O VELHO POETA
Pedro Salgueiro
Jornal O Povo
21-03-2105
O velho poeta se angustiava com a
falta de leitores, não especificamente leitores de sua própria “obra
literária”, como sempre dizia, dando uma ênfase quase religiosa ao termo; mas
se ressentia da falta de leitores de maneira geral. Quando tocava no assunto –
e essa lamentação cada dia mais fazia parte de suas conversas –, citava de
memória as últimas estatísticas; de sua boca deslizavam dados precisos para
mostrar ao interlocutor que sua queixa não se tratava de uma visão “mesquinha”,
personalista, que apenas desejasse estilar as lamúrias de um escritor gasto,
cansado; na verdade (fazia questão de frisar) não queria justificar seu
fracasso como “escritor de província”; termo que, aliás, detestava, combatia –
diria até que perdia a calma quando o escutava.
O senhor antigo já quase cedeu à
tentação de escrever um romance, desses da moda, com ações ágeis que se passam
impreterivelmente num país estrangeiro. Um famoso escritor de outro estado,
desses que são cativos em bienais e feiras de livros Brasil afora, bem que
falou em palestra para as mocinhas da faculdade de Letras: “Quem insistir em
escrever apenas poemas e contos estará fadado ao fracasso”. Ele saiu confuso do
auditório; triste mas aliviado, se sentindo leve até, afinal do “conselho
literário” do exitoso colega entendera que o, digamos... – procurou os termos
corretos, mais amenos, para não se auto melindrar – ...verdadeiro culpado pelo
seu pouco sucesso na “carreira literária” era propriamente o “gênero” que
ingenuamente escolhera para si.
E nesse misto de decepção e alívio
partiu para organizar uma “nova” carreira literária – desocupou a estante
principal povoada de poetas de todas as partes do mundo e, sem perder tempo, se
dirigiu à mega-livraria do shopping para adquirir o maior número de romances de
última geração, escritos por escrevinhadores nacionais e estrangeiros;
pacientemente organizou um intricado mapa de leitura que o faria dar conta, em
poucos meses, das novidades literárias que ele mesmo andara criticando com
afinco nas últimas décadas.
Cada vez que descobria a idade dos
escritores da moda entrava momentaneamente em depressão, todos meninos que
facilmente seriam seus netos, alguns imberbes ainda; moçoilas com rostos
juvenis, que, com olhos firmes de pura arrogância, lhe olhavam de cada “orelha”
desdobrada. Passou a não ler mais “orelhas”, prefácio, resenhas...
Empanturrou-se de dezenas de livrões de quase quinhentas páginas. Mas, em certa
madrugada, flagrou-se pensando que se empilhasse todos os seus magros
volumezinhos de poemas escritos em quase cinquenta anos não daria um tomo
robusto daqueles; e inevitavelmente pensou: “O que esses jovens têm tanto para
dizer hoje em dia, se mal começaram a viver?”.
Encheu páginas e páginas de
cadernos com infinitas ideias para o seu “novo” romance, alinhavou episódios de
vida, desde a infância feliz, passando pela conturbada adolescência, chegando à
quase senilidade dos dias de hoje, quando tomou então – começava a acreditar
nisso, principalmente nas noites de cansaço, afundado nas pilhas de livrões
modernos – consciência de que não teria mais tempo para escrever um monumento
daqueles, que lhe faltava força; não só física mas mental. Nessas noites ia
dormir angustiado e sonhava com enredos mirabolantes, sem pés nem cabeças;
neles os personagens saiam dos seus alfarrábios recém-escritos e criavam vida,
indo eles mesmos escrever a obra terminal do velho poeta, que – constatava
desolado quando acordava – era ele próprio.
Em certa madrugada de intensa
angústia – havia até pensado em suicídio – dormira por cima da escrivaninha,
com a cara enfiada nos numerosos papéis manuscritos; logo desatou a sonhar
cenas tão vívidas que na manhã seguinte mal acreditava que realmente havia sido
um reles pesadelo: seus personagens, desta vez enfurecidos, desataram a rasgar
livros na sua estante de novidades, não ficando um só volume com páginas
intactas – e o mais incrível: no último quarto do caderno de pautas deixaram
pronto um enredo de tal forma intrincado, que – ele teve convicção – fora, não
escrito pelos seus personagens, mas psicografado pelos mil diabinhos que
povoavam desde a infância os seus sonhos; um enredo tão monstruosamente
complicado que com certeza deixaria a crítica literária ocupada por um século
inteiro.
O velho poeta, e quase novo romancista, pouco tempo
depois sofreu um derrame cerebral, sobrevivendo ainda alguns meses, entre dores
e delírios, antes de ser cremado rapidamente pela família, que parecia temer a
reversão do quadro. Seus livros – os antigos, já que os novos estavam em
pedaços – foram vendidos a um sebo; e seu último caderno de manuscritos foi
enfiado num saco de lixo, levado ao fundo do quintal, onde alimentou uma linda
fogueira.
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