quinta-feira, 27 de setembro de 2012

                    Airton Monte posando para a revista Para Mamíferos


                             DOM AIRTON DAS PERNAS FINAS


Pedro Salgueiro para o povo

 
Nosso cronista Airton Monte tem sido tratado com bastante reverência, seriedade e pompa, advindas, claro, de sua cruel doença e lamentável morte. Aliás, como toda morte deve ser, sim, tratada. Mas me pego imaginando ele presente em seu velório, solenidade de cremação, missa de Sétimo Dia, escondido por trás de todos, rindo de toda aquela solenidade, com o traquino riso fácil que era muito dele: do escárnio de quem ria de tudo, de quem “gozava” do mundo, de quem “mangava” de todos.

Não, eu não fui seu amigo íntimo, nem seu camarada-irmão, muito menos tomei homéricos porres com ele em seus idos tempos de Estoril, também jamais passeei em sua companhia pela velha Iracema de todas as saudades. Sou de uma geração posterior. Quando comecei a rabiscar minhas primeiras letras, fazia muito ele tinha deixado de escrever contos. Acabara de assumir a página diária d’O POVO que havia sido de seu grande amigo Rogaciano Leite Filho. De lá pra cá, o tenho lido quase que diariamente, a ponto de sentir saudades quando ele tirava férias: pegava-me automaticamente indo à sua página toda manhã.
Estive com ele umas duas vezes em mesas de bares (na praia de Iracema e no Assis da Gentilândia, ambas com diversos amigos), outra na casa de Nilto Maciel com uma multidão de jovens escritores, umas duas (e rapidamente) no Clube do Bode. Em todas ele falou o tempo inteiro, não dando tréguas nem deixando ninguém abrir a boca. Mas, ironicamente, a maioria das vezes em que estive ao seu lado foi em mesas de palestras nos colégios de Fortaleza. Nossos livros haviam sido indicados para o vestibular da UFC e percorremos (algumas vezes individualmente, outras em conjunto) literalmente todos os colégios da cidade — eu adorava quando dividia mesa com ele, pois sabia que não teria, matuto encabulado que sou, que dizer quase nada: ele falaria sem dificuldades as duas horas, brincaria com os estudantes, contaria piadas e riria das falas sem jeito dos estudantes. Ria também de si, invariavelmente sobre seus “dentes” novos, móveis, que o maltratavam na prótese provisória que antecederia ao implante.

Um dia recebemos convite para ir a Sobral. Ele me ligou cedo querendo saber se eu ia mesmo, eu disse que sim, e combinamos de o carro do colégio passar primeiro na casa dele (salientou rindo que ele tinha prioridade por ser mais importante e mais velho). Durante a viagem conversou o tempo inteiro e insistiu diversas vezes para o motorista parar para que tomássemos cervejas e ele fumasse alguns cigarros. Fizemos (na verdade ele fez) a obrigação do bate-papo e depois seguimos com alguns professores para um bar. Enchemos a cara e (como boêmios aposentados) fomos para o hotel tristemente sozinhos. Lá, antes de dormir, ainda conversamos muito. Ele contou de uma viagem ao Rio de Janeiro, ria muito contando as peripécias cariocas. Durante a madrugada, de vez em quando se esgueirava na penumbra para ir fumar na varanda.
                                      

Gostava de tirar “onda” com os amigos nas páginas de suas crônicas: certa vez inventou que havia comido uma panelada comigo e Nilto Maciel (que ele chamava carinhosamente de “bigode”), outra me acusava de ter feito alguma traquinagem com ele, a última foi a de que eu tinha criado uma página pirata (que os jovens chamam de fake) dele no Facebook. Era uma de suas formas de carinho com os amigos e colegas de literatura. Certa vez se irritou com uma crônica, “O Vira-Casaca”, que fiz sobre ele, respondeu com outra: “Ora, pílulas!” ou “Ora, bolas!”, não lembro bem. Gostava de cutucar, mas detestava ser cutucado. Pouco depois nos encontramos e de longe ele já foi gritando: “Pedro Sangreiro”, um apelido que ele e Virgílio Maia me botaram devido às muitas mortes em meus contos.

Foi um homem de sorte: amou os pais e irmãos, casou-se com o amor de sua vida, sua prima Sônia, uma verdadeira santa (usando as palavras dele), teve filhos ótimos, colecionou uma legião de amigos fieis que o acompanharam até seus últimos instantes.

Deixou para a literatura cearense quatro livros de contos de qualidade (Alba Sanguínea, O Grande Pânico, Homem não Chora e Os Bailarinos), um volume de crônicas (Moça com Flor na Boca), outro de poesia (Conversa de Botequim), além de uma infinidade de crônicas nas páginas de O POVO. Creio (e torço) que tenha deixado inéditos, contos inacabados, rabiscos de crônicas e um romance sobre sua geração, que ele anunciava em conversas de bar.

Deixou sua importante contribuição na boa tradição da crônica cearense, tradição que já nos deu nomes como José de Alencar, Gustavo Barroso, Caio Cid, Raquel de Queiroz, Herman Lima, Otacílio de Azevedo, João Jacques, Otacílo Colares, Milton Dias, Ciro Colares, Moreira Campos, Margarida Sabóia de Carvalho, dentre outros.

Deixou também sua contribuição como figura humana singular, cheia de contradições e idiossincrasias: craque míope, estudante competente, psiquiatra irreverente, boêmio inveterado, torcedor “doente” do Fortaleza e do Botafogo, bom amigo, leitor voraz e o maior ladrão de livros que já existiu por estas plagas (título que dividia orgulhosamente com seu irmão Vessilo).

Deixou saudades!!!!!

terça-feira, 18 de setembro de 2012


                                               A DATA
Constantemente Vicki afronta o calendário desejando que os dias parassem, mas eles renascem. E a data assinalada se aproxima com o seu cortejo de horrores. 

Silas Falcão

sexta-feira, 14 de setembro de 2012


                                         
Flor amorosa

O que teria sido feito desta pobre música
se Catulo da paixão não a tivesse feito?
Vagaria, solteira, o tempo todo
pelas calçadas das pautas?
Não teria, nunca, nada de seu?
Pediria pelo amor de deus
esmolinha às flautas?
Levaria a vida inteira como eu?

Carlos Nóbrega


                                     CHOCOLATE AMARGO
Dá um ovo de páscoa a filha. De repente um grito da criança. Dentro do ovo a fotografia do Lobo Mau sepultando a Branca de Neve.

Silas Falcão

                                                        

                                                BULCÃOZIM

Por Pedro Salgueiro para O povo

Não lembro bem onde conheci o escritor Manuel Soares Bulcão Neto (e se não me engano esta é a primeira vez que pronuncio seu nome assim, completo, e também que o adjetivo de escritor), se na casa da amiga Ana Miranda, se no nosso covil barulhento do Assis da Gentilândia. Lembro, sim, que com meia hora de conversa já parecíamos amigos de infância, tamanha era a capacidade do nosso novo amigo de nos deixar completamente a vontade.
Foi, sem dúvida, a pessoa mais sem “frescuras” que conheci, mais sem “burrocracias” para os nefandos protocolos da vida. De início descobrimos um traço em comum: ambos “perdiam o amigo, mas não perdiam a piada”. Éramos muito parecidos em nossas “pequenas e inofensivas crueldades”, ele gostava de ressaltar. Uma vez me disse: “Mas você é mais cruel do que eu”, no que eu retruquei: “Apenas sou mais grosseiro, rude. Você teve uma educação mais refinada... É um filósofo!” Ele já ria, descobrindo em minhas palavras apenas uma gozação à sua condição de filósofo autodidata.
Era bastante gago e fazia dessa gagueira piadas, não nos dando, com isso, oportunidade para que o “zoássemos” com brincadeiras. Mangava de si antes de nós. Aliás, fazia piadas com tudo, principalmente consigo mesmo. Mas geralmente se dava mal quando partia para as brincadeiras pela internet, infelizmente as palavras frias e sem gestos que saiam do computador não tinham a simpatia que os seus chistes inteligentes e bem humorados necessitavam. Mais de uma vez criou pequenas (mas inofensivas confusões) com amigos, que logo eram resolvidas com seu pedido de desculpas e a promessa de que nunca mais iria brincar com os outros. Promessa que (sabíamos) não seria cumprida.
Tinha uma doença rara (e grave), que ele parecia também não levar muito a sério. Falava abertamente e até sentia certo “prazer” em discorrer sobre ela. Dava detalhes, mostravas feridas nas pernas, zombava também dela, ante a nossa incredulidade, o nosso espanto, o nosso medo. Fechava conversa dizendo que já estava no lucro, pois os médicos lhe deram três anos de vida e ele já estava com sete. Então comemorava (para alguns, mais pessimistas, suicidava-se) com muito álcool, pó e fumaça...
Era membro efetivo (mas principalmente afetivo) da corriola de amigos batizada pelo Poeta de Meia Tigela de “Poetas de Quinta”: vez por outra aparecia nas barulhentas noitadas do Assis e ria muito quando eu afirmava, ante o protesto quase unânime da turma sobre a zoada quase insuportável, ser ali o melhor local para se discutir a literatura cearense. “Já que ninguém vai se entender mesmo” ria ele, gordinho, míope, gago e feliz.
Prezado Bulcãozim, eu queria apenas (com estas improvisadas linhas tortas) te dizer em nome da cambada toda que você faz uma falta danada. Que com sua partida o nosso mundo fica bem mais pobre, mais burro e principalmente mais chato. E para não dar vazão a esse choro (que há semanas teima em querer sair dos meus, dos nossos olhos) queria te confessar que não fui ao teu velório, nem ao teu enterro, e ainda usei a tua missa de sétimo dia como desculpa para não ir a um lançamento de livro: minha última “sacanagem” contigo, amigão!

"UM MONTE DE BARATA"

CRÔNICA DE RAYMUNDO NETTO PARA O POVO


Airton Monte (foto: Raymundo Netto)

Ao lado da minha cama, acostumei a guardar alguns livros, pois eu não consigo dormir sem ler pelo menos a um parágrafo de qualquer coisa. Mas não me detenho apenas num único livro, não; sou indisciplinado, leio o que primeiro vier. Entretanto, meus sonolentos ledores, aconselho, não leiam antes de dormir, coisas estranhas acontecem! E mais: não misturem livros, autores ou gêneros diferentes, pode ser “indigesto”. Eu, devido o mau hábito, passei por uma... Durante tal leitura, noite alta, senti a vista me faltar lentamente. Com pouco, comecei a ouvir uma voz arranhada, a gritar por mim, num canto perto da cômoda. Era uma barata. Uma barata falante, ou gritante. Dirigi-me a ela, com estranha intimidade:
— Gregor Samsa *?
— Que Gregor porrrrcaria nenhuma!, respondeu. — Está me estranhando, bicho? Sou eu, o Airton Monte!
E não é que era mesmo o Airton, gente! Olhando mais próximo, e com natural receio, reconheci, entre as seis patinhas trêmulas enleadas por fitinhas coloridas, uma cabeçorra encimada por um bonezinho donde saíam antenas. No rosto, os grandes óculos, a ausência de lábios e um escapulário de São Francisco no... pescoço!? Perguntei:
— Mas como isso foi acontecer com você, Airton?
— Eu sei lá, cara! A viagem é sua e você quer que eu lhe desenhe um mapa? — disse-me, soprando anéis de fumaça de um lasca-peito qualquer. — Logo eu, que elevei a crônica cearense ao patamar da literatura, estou aqui me sentindo como um inseto! Ah, o que o tesão da minha infância diria se me visse assim?
— Caramba, deve ser um tanto solitária a vida de barata, não?
— Solidão, para mim, nunca foi um grande problema. Antes uma unção, uma benção, uma maneira especial de estar no mundo sozinho com meus fantasmas prediletos, tirando férias do resto da humanidade...
— Que é isso, Airton, esse papo está ficando cascudo... — já estava me perguntando o porquê de, com tanta barata legal no mundo, foi-me aparecer por ali logo o Airton Monte. Ele continuou:
— Há dias assim, tão terrivelmente medíocres, que nem sequer inspiram a mais reles croniqueta! Que saudades de minhas voltinhas na Gentilândia, Benfica e no Jardim América...
— Mas você está se sentindo bem?
— Claro! Depois de 25 anos de tira-gosto de botequim, a gente fica imunizado contra qualquer vírus. Isso, sem deixar faltar, aos domingos, a macarronadinha com uma galinha à cabidela e um joguinho de futebol... — pôs-se, então, a rastejar-se nas paredes. Estava achando um barato esse negócio de ver o mundo de cabeça para baixo, suspenso no teto e coisa e tal:
— Raymundo, sabia que as baratas passam 75 % do dia dormindo, e que elas têm uma atração por bebida alcoólica, principalmente por cerveja? Sabia não... Boa esta vida de barata, meu irmão! He, he, he... Agora, veja só: eu, um cronista suburbano com ares de anarquista e com esse meu corpinho de bailarino espanhol, condenado a protagonizar o desvario de um cronista de segunda! — retraindo o abdome magro, encolheu as asas, tirou do dorso a caneta e um bloquinho de notas, cruzou as patinhas a pendular uma botinha preta e pôs-se a rabiscar:
— Para não perder meu tempo: como foi que tudo começou, Raymundo?
— Começou o quê?
— Essa sua vida besta... Fala sério, meu amigo, sua rotina é escatológica... Nem sei como você se aguenta! Além de, me perdoe, ser feio pacas! Você tem uma feiúra enciclopédica...
— Hã? — (à parte) — Meus amigos, só mesmo tendo sangue de barata!
— Liga, não! A vida acaba com qualquer um, bicho. Afinal, ao nascermos não assinamos contrato obrigatório com a felicidade... Não é só você, não. Essa coisa de ser camelô de si mesmo também me irrita. ‘Cê não sabe fazer outra coisa não, Raymundo. Pô, você é brabo, hein?
— Meu Deus, quanta filosofia barata, Airton!
— Engraçado, né? Por aqui, temos escritores que falam como se estivessem num palanque do Olimpo... Besteira! Escrever é apenas um ato consumado: ou se escreve bem ou ruim. Escrever é como desenhar, é só correr o risco e o bem-vindo alívio do ponto final.
Estava eu ali, entregue à barata, quando, súbito, a empregada, estranhando a conversaria noturna, entra no quarto. Horrorizada com aquela visão fabulosa e botafóguica, pôs-se a gritar atrás do pobre invertebrado sapecando-lhe uma vassoura. Tentei adverti-la que o deixasse em paz, que era um amigo, mas ela estava louca, completamente perturbada. O pobre do Airton, trêmulo e com uma fácies anêmicas laskeime, eriçou uns pêlinhos às costas e passou a gritar por sua amada guardiã:
— Sônia! Sônia! SÔNIA! SONHAAAAAAAAAAAA!
Sônia, sonha, sonhar... Acordei! Não, por favor, não leiam antes de dormir... nunca mais!

(*) Gregor Samsa é personagem de Metamorfose de Franz Kafka.
Airton Monte nasceu em Fortaleza, Ceará. Psiquiatra, poeta, contista, cronista do Jornal O POVO —  e marido da d. Sônia —,  iniciou-se na revista O Saco e foi um dos fundadores do grupo Siriará de Literatura. Lançou Moça com Flor na Boca (crônicas). Alguns dos textos da fala do Airton são adaptações de suas crônicas e entrevistas

domingo, 9 de setembro de 2012

O RAPSODO MANUEL BULCÃO (CRÔNICA DE ANA MIRANDA)



         Coisa triste é perder um amigo. Ainda mais, quando o amigo é jovem. E mais ainda, quando ainda tem muita coisa para escrever. Perdemos, o Ceará perdeu, o filósofo cientificista, se posso intitulá-lo assim, Manuel Soares Bulcão Neto. Quase no dia de seu aniversário, quando completara 49 anos. Ele se dedicava a “estudos críticos sobre questões filosóficas fundamentais no mundo contemporâneo, sobretudo ao que tange às implicações sociopolíticas dos avanços atuais da ciência”, conforme palavras que constam na orelha de um dos seus livros. E me fazia lembrar um pouco Augusto dos Anjos e Baudelaire, pela visão niilista, pessimista, mas apaixonada, pela vida, pelas seitas cientificistas, era um iluminista que acreditava, todavia, que nem dentro nem fora da ciência há libertação ou redenção. E escrevia com a fé desses maravilhosos poetas. Sem a certeza da verdade de seus preceitos sustentados apenas pela incerteza que faz parte do conhecimento: “O princípio fundamental de que tudo é incerto, inclusive esta afirmação”. A grande fé.


         Nesse sentido, era religioso. E revirava as lamas, os fantasmas, as sombras, a escravidão, as guerras, o racismo, a dor da consciência, com coragem para enfrentar a “atmosfera rarefeita de pesadelo” que envolve alguns de seus temas, e que o fazia “respirar com dificuldade e até nausear”, conforme suas próprias palavras. Uma obra que, segundo o professor Diatahy B. de Menezes, pode ser reconhecida também pelo “quanto de emoção, quanto de energia criativa, quanto de labor e quanto de tempo precioso subtraído do legítimo direito ao lazer e às vezes com o sacrifício da própria saúde” guardava em si. Matei-me de escrever, costumam dizer os escritores. Muitos, sem suportar a pressão da lucidez, da consciência, da razão e da sensibilidade, se entregaram ao álcool, ao absinto, ao tabaco ou às madrugadas insones. Manuel parece ter entregue a sua própria vida para suportar sua obra, vida que todavia continua a existir por meio de seus pensamentos. Refugiava-se na sua sagrada família, em seus amores, amigos, em conversas longas, cultas, da mais elevada estirpe de conversadores. Ficaram seus livros.


         São livros inquietantes, maravilhosos, profundos, com o humor da inteligência abrasiva que tanto iluminava aqueles seus olhos grandes, verdes e bonitos. Os títulos de seus livros de ensaios são bem sugestivos sobre o conteúdo: A esquisitice do óbvio, Sombras do iluminismo e A eloquência do ódio. Há um quarto livro, que já foi publicado virtualmente e espera o papel e o velho prelo, única forma de eternizar as palavras. Todos com uma linguagem ao mesmo tempo científica, extremamente erudita, e qualidades inerentes à literatura. Esses livros e seus artigos e crônicas circulavam em jornais, em sites e blogues, principalmente do e-group Ciencialist, com cujos participantes ele travava debates esclarecedores e ardentes. Tinha leitores e fãs pelo Brasil todo.


        Escrevia também contos, e esfalfava-se num romance com traços memorialísticos, que tive a ocasião de ler, de discutir com ele sobre a concepção e a linguagem. E escrevia poemas muito bonitos, fortes, dentro de uma tradição familiar: um dia me mandou o livro de poesias de seu avô. Ditou, no leito de morte, um último poema, que soa às balalaicas de Maiakovski, para sua irmã, sob os olhos sentidos e fortes da mãe. Chama-se “Quem ri por último”, e aí vai, não como um epitáfio desta crônica, mas como uma ode aos que sabem sorrir.


Zé Gaiatin’
Ria, ria, ria!
Mas sua risadaria
Não era sinal de alegria.

Como disse Frejat,
Era sintoma de desespero.
Autodestrutivo e farrista
Nosso cômico trágico Mr. ri.

Até piada fazia
Do seu dissoluto devir.

Aos que perguntavam
“Por que não dá um tempo
Para de vez em quando parar”,
Feito sátiro respondia:

“Saúde — eh eh eh — é
Para se gastar”.

Certo dia,
Num fundo de UTI,
Sentindo dor excruciante,
Calafrio e agonia,
Então percebeu
Pelas frestas de seu biombo
Intensos raios azuis.

As nuvens se dissipando
E uma voz alta e soante:
“Oh, filho, o que antes dizias?
Saúde é para se gastar?
Ah Ah Ah Ah Ah!”

          

 (Crônica publicada na edição de 09 de Setembro de 2012 do Jornal O POVO)         

terça-feira, 4 de setembro de 2012


                        
                                                O CRONISTA  
Após escrever uma longa crônica, ele percebeu formigas andando pelas entrelinhas do texto.
 Silas Falcão
                           A HORA DO POBRE
 
Crônica de Pedro Salgueiro para O Povo
O Presidente Vargas, o nosso simpático PV, é o estádio de futebol mais querido de estado do Ceará. Simples e aconchegante, possui a característica singular de estar situado em um bairro central, o Benfica, mais precisamente na Gentilândia, capital amorosa do citado bairro. Querido por todos, mas bastante negligenciado pelo poder público e mesmo pelos próprios frequentadores por décadas, vivia rachado em suas estruturas de cimento, feio por fora e por dentro, uma lástima: seus muros e bilheterias serviam de banheiro público para os feirantes da pracinha ao lado.
Invariavelmente todos se sentiam bem, apesar da sujeira e desorganização que reinavam. Era, podia se dizer, um estádio popular. Preços mais baixos, acesso facilitado para carros, bicicletas, e até mesmo a pé, pois facilmente chegavam turmas de torcedores de vários bairros em caminhadas, verdadeiras peregrinações.
Mas além da simplicidade, acesso facilitado, barzinhos bem próximos, “churrasquinhos-de-gato” à vontade, o que me comovia de verdade era o advento da “hora-do-pobre”, quando o portão lateral situado na Rua Paulino Nogueira era aberto aos mais pobres, estudantes e até vendedores, faltando uns quinze minutos para o término da partida. Uma multidão se formava ao pé do muro da Escola Técnica a olhar impaciente na direção da entrada, alguns mais afoitos começavam a esmurrar a negra lâmina de aço mal começava o segundo tempo. De vez em quando um guarda vinha à calçada e olhava feio para os apressados, levando a costumeira vaia.
Era o horário exato em que eu passava vindo da faculdade, então me escorava no poste e puxava conversa a respeito do andamento do jogo; os que tinham radinho de pilha iam nos informando sobre os lances, exagerados pela voz estridente dos narradores. Em muitos anos fiz amizades com diversos frequentadores daquele ritual de paixão pelo futebol, conhecendo alguns até de nome. Quando finalmente se abria a porta da esperança era cada um por si: quem tinha bicicleta levantava-a acima da cabeça e corria desajeitado, já quem carregava apenas o radinho levava vantagem na disputa dos últimos espaços ao pé do alambrado.
 
Dependendo do resultado do jogo podíamos ser recepcionados pelos torcedores que já estavam no estádio de maneiras completamente diferentes. Vezes havia em que éramos vaiados sem dó nem piedade, chamados de “lisos”, “pobreza” e até presenteados com sabugos de milho, latas de refrigerante, líquidos suspeitos; em outras raras ocasiões chegávamos a ser recebidos por palmas, geralmente quando o resultado era favorável.
Naturalmente não havia tempo para procurarmos lugar na arquibancada, queríamos logo era chegar à primeira, segunda ou terceira fila de torcedores ao pé do alambrado. A confusão de cabeças se movendo lateralmente tentando desviar as diversas outras à frente na busca do lance de perigo era um balé de loucos, as vozes aceleradas dos diversos locutores formavam uma sinfonia de ruídos; mas os olhos acesos, alegres ou frustrados, buscavam até o último fiapo do derradeiro segundo de desconto alguma esperança ou alívio.
Depois do apito final, desciam desorganizados os afoitos torcedores de “cima”, já os de “baixo” apenas se viravam, tímidos. Então todos, agora indistintos, misturados que nem cupins, seguiam juntos na direção da saída.
 


P.S.: Depois da importante reforma do nosso querido PV desapareceram, quase que por encanto, a maioria dos “pobres”; hoje o asséptico estádio parece destinado apenas à remediada classe média: a classe mais baixa persiste somente em forma de vendedores, cambistas e descuidistas, que insistem em participar de um espetáculo que cada vez menos é feita para eles.