UMA DAMA DE TERRA
Pedro Salgueiro
Jornal O Povo 07/03/2015
No final
dos anos 1990 eu viajava bastante para o Rio de Janeiro e São Paulo, visitava
os parentes que se desgarraram há décadas do nosso Sertão dos Inhamuns, tentava
também publicar meus primeiros livros de contos por editoras maiores, que
tivessem um mínimo de distribuição; numa dessas viagens conheci, por indicação
do amigo Sânzio de Azevedo, o bibliófilo Bonifácio Câmara, que possuía o maior
acervo cearense no Brasil. Amparado pelo coração enorme do conterrâneo logo me
tornei seu amigo – não ia ao Rio que não tirasse ao menos uma tarde para ir
visitá-lo em seu apartamento abarrotado de livros no bairro do Flamengo.
O gentil
Bonifácio sempre tinha uma novidade para o cearense acanhado que aparecia quase
todo ano: certo dia me levou ao famoso Sabadoyle, onde me apresentou ao
anfitrião e a todos os escritores que por lá se encontravam, depois me pegou
pelo braço para que eu assinasse o singular livro de presença, também não se
esqueceu de levar meu livrinho de estreia pra mostrar aos frequentadores;
determinada tarde me carregou à casa do simpático escritor João Clímaco Bezerra
e me fez “conversar” por duas horas com o autor de A Vinha dos Esquecidos, que
na época já não escutava direito nem reconhecia mais ninguém; mas surpresa
maior mesmo foi quando resolveu me mostrar a varanda atulhada de todas as
edições, em diversas línguas, dos livros de Rachel de Queiroz.
Percebendo
meu contentamento em folhear aquelas raridades – minha curiosidade em admirar a
edição dO Quinze em japonês e não parar de ler as dedicatórias da mais famosa
dama de nossas letras para seus amigos escritores –, ele não titubeou em me
perguntar (para meu espanto, diga-se) se eu não queria ir fazer uma “visitinha
à Rachel”. Tremi na base: desconversei gaguejando, inventei até um falso
compromisso. Ele, entendendo meu nervosismo, riu até, e logo me chamou para
almoçar, depois descansar um pouco numa rede; em seguida já solicitou um taxi
pelo telefone.
Aceitando
resignadamente seu “convite”, de súbito me vi em frente ao edifício que trazia
na fachada o próprio nome da escritora, em Ipanema; e, com uma baita dor de
barriga de puro medo, subi maquinalmente, suando frio – me lembro bem de ter
saído do elevador e encontrado a porta aberta, quando entramos na sala ampla,
ornada por móveis antigos, mas austera feito uma casa sertaneja. Mal vislumbrei
o local, apareceu, com seu vestido florido de mulher do interior, com aquele
sorriso largo que parecia pregado no imenso rosto quadrado, a autora de O
Quinze, João Miguel, Memorial de Maria Moura e outros clássicos de nossa
literatura.
Da
conversa que durou quase a tarde inteira me recordo de pouca coisa (tal era meu
desassossego), relembro-me apenas de sua imensa gentileza, de seu farto sorriso
e de suas infinitas perguntas sobre o nosso interior do Ceará. Queria saber de
tudo, se chovia, se fazia calor durante o “b-r-o- bró”, se em junho e julho
ainda batia aquele frio danado de madrugada, se o “vento Aracati” continuava
soprando à boca da noite, se... De repente, a brisa da praia entrou pela grande
janela escancarada para a rua, enchendo a sala (em vez do ácido odor da
maresia) de um gostoso cheiro de chuva na terra seca, daquelas primeiras
chuvinhas molhando os terreiros.
Saí de
lá maravilhado com sua gentileza, mas principalmente com seu interesse quase
obsessivo pelo nosso Sertão. Tudo já sabia dele, mas queria confirmar se tudo
continuava por lá, do mesmo jeitinho, quando ela voltasse logo, logo à sua
querida fazenda Não Me Deixes. Um pouco antes de nos despedirmos ela entrou em
seu quarto-escritório (Bonifácio segredou que lá ninguém entrava, somente a
velha empregada) e me trouxe uma edição recente, depois vi que estava
gentilmente autografada pra mim, dO Quinze. Quase na porta do elevador ainda
teve tempo de perguntar ao amigo bibliófilo: “Bonifácio, eu já escrevi sobre o
moço?”, no que ele respostou de pronto: “Ainda não, Rachel, mas vou lhe trazer
o livro dele que está com o editor Zé Mário Pereira em vias de ser publicado”.
E ainda
hoje quando me lembro de nossa saudosa escritora me sobe às narinas um forte
cheiro de chuva, mas dessa primeira chuvinha que todo ano acaricia os terreiros
do Sertão, despertando a nossa eterna esperança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário