domingo, 22 de março de 2015





O VELHO POETA

Pedro Salgueiro
Jornal O Povo
21-03-2105

O velho poeta se angustiava com a falta de leitores, não especificamente leitores de sua própria “obra literária”, como sempre dizia, dando uma ênfase quase religiosa ao termo; mas se ressentia da falta de leitores de maneira geral. Quando tocava no assunto – e essa lamentação cada dia mais fazia parte de suas conversas –, citava de memória as últimas estatísticas; de sua boca deslizavam dados precisos para mostrar ao interlocutor que sua queixa não se tratava de uma visão “mesquinha”, personalista, que apenas desejasse estilar as lamúrias de um escritor gasto, cansado; na verdade (fazia questão de frisar) não queria justificar seu fracasso como “escritor de província”; termo que, aliás, detestava, combatia – diria até que perdia a calma quando o escutava.

O senhor antigo já quase cedeu à tentação de escrever um romance, desses da moda, com ações ágeis que se passam impreterivelmente num país estrangeiro. Um famoso escritor de outro estado, desses que são cativos em bienais e feiras de livros Brasil afora, bem que falou em palestra para as mocinhas da faculdade de Letras: “Quem insistir em escrever apenas poemas e contos estará fadado ao fracasso”. Ele saiu confuso do auditório; triste mas aliviado, se sentindo leve até, afinal do “conselho literário” do exitoso colega entendera que o, digamos... – procurou os termos corretos, mais amenos, para não se auto melindrar – ...verdadeiro culpado pelo seu pouco sucesso na “carreira literária” era propriamente o “gênero” que ingenuamente escolhera para si.

E nesse misto de decepção e alívio partiu para organizar uma “nova” carreira literária – desocupou a estante principal povoada de poetas de todas as partes do mundo e, sem perder tempo, se dirigiu à mega-livraria do shopping para adquirir o maior número de romances de última geração, escritos por escrevinhadores nacionais e estrangeiros; pacientemente organizou um intricado mapa de leitura que o faria dar conta, em poucos meses, das novidades literárias que ele mesmo andara criticando com afinco nas últimas décadas.

Cada vez que descobria a idade dos escritores da moda entrava momentaneamente em depressão, todos meninos que facilmente seriam seus netos, alguns imberbes ainda; moçoilas com rostos juvenis, que, com olhos firmes de pura arrogância, lhe olhavam de cada “orelha” desdobrada. Passou a não ler mais “orelhas”, prefácio, resenhas... Empanturrou-se de dezenas de livrões de quase quinhentas páginas. Mas, em certa madrugada, flagrou-se pensando que se empilhasse todos os seus magros volumezinhos de poemas escritos em quase cinquenta anos não daria um tomo robusto daqueles; e inevitavelmente pensou: “O que esses jovens têm tanto para dizer hoje em dia, se mal começaram a viver?”.

Encheu páginas e páginas de cadernos com infinitas ideias para o seu “novo” romance, alinhavou episódios de vida, desde a infância feliz, passando pela conturbada adolescência, chegando à quase senilidade dos dias de hoje, quando tomou então – começava a acreditar nisso, principalmente nas noites de cansaço, afundado nas pilhas de livrões modernos – consciência de que não teria mais tempo para escrever um monumento daqueles, que lhe faltava força; não só física mas mental. Nessas noites ia dormir angustiado e sonhava com enredos mirabolantes, sem pés nem cabeças; neles os personagens saiam dos seus alfarrábios recém-escritos e criavam vida, indo eles mesmos escrever a obra terminal do velho poeta, que – constatava desolado quando acordava – era ele próprio.

Em certa madrugada de intensa angústia – havia até pensado em suicídio – dormira por cima da escrivaninha, com a cara enfiada nos numerosos papéis manuscritos; logo desatou a sonhar cenas tão vívidas que na manhã seguinte mal acreditava que realmente havia sido um reles pesadelo: seus personagens, desta vez enfurecidos, desataram a rasgar livros na sua estante de novidades, não ficando um só volume com páginas intactas – e o mais incrível: no último quarto do caderno de pautas deixaram pronto um enredo de tal forma intrincado, que – ele teve convicção – fora, não escrito pelos seus personagens, mas psicografado pelos mil diabinhos que povoavam desde a infância os seus sonhos; um enredo tão monstruosamente complicado que com certeza deixaria a crítica literária ocupada por um século inteiro.


O velho poeta, e quase novo romancista, pouco tempo depois sofreu um derrame cerebral, sobrevivendo ainda alguns meses, entre dores e delírios, antes de ser cremado rapidamente pela família, que parecia temer a reversão do quadro. Seus livros – os antigos, já que os novos estavam em pedaços – foram vendidos a um sebo; e seu último caderno de manuscritos foi enfiado num saco de lixo, levado ao fundo do quintal, onde alimentou uma linda fogueira. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Lição de Liberdade



Crônica para o Caderno 3 do Diário do Nordeste (8/3/2015)

Lição de Liberdade

Por Carlos Vazconcelos

Um amigo me contou que seu pai, ao vir passar uns dias com ele na capital, comentou mais ou menos assim: “Meu filho, eu não gosto daqui porque a vista da gente termina cedo, bate num muro, ou numa casa, parece que quer voltar para dentro dos olhos. No interior não, tudo é a perder de vista!”. O interior de que ele fala é propriamente o campo, nicho primitivo do homem, onde terra e céu parecem dar as mãos, onde as retinas não encontram obstáculos para a sua liberdade.

E foi pensando em liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que a explique, e ninguém que não entenda, como disse Cecília Meireles, que compreendi perfeitamente a queixa do pai do meu amigo. A liberdade começa pela vista, ou melhor, pelo alcance da vista. É por isso que amamos o mar. Mar é sinônimo de liberdade, é antítese de limite. Uma vez à beira-mar, já nos sentimos viajantes. O segredo é levantar os olhos. Antigos marinheiros, mui amantes da liberdade, inconformados com o infinito, achando pouco o imensurável, atiraram-se por oceanos nunca dantes navegados e foram além da Taprobana ou do Bojador. Para eles, liberdade e felicidade eram mais do que uma rima. Estava criada a expressão além-mar.

Comparo cidade sem mar com casa sem quintal. Limita os movimentos, suscita a claustrofobia. Toda cidade deveria possuir pelo menos muitas praças e, se possível, um bosque. Tudo isso traduzido chama-se liberdade, muito embora liberdade não seja apenas isso.

Nas décadas de 1960 e 1970, filmes de faroeste faziam grande sucesso. Homens montados em cavalos viviam as mais bravas aventuras, soltos pelas pradarias, montanhas e vales, sempre a divisar um rio valente ou uma planície sem fim.

Por que razão tais películas exerciam tão mágico efeito sobre os espectadores? Acredito que um dos motivos era exatamente a tal liberdade. Já observaram como a paisagem do Velho Oeste é ampla? Quem não gostaria de estar na pele do herói, solitário ou não, a varar o mundo sem preocupação com horário, tempo bom ou ruim? Mesmo sabendo que nem tudo é bonança na vida do caubói, o público se identifica com a sua liberdade. O caubói é o sujeito mais livre do mundo e só tem na vida três compromissos: manter-se vivo, municiar sua arma e alimentar seu cavalo. O resto vem de sobeja: algumas belas mulheres, o frescor do riacho de águas límpidas, um novo sol a cada dia e, principalmente, a paisagem infinita a perder de vista.

Já escafandristas e astronautas não me remetem à liberdade. São monitorados, controlados, assistidos e dependem de indumentária complicada. Para respirar, necessitam de aparelhos de oxigênio e de alguém que os controle. Na maioria das vezes sua paisagem é monótona e seus movimentos restritos. Não, definitivamente, isso não é liberdade. Só a paisagem a perder de vista faz a alma se encontrar.

O homem construiu sacadas, torres e mirantes, inventou binóculos e lunetas, porque entende que a liberdade entra pelos olhos. Mesmo olhos incapazes de reter a luz flertam, intimamente, com o infinito que traduz a grande libertação, vislumbre do “reino de Deus” que mora dentro de nós.
Um dia, a humanidade descobrirá, por certo, que a tão decantada liberdade só frutifica quando semeada no solo da alma. Quando todo homem aprender essa lição de liberdade, poderá voar “das cristas do Himalaia aos píncaros dos Andes” (como disse Castro Alves) e repetir com Chaplin estas palavras do discurso final de O Grande Ditador:

“Levanta os olhos, Hannah! A alma do homem recebeu asas e finalmente começou a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Levanta os olhos, Hannah! Levanta os olhos!”.

* * *
A experiência da crônica
O texto acima é inédito e faz parte da produção de crônicas do escritor Carlos Vazconcelos. Natural de Tianguá (CE), ele dedica-se à literatura desde a década de 1990, quando cursou letras na Universidade Estadual do Ceará (UECE); atualmente, é Supervisor Regional de Literatura no SESC/CE, onde realiza eventos e ações em torno da escrita. Mestre em Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é autor dos livros “Mundo dos Vivo” (volume de contos de 2003, ganhador dos prêmios Osmundo Pontes de Literatura e Clóvis Rolim de Contos, ambos da Academia Cearense de Letras) e “Os dias roubados” (romance, 2013, que obteve o Prêmio de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará). A estreia como romancista de Vazconcelos recebeu elogios de críticos como Batista de Lima, colunista do Diário do Nordeste. “Essa ficção está comprometida com a realidade. Os ‘Relatos da Sombra’, manuscritos supostamente deixados na cela por um prisioneiro falecido, é genial invenção do autor, para tomar como ponto de partida para sua narrativa. É também uma suposição de que muitos escritos, na verdade, podem ter se perdido em circunstâncias similares”, escreveu Lima, poeta e professor de letras da UECE e Unifor.










UMA DAMA DE TERRA


Pedro Salgueiro 

Jornal O Povo 07/03/2015


No final dos anos 1990 eu viajava bastante para o Rio de Janeiro e São Paulo, visitava os parentes que se desgarraram há décadas do nosso Sertão dos Inhamuns, tentava também publicar meus primeiros livros de contos por editoras maiores, que tivessem um mínimo de distribuição; numa dessas viagens conheci, por indicação do amigo Sânzio de Azevedo, o bibliófilo Bonifácio Câmara, que possuía o maior acervo cearense no Brasil. Amparado pelo coração enorme do conterrâneo logo me tornei seu amigo – não ia ao Rio que não tirasse ao menos uma tarde para ir visitá-lo em seu apartamento abarrotado de livros no bairro do Flamengo.

O gentil Bonifácio sempre tinha uma novidade para o cearense acanhado que aparecia quase todo ano: certo dia me levou ao famoso Sabadoyle, onde me apresentou ao anfitrião e a todos os escritores que por lá se encontravam, depois me pegou pelo braço para que eu assinasse o singular livro de presença, também não se esqueceu de levar meu livrinho de estreia pra mostrar aos frequentadores; determinada tarde me carregou à casa do simpático escritor João Clímaco Bezerra e me fez “conversar” por duas horas com o autor de A Vinha dos Esquecidos, que na época já não escutava direito nem reconhecia mais ninguém; mas surpresa maior mesmo foi quando resolveu me mostrar a varanda atulhada de todas as edições, em diversas línguas, dos livros de Rachel de Queiroz.

Percebendo meu contentamento em folhear aquelas raridades – minha curiosidade em admirar a edição dO Quinze em japonês e não parar de ler as dedicatórias da mais famosa dama de nossas letras para seus amigos escritores –, ele não titubeou em me perguntar (para meu espanto, diga-se) se eu não queria ir fazer uma “visitinha à Rachel”. Tremi na base: desconversei gaguejando, inventei até um falso compromisso. Ele, entendendo meu nervosismo, riu até, e logo me chamou para almoçar, depois descansar um pouco numa rede; em seguida já solicitou um taxi pelo telefone.

Aceitando resignadamente seu “convite”, de súbito me vi em frente ao edifício que trazia na fachada o próprio nome da escritora, em Ipanema; e, com uma baita dor de barriga de puro medo, subi maquinalmente, suando frio – me lembro bem de ter saído do elevador e encontrado a porta aberta, quando entramos na sala ampla, ornada por móveis antigos, mas austera feito uma casa sertaneja. Mal vislumbrei o local, apareceu, com seu vestido florido de mulher do interior, com aquele sorriso largo que parecia pregado no imenso rosto quadrado, a autora de O Quinze, João Miguel, Memorial de Maria Moura e outros clássicos de nossa literatura.

Da conversa que durou quase a tarde inteira me recordo de pouca coisa (tal era meu desassossego), relembro-me apenas de sua imensa gentileza, de seu farto sorriso e de suas infinitas perguntas sobre o nosso interior do Ceará. Queria saber de tudo, se chovia, se fazia calor durante o “b-r-o- bró”, se em junho e julho ainda batia aquele frio danado de madrugada, se o “vento Aracati” continuava soprando à boca da noite, se... De repente, a brisa da praia entrou pela grande janela escancarada para a rua, enchendo a sala (em vez do ácido odor da maresia) de um gostoso cheiro de chuva na terra seca, daquelas primeiras chuvinhas molhando os terreiros.

Saí de lá maravilhado com sua gentileza, mas principalmente com seu interesse quase obsessivo pelo nosso Sertão. Tudo já sabia dele, mas queria confirmar se tudo continuava por lá, do mesmo jeitinho, quando ela voltasse logo, logo à sua querida fazenda Não Me Deixes. Um pouco antes de nos despedirmos ela entrou em seu quarto-escritório (Bonifácio segredou que lá ninguém entrava, somente a velha empregada) e me trouxe uma edição recente, depois vi que estava gentilmente autografada pra mim, dO Quinze. Quase na porta do elevador ainda teve tempo de perguntar ao amigo bibliófilo: “Bonifácio, eu já escrevi sobre o moço?”, no que ele respostou de pronto: “Ainda não, Rachel, mas vou lhe trazer o livro dele que está com o editor Zé Mário Pereira em vias de ser publicado”.

E ainda hoje quando me lembro de nossa saudosa escritora me sobe às narinas um forte cheiro de chuva, mas dessa primeira chuvinha que todo ano acaricia os terreiros do Sertão, despertando a nossa eterna esperança.