segunda-feira, 13 de junho de 2011


                                     Safari

Brennand de Sousa

Em boa parte dos sertões brasileiros conhecia-se por atiradeira, estilingue, bodoque... Aqui no Ceará chamávamos baladeira! Uma palavra contundente como a pedra em trajetória reta.

Andávamos em bando pelas cercanias dos quintais... Infantes da vida e do mundo, farejávamos caça feito nosso primo neandertal... Com a vantagem de já encontrarmos o almoço pronto na volta para casa.

“Espia o sanhaço dando sopa naquele pau de cerca!”, alguém avistou. A ave, estática, encarava o sol como geralmente só elas conseguem: altaneiras. O peito estufado e a penugem cinza-azulada cintilavam ao estranho brilho de nossos olhos.

“Quem quer ver pena voar!?” Tuca buscou a bola de barro seco no fundo de seu bornal surrado. Esgueirou-se feito gato maracajá por cerca de vinte passos. Sua baladeira era diferenciada; em vez de câmara de ar, velhas ligas de soro... daquelas que hoje só se usa pra catar pulso fugidio. Esticou o látex a esbranquiçar e disparou... O torpedo explodiu na estaca de sabiá! Quase! Demos boa gargalhada do arranque do bicho!

“É... tava longe...” Mais uns cinco dedos pra cima (dedos de homem) e o balaço pegava de cheio! Tuca possuía boa pontaria. O sanhaço é passarinho grande, mas concordamos com ele... Tava longe... Qualquer um erraria... Qualquer um, menos Lino... Pensei comigo! Se ele estivesse lá com sua famosa besta... Tadinho do sanhaço... O elástico de sua arma era de um filamento grosso. “Aqui é pneu de avião!”, gabava-se ao estirá-lo com força.

Nossa pequena confraria não tinha paciência de armar a “saplam”, de esperar penosamente que o bichinho viesse comer o alpiste na bandeja. Queríamos ação!  Além do mais, por as mãos num galo-campina, num canário-da-terra, num pintassilgo!... Isso era coisa pra gente do ramo. Nas proximidades da cidade o máximo que podíamos capturar era um golinha, um sibite ou com muita sorte um bem-te-vi! Vibrávamos mesmo era com a chicote da bolota naquilo que alçasse voo! Quanto mais belo e inacessível o passarinho, maior o mérito! Quem primeiro enxergasse o animal tinha a prevalência sobre o disparo. Era lei... Inviolável.

Infelizmente foi Leco, neófito da turma, que deu conta do inacreditável. Escondido entre a ramagem do juá, um casal de legítimos canários-da-terra! O troféu máximo! Estavam tão próximos um do outro que não havia como perder a linha do tiro. Suspendemos o ar. Pensei em Lino... Com certeza derrubaria os dois de uma lapada só! Mas Leco... Olhávamos desolados uns pros outros. Apesar de saber que tão cedo teríamos outra chance daquelas, o código não podia ser quebrado.

Não entendia ainda a cega necessidade da beleza sempre vir acompanhada da raridade, mas assim é a Natureza! Além do mais, diante de tão magnífico espécime haja nervo!

 No encanto do namoro, o casalzinho não parava no galho. Seria preciso uma calma que ele, Leco, não possuía. “Vão voar! Vão voar!”, gemia baixinho enquanto o braço tencionado pela baladeira aguardava a melhor visada. Ffvvruuuu!!! O projétil varou a leve brisa de junho para perder-se na copa do juá!
Enfim, constatamos boquiabertos que pelo menos um fora atingido! Vimos que a bolota espatifara a asa esquerda do bichinho que piava dolorosamente entre as raízes da árvore. “Esse é meu!” Segurou o prêmio entre os dedos curtos e possantes. Num ato de caridade, arrancou-lhe a cabeça dum estalo só.

Depois, contritos, acompanharíamos o ritual que Lino recomendara para que aguçássemos a mira.

Com pequeno canivete apartou a minúscula titela e achou!... Um grão de feijão-de-corda inda seria maior!

“Tem que engolir o coração”, ensinava-nos o nosso preceptor. “É o coração que aumenta a pontaria”

O sangue marcando o lábio inferior e um resquício de pluma dourada no sorriso do menino Leco fazia dele o nosso herói do dia.

Só o devir nos revelaria o quão indigestos são os corações!
          


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