quarta-feira, 11 de março de 2015






UMA DAMA DE TERRA


Pedro Salgueiro 

Jornal O Povo 07/03/2015


No final dos anos 1990 eu viajava bastante para o Rio de Janeiro e São Paulo, visitava os parentes que se desgarraram há décadas do nosso Sertão dos Inhamuns, tentava também publicar meus primeiros livros de contos por editoras maiores, que tivessem um mínimo de distribuição; numa dessas viagens conheci, por indicação do amigo Sânzio de Azevedo, o bibliófilo Bonifácio Câmara, que possuía o maior acervo cearense no Brasil. Amparado pelo coração enorme do conterrâneo logo me tornei seu amigo – não ia ao Rio que não tirasse ao menos uma tarde para ir visitá-lo em seu apartamento abarrotado de livros no bairro do Flamengo.

O gentil Bonifácio sempre tinha uma novidade para o cearense acanhado que aparecia quase todo ano: certo dia me levou ao famoso Sabadoyle, onde me apresentou ao anfitrião e a todos os escritores que por lá se encontravam, depois me pegou pelo braço para que eu assinasse o singular livro de presença, também não se esqueceu de levar meu livrinho de estreia pra mostrar aos frequentadores; determinada tarde me carregou à casa do simpático escritor João Clímaco Bezerra e me fez “conversar” por duas horas com o autor de A Vinha dos Esquecidos, que na época já não escutava direito nem reconhecia mais ninguém; mas surpresa maior mesmo foi quando resolveu me mostrar a varanda atulhada de todas as edições, em diversas línguas, dos livros de Rachel de Queiroz.

Percebendo meu contentamento em folhear aquelas raridades – minha curiosidade em admirar a edição dO Quinze em japonês e não parar de ler as dedicatórias da mais famosa dama de nossas letras para seus amigos escritores –, ele não titubeou em me perguntar (para meu espanto, diga-se) se eu não queria ir fazer uma “visitinha à Rachel”. Tremi na base: desconversei gaguejando, inventei até um falso compromisso. Ele, entendendo meu nervosismo, riu até, e logo me chamou para almoçar, depois descansar um pouco numa rede; em seguida já solicitou um taxi pelo telefone.

Aceitando resignadamente seu “convite”, de súbito me vi em frente ao edifício que trazia na fachada o próprio nome da escritora, em Ipanema; e, com uma baita dor de barriga de puro medo, subi maquinalmente, suando frio – me lembro bem de ter saído do elevador e encontrado a porta aberta, quando entramos na sala ampla, ornada por móveis antigos, mas austera feito uma casa sertaneja. Mal vislumbrei o local, apareceu, com seu vestido florido de mulher do interior, com aquele sorriso largo que parecia pregado no imenso rosto quadrado, a autora de O Quinze, João Miguel, Memorial de Maria Moura e outros clássicos de nossa literatura.

Da conversa que durou quase a tarde inteira me recordo de pouca coisa (tal era meu desassossego), relembro-me apenas de sua imensa gentileza, de seu farto sorriso e de suas infinitas perguntas sobre o nosso interior do Ceará. Queria saber de tudo, se chovia, se fazia calor durante o “b-r-o- bró”, se em junho e julho ainda batia aquele frio danado de madrugada, se o “vento Aracati” continuava soprando à boca da noite, se... De repente, a brisa da praia entrou pela grande janela escancarada para a rua, enchendo a sala (em vez do ácido odor da maresia) de um gostoso cheiro de chuva na terra seca, daquelas primeiras chuvinhas molhando os terreiros.

Saí de lá maravilhado com sua gentileza, mas principalmente com seu interesse quase obsessivo pelo nosso Sertão. Tudo já sabia dele, mas queria confirmar se tudo continuava por lá, do mesmo jeitinho, quando ela voltasse logo, logo à sua querida fazenda Não Me Deixes. Um pouco antes de nos despedirmos ela entrou em seu quarto-escritório (Bonifácio segredou que lá ninguém entrava, somente a velha empregada) e me trouxe uma edição recente, depois vi que estava gentilmente autografada pra mim, dO Quinze. Quase na porta do elevador ainda teve tempo de perguntar ao amigo bibliófilo: “Bonifácio, eu já escrevi sobre o moço?”, no que ele respostou de pronto: “Ainda não, Rachel, mas vou lhe trazer o livro dele que está com o editor Zé Mário Pereira em vias de ser publicado”.

E ainda hoje quando me lembro de nossa saudosa escritora me sobe às narinas um forte cheiro de chuva, mas dessa primeira chuvinha que todo ano acaricia os terreiros do Sertão, despertando a nossa eterna esperança.


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