Quando o Amor é de Graça XI: Confissão à Forca
Crônica de Raymundo Netto para O Povo
Por saber que a saudade traga a gente, o tempo nos ensina que a gente traga sempre uma saudade.
Desde pequeno tenho como regra a saudade de tudo, mesmo daquilo recomendável lançar do parapeito da janela mais distante. Chega-me de Neruda: “saudade é sentir que existe o que não existe mais”. E existo, tão saudoso de um jeito, a sentir saudades até dos meus erros. Sim, por que não? Errei muito na vida. Erros tão conscientes e queridos a não me deixar sequer sombra de arrependimento. Aliás, meus erros me são tão sinceros que sou de não poupar oportunidade de sempre contá-los, no afã de mostrar-me às pessoas para que não se iludam a meu respeito, me entendam e não esperem mais de mim. Afora do que veem, asseguro, sou apenas fama e fantasia.
Mas há, em feliz, quem inda goste de mim assim, sem exigir-me de mais nada. Outros pensam — e expressam — o que poderia melhorar para estar bem, quase me desenhando outro. No entanto, haveria de haver também aqueles que me têm a mais cordial antipatia e descrédito.
Tenho assim, outra fragilidade a confessar. Creio, e creio de verdade: as pessoas que me gostam são bonitas, simples e especiais. Ao contrário, quem não gosta de mim é porque embriaga-se no seu fel, tem mau caráter e espírito de porco (com todo respeito ao pobre animal). Faz, de fato, um grande favor em revelar-me o seu não-ter-o-que-fazer espiritual.
Mesmo assim, também a estes, curiosamente leitores fiéis — sempre esperando escorregões de vírgulas (essa coisinha gibosa, enfisematosa e de baixa autoestima), — denuncio, aqui, minhas incorrigíveis falhas: Não gosto de aparecer, nem de títulos, muito menos crachás. Detesto multidões e falar em público. Sou gago, cheio de tiques, distraído e enjoado. Incompetente nas coisas mais simples, não sei coisas demais. Tenho problema com relógio de ponto e com extratos bancários. Gosto de letras, não de números, por isso não me adapto ao dinheiro. Guardo coisas velhas que não têm valor nem interessam a ninguém. Gosto de andar de ônibus e a pé. Adoro roupa muito usada (as primeiras da gaveta), filmes em preto e branco e mesa de bar de esquina. Não sei nome de carros, não como ao lado de quem não gosto, nem danço coisa nenhuma, além de ter passado da idade de ter que ouvir aquela música que todos ouvem apenas porque é o sucesso do momento. E, para concluir, a mais grave: acredito serem possíveis muitas coisas que todas as outras pessoas já sabem, de berço, que não dão certo, mas eu insisto nelas mesmo assim.
Machado de Assis, ao acaso, concluiu: “Um dos defeitos mais gerais entre nós é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério”.
Daí, não me iludo com a vida alheia. Quando falam com muito entusiasmo de personalidades, de seu progresso profissional ou afetivo, olho sempre com desconfiança. Quando me perguntam quem eu gostaria de ser, não cito os grandes nomes, mesmo aqueles cuja plateia ecoa em idolatria, admiração e amor. Ora, cada qual suporta uma sua dor, mas nem sempre ela é sentida pelos outros a apenas enxergar o que se é permitido no olhar da conveniência de todo sempre e de todas as gentes. Não, não gostaria de ser ninguém, não tenho vontade de ser nem de ter nada dos outros. Por outro lado, se me perguntassem: “Quem eu não gostaria de ser”, a resposta pularia do trampolim da língua: Raymundo Netto, esse eu conheço bem. Deus me livre!
De assim, continuo a (prot)agonizar o papel desse sujeitinho ridículo, como as cartas de amor de Pessoa, com a fria esperança de uma dia liberdade, de uma tarde compreensão e de a noite ser em silêncio.
“Eu sei que tudo é como o fumo leve:/Foge... mas, porque a vida seja breve, /Há sempre um dia mais para quem ama” *.
(*) Mário da Silveira (1899-1921)
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