sábado, 28 de abril de 2012


                      Café


Carlos Nóbrega


Ajeitei a minha alma dentro da blusa, e fui.
A rua era comprida como a chuva fininha que caía
e que cai na eternidade.
Na birosca pedi um café
e me engasguei elaborando uma frase.
Quem, daqui a cem anos,
viverá
como eu
esta tarde?



quarta-feira, 25 de abril de 2012

                                                             
                        Quando o Amor é de Graça XIV: Brás Ilha

Raymundo Netto para O POVO

Horas após assistir à coreografia do fim, tomei porto em Vera Cruz num feriado de data célebre, com direito a professores em greve, manifestações contra corrupção, quarentões enrolados em bandeiras entre mulheres deslizando em isqueites. Festa estranha com gente esquisita e eu, sim, um atávico “candango”, com aquela impressão lunar de que “estava desembarcando num planeta diferente, não na Terra”.
Quando viajo, seja onde for, sou de costume quedar-me um pouco no aeroporto, tomar um café com o tempo de me habituar aos novos ares, afinal, aeroportos são tão iguais, mesmo quando diferentes, como shoppings, que dão a ideia de que estamos sempre por perto de casa.
Acho maçante é esperar bagagem. Coisa chata e sem fim este balé de malas. Pior ainda – nunca passei por isso – quando se extraviam, aproveitando o nosso descuido para fugir de nós, uns “malas”, de fato, “sem alças”. Pois sim, à espera, eis que surge a minha mala. Bem mais viajada do que eu, coitadinha, vinha tão feia e cabisbaixa que nem acreditei fosse justo ela a minha. Flagrei uma moça bonita apontar-lhe o sorriso nas feridas de guerra, ou quem sabe na fita amarela peguenta a enrolar a sua alça. Não sei, de repente fui tomado por um orgulho besta e despropositado e, assim, a acolhi em meus braços como se recebe a um fabuloso filho coruja, mas logo na curva de um primeiro pensamento sabia já que, ao seu lado, nunca mais.
“Dia de festa”, foi o que me falou o Severino, um pernambucano aposentado da Embaixada Americana que reside na cidade há 40 anos, dedicando-se hoje ao taxismo autoviário.
O hotel era bom e “frio”, como reza São Cristovão, padroeiro dos viajantes e taxistas. Ali, duas camas: coisa que me dá a impressão de que estou mais sozinho do que deveria estar. Mala, roupas, livros, papéis de bombons, cupons fiscais... a cubro inteira de trecarias a ponto de esquecê-la.
Dias quentes, sol tinindo na pele — esqueço de novo o protetor solar. Eu arrodeado de livros, boa parte dos quais nunca leria, observando os histerismos das moçoilas por diários de princesas, livros de meninas, de vampiros, piratas, feiticeiros. Rostos desconhecidos andando para cima e para baixo se entupindo de açaí e comprando quase nada. Um casal, ao lado, sorri e comenta ser ali um lugar de gente inteligente... e chata!
Os poetas locais reunidos em palestra se perguntavam — com a pouca audiência presente era quase “se” mesmo — por que não conseguiam se projetar nacionalmente. Questionavam existir uma literatura paulista, uma carioca, uma brasiliense ou uma cearense (em dois momentos citaram Francisco Carvalho). Como sempre, não se chegou à conclusão nenhuma.
Lá fora, ao som de forró, a “bagaceira”. Gente de todo lugar vendendo, num extenso calçadão, sanduíche barato, cerveja, refris ou o que se quisesse comprar.
Numa tarde quente, fui embora, não num submarino do lago Paranoá, mas em avião, como cheguei. Adoro voltar, gosto de ir, mas voltar é a melhor parte de tudo, mesmo quando não se sabe exatamente para onde se está voltando.
De lá de cima, é sempre assim, embaixo de uma montanha leve de suspiros, a nossa cidade madruga linda, calma, regular, iluminada como uma criança a brincar de “chuveirinho”, inodora, a gabar-se de amores na mais tranquila solidão nacional.
Toca-me uma tristeza, de fazer o peito quase rebentar, de quem ao voar descobre que no mundo não há nada maior do que a asa de um avião.

raymundo.netto@uol.com.br

sábado, 21 de abril de 2012

                           
                                               
                                           SAIDINHA BANCÁRIA

Um bando de certezas assegurou a Stuart, após semanas observando, que a mulher que saia do banco foi o seu grande amor na adolescência.

Silas Falcão

sexta-feira, 20 de abril de 2012

                                        O AMOR E SEU INFERNO
Conto de Manuel Soares Bulcão Neto

E agora, José?
Carlos Drummond de Andrade


Do seu apartamento no oitavo andar, em meio aos eflúvios do café, Adonis contemplava as ruas desertas. No vazio da alvorada, em vez do vácuo no peito que tanto o supliciara, o que então projetava era a paz de um coração pleno. Seu pensamento, fluido à mercê de novas emoções, centrou-se, como tragado por um redemunho, numa reflexão sobre as semelhanças entre o ocaso e a aurora: a mesma penumbra, o mesmo horizonte rubro — e de como o claro-escuro triste dos fins de tarde, que há muito em si trazia, agora fulgurava feito lusco-fusco matutino.
“Tão diferentes e tão parecidos o anoitecer e o amanhecer, lá fora e dentro de mim…”.
Dizia a quem lhe desse ouvidos que, até a gravidez da esposa, levara a existência num ritmo sincopado, melancolicamente, à maneira de um blues.
Desde então – jactava-se com sorriso largo –, vivia enlevado por uma serenata diurna. E se punha a cantar: “Soy feliz / Soy un hombre feliz…
Degustou a espera com bonacheirice quase histriônica, tão destoante do que antes fora a ponto de amigos galhofarem da sua “possessão espírita”. Nesse tempo, também perdeu peso, a dermatite nervosa deixou de afligi-lo e passou a beber sem compulsão.
Tanta era sua vitalidade que, numa conversa entre familiares e amigos em uma das salas do hospital-maternidade, seu irmão Demétrio comentou:
“Acho que Miriam está dando à luz Emmanuel e um novo Adonis.”

* * *

Adonis, o redivivo, sorvia o suco de tomate quando ouviu o choro do bebê. Saltou da cadeira, correu até o quarto e desvencilhou o filho dos braços da mãe, que dormia. — Os olhos e a boca semiabertos, a tez sem viço, as pernas e o ventre intumescidos… Se não fossem o ressonar e o movimento cadenciado do busto, o corpo de Miriam seria o de um cadáver.
  Embalou a criança, falando-lhe pequenininho, observando, encantado, a gengiva, a língua trêmula, as mãozinhas cerradas, as bochechas sanguíneas, quando dona Iracilda surgiu. Açodada, tirou Emmanuel do seu colo.
“Desculpe-me, professor, estava no banheiro. Não ando bem.
“Será que ele está com o mesmo problema?” Perguntou, temendo ser o pranto indício de afecção grave.
“Este choro é devido aos gases. Nossa! Veja a barriga dilatada! De tão glutão engole mais ar do que leite. Liguei para a pediatra à noite. Disse-lhe que massagens e tapinhas agora só deixam a criança roxa. Ela receitou remédio de verdade, com efeitos colaterais.”
O diagnóstico da prática de enfermaria o acalmou. Iracilda, entretanto, estava intranquila. Não com a saúde do neném, que nasceu robusto, o olhar prematuramente perscrutador, qualidades que o fizeram mascote do berçário. Sua apreensão era com Miriam. Enquanto preparava a solução de antigases com colostro, observava a jovem mãe, prostrada na cama, sem alegria com a maternidade, sem lastimar seu sofrimento.
Sofrimento sem causas aparentes. Normal, pouco dorido graças às largas ancas, “fácil como parto de índia”, disse o obstetra. Dia seguinte, andava pelos corredores. Tão logo, porém, retornou ao lar… a modorra. “Diz ser dores nas mamas”, matutou Iracilda, “mas isso não explica tanto abatimento.”
“O que ela precisa é de ducha fria”. Para acordá-la, desligou o ar-condicionado, apagou a luz mortiça do abajur, descortinou o blecaute. Com a lufada lençóis revolutearam. O Sol iluminou seu rosto, atravessando-lhe as pálpebras. Agitou-se, abriu os olhos. Sonolenta, perguntou pelo bebê.
“Está comigo”, respondeu Iracilda. “Vou banhá-lo.” E recomendou, em tom imperativo, como se estivesse a cuidar de outra criança: “Levante-se, tome também um banho. Isso lhe fará bem.”
Miriam revolveu-se, pôs-se de bruços.
“Chame o Adonis.”
“Estou aqui!”, gritou o marido do banheiro, de onde surgiu num salto, caricaturando Gene Kelly — chistoso apenas pelo ridículo.
A mulher fez careta. Iracilda, por dó, esboçou um ricto. Sem se dar por rogado, espalmou as mãos e pulou na cama salivando em beijos — o que tornou o esgar de Miriam ainda mais agônico.
A criança, assustada, renovou o choro. Adonis se recompôs. Sentou-se na beira do leito, acariciou a mulher, sussurrou-lhe palavras meigas, suplicou:
“Amor, fale comigo!”
Para se livrar dos apertos e da enjoativa loção pós-barba, Miriam atendeu ao pedido:
“Por que está arrumado?”
“Vou registrar nosso filho.”
“Não é cedo? O cartório só abre às oito.”
“Você sabe que sou ansioso. Lembra-se de quando nos conhecemos, na minha festa de formatura? Fui o primeiro a chegar.”
“Sim, claro”, recordou-se, “e entrou em coma alcoólica antes de começar o baile.”
Riram. Adonis animou-se com o lampejo de bom humor em Miriam.
E percebendo que também ria de si mesmo, riu do próprio riso. Como quem invoca pessoa próxima em viagem, pensou no seu demônio íntimo, em sua voz, audível nas frestas do silêncio, sempre a lhe narrar lembranças mortificantes, o que o deixava em permanente estado de remorso e vergonha. Por onde andaria tal superego sádico? Provavelmente, sufocou até a morte no júbilo dos novos dias. Agora, recordar seu passado era uma experiência estética, o mesmo que abrir um livro — drama, tragédia ou comédia — e se deleitar com os ridículos, infortúnios, fraquezas e vilanias do protagonista.

* * *
Às nove horas, no cartório, depois de entregar os documentos, foi informado de que a certidão ficaria pronta em trinta minutos.
 “Aguarde naquela cadeira.” Disse-lhe a atendente. “Ao lado tem café e bolachas.”
“Vou esperar naquele quiosque.”
Lá chegando pediu jornal e refrigerante. Folheava o caderno de notícias internacionais quando, pela visão periférica, percebeu alguém o observando. Desconcentrado, encarou o sujeito, que sorriu e lhe acenou com uma das mãos – a outra segurava uma bengala –. Retribuiu o sorriso, mas demorou alguns segundos para reconhecer Anacleto, amigo que não via há anos.
Em outra ocasião, teria se limitado a cumprimentá-lo, sorveria rapidamente a tubaína, prometeria ligá-lo em breve para marcar encontro e se despediria alegando qualquer desculpa. Isso porque Anacleto era neurótico crônico, do tipo hipocondríaco e falante — um chato. Conversar com ele era um exercício de paciência: ter que escutar suas lamúrias e queixas, seu discurso monocórdio de autocompaixão. A um protocolar “como vai?”, invariavelmente respondia: “péssimo!” e a arrastada catarse começava.
Naquele dia, porém, a abertura de Adonis para o mundo era tanta que, caso estivesse sozinho num quarto com um aquário, puxaria assunto com os peixes. Sentou-se à mesa do amigo.
“Anacleto, sua aparência está muito boa! Forte, corado…”
“Por forte você quer dizer gordo? Na verdade é retenção de líquidos, efeito colateral do corticoide. Quanto ao ‘corado’, à vermelhidão do rosto, trata-se de reação alérgica a um xarope.”
“Não me diga que está doente de verdade…”
“Sim. Há quatro anos contraí espondilite anquilosante. Agravou-se e me aposentei por invalidez. Parei aqui para tomar meus comprimidos. Estou vindo da hidroginástica.”
“Meus parabéns!”, disse Adonis, escancarando uma gargalhada, “Tanto procurou que terminou encontrando o que queria. Sente-se melhor agora?”
Anacleto riu – riso que era sinal velado de assentimento. (É fato que muitos depressivos desejam, de maneira inconsciente, adoecer fisicamente. Para dar sentido ao sofrimento, esforçam-se em permutar a depressão — tristeza e angústia sem razões aparentes — por uma afecção visível, localizada. Há também, nos anais da psiquiatria, muitos registros de portadores de doenças fatais que, tão logo chegam ao estádio terminal, não manifestam terror, mas alívio e mesmo euforia. Talvez porque, quando a vida decai a ponto de consistir em dor sem esperança, a pulsão de morte sobressai crua e voluptuosamente.)
“E você, passeando em plena quinta-feira, está de férias?”
“Licença-paternidade.”
“Oh, não me diga! A mãe é…”
“Miriam.”
“Menino ou menina?”
“Um garotão! Cinquenta e três centímetros, três quilos e duzentos gramas. Chama-se Emmanuel.”
Anacleto contraiu o rosto e, cabisbaixo, começou a tecer seu rosário de lamentações. Adonis o escutava, divertindo-se mais do que se enfastiando.
“Infelizmente, não posso ter filhos. Sou estéril. Azoospermia não obstrutiva.”
“Fez espermograma?”
“Não foi preciso, pois o problema é visível a olho nu. Observei que meu sêmen não é opalino como o esperma normal, mas transparente como clara de ovo.”
Aproveitando uma pausa no choramingo, Adonis lhe sugeriu fazer análise. Anacleto, surpreso com o conselho, disse:
“Hum… Concordo com algumas ideias de Freud, mas não creio na eficácia da psicanálise como terapia, até porque são muitas as escolas com postulados diferentes e opostos… Dizem até que a psicanálise é a religião e, portanto, a neurose coletiva dos literatos e artistas ateus. Além do mais, não vejo sentido em ficar tagarelando de costas para um sujeito que escuta, rabisca e, como se fosse uma divindade não interventora, nada fala.”
“Ao menos não estaria alugando ombros de amigos, mas os de um profissional, e pagando pelo aluguel”, foi o que Adonis desejou dizer-lhe.
“Sinceramente, não vejo futuro em ficar tateando na escuridão do passado.”
Adonis, sorrindo ironicamente, perguntou-lhe:
“Você tem mais de quarenta anos, continua solteiro, não é arrimo de família, vive com sua mãe que, amparada por um séquito de empregados, não necessita da sua presença contínua, não é mesmo?”
“… S-sim”, respondeu gaguejando.
“Ainda mora naquele velho casarão que foi dos seus avós, com retratos de mortos em quase todos os aposentos?”
“Ainda.”
“Sei que desde criança você coleciona moedas antigas. Como vai o seu álbum numismático?”
“Estava bolorento. Mesmo assim, consegui trocá-lo por um kit de fitas VHS com todos os episódios da série Perdidos no espaço, inclusive o piloto.”
“Aquele seriado trash de ficção científica dos anos sessenta do século passado?”
Trash não, cult.”
“Às vezes um filme é tão ruim que chega a ser cult, como os do Ed Wood.”
“É que, para ser ruim demais, e não apenas modesto ou medíocre, tem que ser muito criativo. Mas, afinal, aonde quer chegar com essa sabatina?”
Adonis curvou-se sobre a mesa, pousou as mãos nas do amigo e, abrandando a voz, falou:
“Tenho algo a lhe dizer, mas temo que se ofenda. Só tomo essa liberdade porque, por muito tempo, levei uma vida semelhante à sua: eu era triste, amargo, de mal com os outros e comigo mesmo.”
 “Não sou tão suscetível como pensa, mande ver!”, disse e se empertigou na cadeira, como que se preparando para receber um soco.
Adonis deteve-se com o chamado do celular. Apalpou os bolsos da camisa e das calças, abriu a pasta dos documentos, procurou por entre as páginas do jornal e quando esquadrinhava o chão, escutou um “alô”. O telefone não era o seu. A falta daquele elo com a família o deixou apreensivo. Tentou recordar-se onde o havia esquecido: “No cartório? No carro? Ah… foi na cozinha. Deixei-o lá carregando a bateria.” A ansiedade o indispôs para a conversa. Percebendo a aproximação de um nimbo, tentou se safar.
“Acho que vai chover grosso. Vamos deixar este bate-papo para outro dia?”
“Até esse dia morro de curiosidade. E é só uma nuvem. No máximo vai chuviscar. Ou você fala agora ou me paga, deixe-me ver…”
“Que tal um Scotch?”
“Não. Dez caixas de valium. Infelizmente, não posso mais beber nada alcoólico. Você não acha que seria ótimo se inventassem uma solução de benzodiazepínico e água para ser tomada em copo, com gelo e limão?”
Adonis riu. O inusitado bom humor de Anacleto espaireceu-o. Então começou a falar:
“O negócio é o seguinte. Você acabou de dizer que não vê futuro em deitar-se num divã e ficar tateando na escuridão do passado. Ocorre, meu amigo, que sua vidinha quarentona é uma extensão da sua infância: continua debaixo da saia da mãe, sob o mesmo teto em que nasceu, chorão como qualquer criança e sempre revendo películas do tempo da sua meninice, o que nada mais é que pulsão de repetição, hábito de bebê. Você vegeta no porão escuro do passado e nele, dos cinco sentidos, só usa o tato e o olfato. Se continuar nesse limbo, em breve não terá outro futuro a não ser o do pretérito.”
Anacleto assustou-se com a aspereza das palavras. Meneou a cabeça e riu. Seu olhar, no entanto, desfocado por repentina introspecção, contradizia a altivez do riso.
“Entendo o seu drama”, continuou Adonis, “pois, até bem pouco, suportei meu passado como um fardo. Não vou lhe recontar minhas desventuras…”
“Sei, sei: pai esquizofrênico, a mãe…”
 “Chega, deixe-me falar!” Interrompeu-o bruscamente. “A ruminação dessas lembranças era a razão da minha infelicidade. Até que Miriam engravidou. Fiquei aflito! O novo vínculo com aquela mulher instável desta vez era indesatável. Porém logo me resignei; a aceitação, mais breve ainda, transformou-se em benquerer. E graças ao amor por meu filho, conciliei-me com meu passado. Percebeu aonde quero chegar?”
“Mais ou menos.”
“Em miúdos: caso minha família fosse mais ajustada, minha história de vida teria sido outra. Muito provavelmente, não teria optado em me formar em Física, de modo que não teria conhecido meu colega Gustavo nem a irmã dele, Miriam. E se não tivesse me casado com Miriam e suportado seu humor borderline, obviamente que meu filho não teria nascido. Ora, como posso execrar tudo de ruim que se passou comigo, meus piores sofrimentos, se também concorreram decididamente para o desabrocho desta flor que é o amor por meu filho? Dia desses, folheando um almanaque, li algo de Somerset Maugham. Mais ou menos isso: a tragédia da vida não é morrer, mas deixar de amar.”
“Isso é clichê!”
“Sim, mas não deixa de ser verdade. E se o amor não implica apenas alegrias, mas também dores, não há dúvidas de que suas dores são preferíveis aos lúbricos passatempos dos entediados.”
“Antiepicuro dixit!”
“Espere, não me oponho ao epicurismo, mas a Aristipo. Seu hedonismo dionisíaco equivale a se banquetear num sonho: apraz-se com o sabor das iguarias, mas como essas são oníricas, insubstanciais, não podem saciar a fome. Acorda-se ainda mais faminto. Essa busca do prazer pelo prazer leva à compulsão, ao exagero, à substituição dos básicos valores pelos primários instintos, talvez até ao crime”.
“Certo. Mas me tire uma dúvida.”
“…”
“Quer dizer então que, por esta nova ótica, o suicídio do seu pai foi um bom acontecimento?”
“Não!”, exclamou Adonis, menos por indignação do que por espanto, “Apenas passei a aceitar algo que antes rechaçava. Aquela morte arestosa, atravessada na garganta, feria-me o tempo todo. Agora ela desceu para o abdômen e está sendo metabolizada.”
 “Faz sentido”, reconheceu Anacleto, “Agora, retomando o fio, o que você sugere para que eu saia do labirinto do passado?”
Adonis pensou um pouco e respondeu:
“Assim como pessoas muito narcisistas, alguns melancólicos e hipocondríacos também só se preocupam consigo mesmos. Vivem como que em estádio larvar, fechados em casulos de dor por eles próprios fabricados: desgosto por sua suposta insignificância, sentimento de culpa persistente, lembranças recorrentes de humilhações sofridas, autodepreciação, autopiedade, obsessão por doenças físicas imaginárias… Isso termina levando a uma relação de dependência com familiares e amigos, que é também de exploração, pois muito se pede e pouco se dá. Por isso que há quem considere esse ensimesmamento como narcisismo com sinal trocado: narcisismo negativo.”
“Sim, mas qual a sua receita para se sair deste casulo narcísico?”
“Você precisa ler A conquista da felicidade, de Bertrand Russell. Nele o autor confessa que foi um adolescente infeliz constantemente à beira do suicídio, o tempo todo meditando sobre suas deficiências. Ele então afirma que só conheceu a felicidade quando, ao focar sua atenção cada vez mais em objetos externos, passou a se preocupar menos com sua própria pessoa. Segundo Russell, a felicidade consiste em estabelecer vínculos criativos com o mundo exterior. Eu a considero um êxtase apolíneo. ‘Êxtase’ por ser ‘movimento para fora’, e ‘apolíneo’ porque se trata de um ‘fora de si’ que não é descontrole nem perdição, mas reencontro através dos outros e das coisas.”
“Há uma frase do Paulo Honório, personagem de Graciliano Ramos, que é mais ou menos a seguinte: ‘Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige’. Tal afirmação ilustra bem a grande dificuldade de encontrar energia para sair do buraco, principalmente depois de os hábitos se cristalizarem com a idade, ou quando o passado é pesado.”
“Por que não retira essa energia do próprio peso do passado?”
“Como?”
“Ora, um bom lutador de judô se vale da força do adversário para levá-lo à lona e derrotá-lo. É, pois, desta forma, à maneira dos judocas, que você pode sair do fosso.”
“Pare de falar por metáforas!”
“Certo, serei direto: já que você não pode ter filhos e criá-los, então se exteriorize criando obras de arte, fazendo do passado que tanto o atormenta a matéria-prima da criação. Em vez de dissipar sua dor em gemidos, transubstancie-a em objetos sublimes. Você é bacharel em Letras, tem grande formação humanista, já leu todos os clássicos. Então, por que não escreve livros? De crítica literária, contos ou romances, não importa o gênero. Para o autor, livros são como filhos e, tais quais os filhos, nem é preciso que sejam perfeitos ou populares para que possamos amá-los.”
“Mas é preciso ter vocação.”
“Você só pode saber se tem talento ou não depois de tentar muito. O grande Machado de Assis tentou, empenhou-se, pôs no papel muita bobagem até que, finalmente, superou-se com Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas. E o primeiro romance do velho Graça, Caetés, não é fraco? A regra, meu amigo, é persistir até o limite do razoável.
Anacleto curvou-se na cadeira numa expressão de desânimo. A mera expectativa do esforço já o deixava alquebrado.
“Outra coisa”, prosseguiu, “não pense em escrever obras revolucionárias, o grande romance do Século XXI, a mãe de todas as novelas ou coisas do tipo, pois tais pretensões só vão bloqueá-lo. O perfeccionismo e a presunção de genialidade são atalhos para o malogro. Por isso, busque apenas ser competente. Também não leve muito a sério o ato de escrever, antes o encare como uma brincadeira e verá a caneta fluir no papel sem dificuldades desnecessárias.”
“Não foi brincando que Joyce construiu Ulysses. Nem Goethe estava de folguedo enquanto escrevia o seu Fausto, obra a qual dedicou três décadas da sua vida. Todo bom escritor leva demasiadamente a sério o seu trabalho.”
“Assim como toda criança leva muito a sério suas brincadeiras. Tire de uma delas o seu joguinho e a verá cair no choro.”
“Impressionante como você tem sempre uma réplica engatilhada na língua. Estou me perguntando por que o amigo fala como se tivesse vasta experiência como autor. Já escreveu algum livro ou está escrevendo?”
“Tenho minhas teses de mestrado e doutorado sobre mecânica dos fluidos. Também publiquei meia dúzia de artigos em revistas científicas.
Anacleto alisou o bigodinho e, com teatralismo sarcástico, disse:
“Pensando bem, o amigo está certo. Sim, por que não? Escreverei livros, criarei obras de arte e serei feliz como Edgar Allan Poe, Virginia Woolf, Van Gogh, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca…”
“Você está se valendo de falácia, pinçando alguns casos singulares e os erigindo a emblemas do universal. Ora, nenhum desses figurões, apesar de geniais, ilustra o ânimo da grande maioria dos escritores e artistas. Sim, concordo que todos os criadores são movidos por um descontentamento basal mais intenso que a média. Mas o que é o amor senão um contentamento descontente, como escreveu Camões? Outra coisa: o fato de ser infeliz não implica que não se possa experimentar estados de felicidade uma vez e outra, seja num instante orgástico ou durante dias, meses e até anos. Eu até aposto que esses atormentados que você citou tiveram seus momentos felizes, e que a maior parte destes coincidiu com o tempo em que se dedicaram ao processo criativo.”
“Você, certamente, já ouviu falar na expressão ‘os tormentos da criação’. Tormentos, friso.”
“Sim. Também é fato que muitas parturientes experimentam orgasmo durante ou logo após a dor do parto. E digo mais: o próprio orgasmo é uma excitação dolorosa que, devido à liberação concomitante de endorfinas, o cérebro interpreta como prazer. Homens que transam muito por obrigação ou ofício sabem disso: depois de exaurida toda a morfina endógena, os orgasmos são sofríveis. No momento da ejaculação, em vez de expressarem gozo, fazem caretas. Leia o conto “O Campeonato”, do Rubem Fonseca.”
Anacleto apanhou a bengala e olhou o relógio.
“Admito que, em eloquência, não estou à sua altura”, disse. “E vou-me embora. Está quase na hora do meu arroz com purê de chuchu e peito de frango grelhado.”
Pagaram a conta e se despediram.
“Considero temerário depositar toda a razão da existência numa única pessoa, seja na mãe, na amante ou no filho”, refletiu Anacleto. “É quase como viver sobre uma corda bamba. Se Deus existe, que Ele proteja essa família.”
Caminhava, auxiliado pela bengala de metal, rumo a um ponto de ônibus quando percebeu que não sofria dor alguma. Sentiu-se, então, ridículo com aquela terceira perna. Compactou-a, colocou-a sob a axila direita e se pôs a caminhar mais depressa do que de costume.

* * *

De volta ao cartório, enquanto assinava o recibo da certidão de nascimento, sentiu cheiro de fósforo aceso — lembrou-se dos gases de Emmanuel.
O miasma e os chamados de celulares exasperaram-no. “Já deveria estar em casa.” Esbaforido, correu para o carro. Ligou o ar-condicionado com os vidros abertos para que a brisa expulsasse logo o bafio tórrido, deu a partida e aguardou alguns minutos até encontrar brecha no tráfego engarrafado.
Buzinaço, pedintes, insultos, um fusca no prego fechando o sinal. Resmungou. Ligou o rádio: jingues e pagodes em prelúdio. Sentiu dor de cabeça.
Avançara três quadras quando ouviu uma sirene. “Viatura policial ou corpo de bombeiros?” — Não discerniu. Os automóveis, atendendo ao sinal, abriam-lhe caminho subindo nas calçadas ou passando para a outra mão da avenida. Depois de alguns minutos, o soar da sereia tornou-se agudo e a luz de alerta o ofuscava pelos espelhos. Olhou para trás e viu um furgão branco que logo o ultrapassou.
Dois quarteirões depois, sem mais calhambeques enguiçados, o tráfego fluiu. Percebia, agora, o som da sirene cada vez mais baixo e grave, distanciando-se. Diminuiu a temperatura do ar-condicionado e colocou um CD. Como sulfato de morfina injetado na veia, uma música bela e melancólica imediatamente o sedou: Pavane pour une infante défunte, de Ravel.
Entregou a direção do veículo ao comando dos centros nervosos subcorticais — e pôs-se a se imaginar em situações futuras: pai e filho na areia da praia, passeando no shopping, assistindo a matinês. Emmanuel montando pôneis em hotéis de campo sob seus cuidados, subindo em árvores sem os seus cuidados, assustando-o com suas travessuras; Adonis ajudando-o em suas tarefas de casa, lendo-lhe numa rede As aventuras de Tibicuera, tentando despertar-lhe a curiosidade científica com experimentos caseiros, preocupando-se com suas noitadas movidas a álcool de adolescente…
Ainda devaneava com sua felicidade futura quando, já próximo de casa, ouviu novamente a sirene, desta vez numa altura crescente. Na rua imediatamente paralela à sua, avistou a ambulância parada, com a sinaleira da esquerda a piscar, na esquina da mesma travessa em que ele dobraria — no mesmo sentido.
“Será que atropelaram mais um motoboy?”
Ao entrar na sua rua, viu uma viatura da polícia parada no meio-fio do edifício em que morava, e uma multidão abrindo caminho para a ambulância. Esta também estacionou em frente à entrada do seu condomínio. Avistou Joaquim, o porteiro, alvoroçado. Este também o percebeu e, dirigindo-se a um policial, apontou-lhe. O policial cochichou com o primeiro paramédico que saltou da unidade móvel de tratamento intensivo, e ambos o encararam. Foi quando seu coração gelou. Saiu do carro.
“O que aconteceu?”
 “Uma mulher pulou lá de cima com um bebê.” — Respondeu alguém.
As pernas de Adonis tremeram.
“Não foi do oitavo andar, foi?”
As pessoas silenciaram. Algumas se afastaram. Uma voz no meio do aglomerado disse:
“Sim, foi do oitavo. A mulher rasgou a tela e se jogou. Morreu. Mas a criança ainda respira.”
O abraço de Iracilda quase o derrubou. — “Professor, bastou eu ir ao banheiro para o demônio fazer sua obra!”
Esquivou-se, abriu caminho aos safanões, correu para o edifício e foi detido pelo policial, o paramédico e o porteiro. Neste momento, suas mãos passaram a tremer como as de um doente de Parkinson. Conduziram-no a um sedã branco, que reconheceu ser o de Demétrio.
“Adonis”, disse o irmão, “vão lhe dar um lenitivo forte. É preciso.”
O paramédico injetou-lhe o entorpecente. Logo, alheou-se da realidade — basbaque, presenciava a algaravia como se esta ocorresse atrás de uma vitrine ou “do lado de fora”. Mesmo nesse estado “crepuscular”, falou com voz pastosa: 
“Se meu filho ainda vive, quero vê-lo.”
Sentiu falta de ar, dor no peito. Desmaiou.

* * *

Acordou na tardinha do dia seguinte em um leito de UTI, no mesmo hospital para aonde Emmanuel foi levado.
Sentia frio, sede e uma angústia claustrofóbica provocada pelo emaranhado de sondas e drenos. Ao seu lado, um aparelho eletrônico com sinais acústicos intermitentes media-lhe a pressão e os batimentos cardíacos. Uma enfermeira, percebendo sua agitação, chamou o médico plantonista, que o informou do seu prontuário: sofrera uma estenocardia, permanecera algum tempo em coma induzido, submeteram-no a um cateterismo e agora uma junta avaliava a necessidade ou não de outra cirurgia.
Essas informações não lhe interessavam.
“Que aconteceu com minha mulher?”
“O senhor já está a par de que ela não resistiu à queda. Quanto ao motivo do ato, se a família não o sabe… Existe a possibilidade de que tudo ocorreu devido a um surto psicótico puerperal, mas este é um diagnóstico a ser estabelecido por exclusão.”
“E meu filho?”
O médico escrutinou ao redor e, afastando-se, pediu que esperasse.
Meia hora depois foi despertado da letargia por uma assistente social. Com ela, dois enfermeiros preparavam o desfibrilador.
“E meu filho?”
A assistente alisou-lhe a testa.
“Você é forte” — sussurrou-lhe — “vai superar.”
“…”
“Seu filho faleceu.”
  
Não chorou, apenas disse:
“Meu filho sequer conheceu o prazer do riso, somente o assombro de nascer e dores, muitas dores… Melhor que não tivesse nascido.”
Depois, fechando os olhos, Adonis anoiteceu.