terça-feira, 4 de setembro de 2012

                           A HORA DO POBRE
 
Crônica de Pedro Salgueiro para O Povo
O Presidente Vargas, o nosso simpático PV, é o estádio de futebol mais querido de estado do Ceará. Simples e aconchegante, possui a característica singular de estar situado em um bairro central, o Benfica, mais precisamente na Gentilândia, capital amorosa do citado bairro. Querido por todos, mas bastante negligenciado pelo poder público e mesmo pelos próprios frequentadores por décadas, vivia rachado em suas estruturas de cimento, feio por fora e por dentro, uma lástima: seus muros e bilheterias serviam de banheiro público para os feirantes da pracinha ao lado.
Invariavelmente todos se sentiam bem, apesar da sujeira e desorganização que reinavam. Era, podia se dizer, um estádio popular. Preços mais baixos, acesso facilitado para carros, bicicletas, e até mesmo a pé, pois facilmente chegavam turmas de torcedores de vários bairros em caminhadas, verdadeiras peregrinações.
Mas além da simplicidade, acesso facilitado, barzinhos bem próximos, “churrasquinhos-de-gato” à vontade, o que me comovia de verdade era o advento da “hora-do-pobre”, quando o portão lateral situado na Rua Paulino Nogueira era aberto aos mais pobres, estudantes e até vendedores, faltando uns quinze minutos para o término da partida. Uma multidão se formava ao pé do muro da Escola Técnica a olhar impaciente na direção da entrada, alguns mais afoitos começavam a esmurrar a negra lâmina de aço mal começava o segundo tempo. De vez em quando um guarda vinha à calçada e olhava feio para os apressados, levando a costumeira vaia.
Era o horário exato em que eu passava vindo da faculdade, então me escorava no poste e puxava conversa a respeito do andamento do jogo; os que tinham radinho de pilha iam nos informando sobre os lances, exagerados pela voz estridente dos narradores. Em muitos anos fiz amizades com diversos frequentadores daquele ritual de paixão pelo futebol, conhecendo alguns até de nome. Quando finalmente se abria a porta da esperança era cada um por si: quem tinha bicicleta levantava-a acima da cabeça e corria desajeitado, já quem carregava apenas o radinho levava vantagem na disputa dos últimos espaços ao pé do alambrado.
 
Dependendo do resultado do jogo podíamos ser recepcionados pelos torcedores que já estavam no estádio de maneiras completamente diferentes. Vezes havia em que éramos vaiados sem dó nem piedade, chamados de “lisos”, “pobreza” e até presenteados com sabugos de milho, latas de refrigerante, líquidos suspeitos; em outras raras ocasiões chegávamos a ser recebidos por palmas, geralmente quando o resultado era favorável.
Naturalmente não havia tempo para procurarmos lugar na arquibancada, queríamos logo era chegar à primeira, segunda ou terceira fila de torcedores ao pé do alambrado. A confusão de cabeças se movendo lateralmente tentando desviar as diversas outras à frente na busca do lance de perigo era um balé de loucos, as vozes aceleradas dos diversos locutores formavam uma sinfonia de ruídos; mas os olhos acesos, alegres ou frustrados, buscavam até o último fiapo do derradeiro segundo de desconto alguma esperança ou alívio.
Depois do apito final, desciam desorganizados os afoitos torcedores de “cima”, já os de “baixo” apenas se viravam, tímidos. Então todos, agora indistintos, misturados que nem cupins, seguiam juntos na direção da saída.
 


P.S.: Depois da importante reforma do nosso querido PV desapareceram, quase que por encanto, a maioria dos “pobres”; hoje o asséptico estádio parece destinado apenas à remediada classe média: a classe mais baixa persiste somente em forma de vendedores, cambistas e descuidistas, que insistem em participar de um espetáculo que cada vez menos é feita para eles.


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