ou Chico Mendes (ou algumas rimas escatológicas) ele tinha no mínimo uma dúzia de versos endiabrados.

Precisaríamos de alguém com muito talento, coragem e ética para fazer um inventário de sua vida e obra; alguém com isenção estética e moral para mapear suas forças e fraquezas. Talvez com a devida distância do corpo físico.
 
A caverna do dragão

Na “Crônica da Gentilândia”, do livro Fortaleza Voadora, digo: “…e o velho dragão Alcides Pinto sobrevoando as copas das árvores, com suas asas negras — quando ele se cansa de resmungar sozinho em sua caverna e sai para assustar os últimos bêbados da Gentilândia”.

À sua casa corriam as mais diversas faunas literárias; escritores de várias idades, ideologias e estéticas, principalmente os mais jovens, que ficavam embevecidos com as atitudes despojadas, estridentes e loquazes do velho poeta.

Sua residência mais famosa foi a da Rua Rodrigues Junior, casa grande, sempre muito frequentada; ainda hoje muitos contas histórias e causos nem sempre verídicos, muitas fantasias e traquinagens ficaram no anedotário boêmio-intelectual dessa nossa loirinha desmiolada pelo sol, tão pródiga em tipos populares e bodes YoYôs, literários ou não.

Já o conheci na Vila Cordeiro, na Av. Tristão Gonçalves, bem próximo à vilinha em que ainda hoje mora minha mãe. Habitava uma casa conjugada, numa pobreza franciscana mas digna, com sua querida filha Jamaica. Também conheci seu filho Antonin Artaud, um rapaz magro como o pai, porém de temperamento calmo, com uma timidez oposta à tagarelice do seu progenitor.

Convivi por um bom tempo com o poeta (era meados dos anos 1990), através dele e de suas muitas visitas fiquei sabendo dos subterrâneos de nossa literatura, tão pródiga em fofocas e vaidades. Ali tive um curso intensivo de como transitar, e sair sem arranhões (embora eu não tenha tirado boas notas em algumas matérias) da famigerada guerrilha literárias e suas disputas por farelos e migalhas.

Um dia me pediu para que organizasse seus contos, que estavam dispersos em um livro, Editor de Insônias (1965), e uma miscelânea, Reflexões, terror, sobrenatural (1984), além de alguns inéditos datilografados em folhar amarelecidas. Em 1997, o Dr. Martins Filho publica essa edição de seus contos completos, Editor de Insônias e outros contos, pela Coleção Alagadiço Novo.

Depois soube que ele andou criticando umas palavras que inseri como “Nota do Organizador”, ou sugerindo que eu estava querendo aparecer às suas custas. Nunca passei recibo nem tomei satisfação, apenas me afastei um pouco de seu convívio. Depois disso ele sempre repetia para mim ou para alguns amigos: “Se não fosse você, o livro não teria saído”, no que eu sempre respondia: “Pois não é, poeta. Quem sabe se um dia a gente não tira uma 2ª edição, não é!?”. No seu último livro tem um poema dedicado a mim (quem sabe ainda resquício de uma consciência pesada) e a Nilto Maciel, a quem levei, depois da volta definitiva deste ao Ceará, à sua casa e anunciei alto da porta:

“— Poeta, tô aqui com o maior contista do Ceará!”, no que ele perguntou lá de dentro: “— Quem, poeta, o Airton Monte?”, acabando de vestir as calças; caímos na gargalhada.

A última vez que o vi ele estava saindo da sua vilinha com a Jamaica, cumprimentei-o e ele me perguntou onde era o “Buraco da Gia”, pois estava querendo arranjar uma empregada e lhe deram um endereço, falei que era na Princesa Isabel, vizinho à minha casa, e fomos caminhando devagar. Quando chegou perto do beco ele parou, receoso, e disse que só entraria lá se eu fosse com eles, depois puxou uma pequena faca de mesa, dessas de cortar bife, e disse que estava preparado (mas que era bom eu entrar com ele, disse assombrado). Olhei para Jamaica, que também estava rindo, e disse que não tivesse receio que ali só morava gente de bem, e me despedi alegando ainda ir pegar minha filhinha no colégio.

Não tive coragem de ir vê-lo em seu velório na Academia Cearense de Letras. Queria ficar com a lembrança dele vivo, alegre e brincalhão. E parece que estou vendo aquele sujeito magro (“tão magro que parecia estar sempre de perfil”, como bem disse, em seu A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa), com sua gargalhada sempre sincera, dizendo — e apontando pra si mesmo — para os muitos anjinhos (ou demoninhos, tanto faz) que lhe cercam em algazarra:
“— Agora quem manda aqui é esse poeta ‘Viadão Pós-Moderno’!”
“Eu sou aquele que come as flores do aniversário.”

(José Alcides Pinto, 10/09/1923 — 03/06/2008)