terça-feira, 29 de janeiro de 2013



                                                   
                                                         

Eu não quero ser bonito
Nem ter fama e mais cabelo
Eu não quero ter poder
Eu não quero mais dinheiro

Eu só quero não doer.


   DESCOBERTA DOS DUVIDOSOS ALCES DA CAVERNA DHAZMIIR

O governo do SemiSultão Dhoxrux (1849 a 1868) passou para história como o supremo da monotonia – o próprio SemiSultão retratado como um gordo comedor de manteiga de elefanta. [SemiSultão – tradução aproximada de Kahrzz-ul-Magouir – que significa algo como chefe sem ser na inteireza]. Mas isso só se refere à segunda metade do seu reino. Na primeira aconteceu a sensacional descoberta, na beirada do Mar de Aral, de uma caverna coberta de inscrições rupestres.
Akmal Sabohat, um dos primeiros habitantes de Amhitar a frequentar uma universidade [em Montpellier] a descobriu e destruiu, ao menos simbolicamente. Quando descreveu os belíssimos mamutes, cervos, peixes e alces naquele buraco em Dhazmiir, levou algum tempo para convencer a todos de seu entusiasmo. O Semi-Sultão, a princípio relutante, campeonou a ideia de O Homem Primordial era de Amhitar. Akmal panteonou-se como herói.
Não por muito. O próprio Akmal desconfiou que alguns daqueles animais eram falsos. Mais: que eram cópias não muito benfeitas de desenhos da Revue de Deux Mondes. Passou a inimigo da pátria. O SemiSultão o baniu e Akmal para continuar com a cabeça enterrou-se como médico de uma aldeia miserável na Normandia e nunca mais quis saber de cavernas. Seus adeptos dizem que fora o próprio Dhoxrux que ordenara aquelas pinturas, como factóide para um governo que já se monotonizava. Proibida a princípio, essa versão acabou esquecida por puro tédio.

Paulo Avelino
(de Efemérides do Reino de Amhitar: http://amhitar.blogspot.com.br/)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013


                                           POETAS DE QUINTA

                Ideal Clube. Antônio Galeno, Diretor Cultural da CJG.
          Carlos Vazconcelos, Silas Falcão, Mourão e Benivaldo, no Ideal Clube/2012.
                          Clube Náutico. Silas Falcão, Bernivaldo e Linda Lemos
                                        Gonzaga Mota. Casa de Juvenal Galeno 
                                                   Casa de Juevanl Galeno.
  Sábado, 26/01, após reunião da ACE. Restaurante O Baião -Montese. No centro, Diniz.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013



                                              A SOLIDÃO

Carlos Vazconcelos

A solidão,
Afiada e intermitente,
Manipula a multidão,
Crava-lhe o dente.
Sutil espada,
Atravessa o espaço neutro,
À distância das mil
Irrompe o feltro.
E vai trotando.
Na madrugada erradia,
Encontra corpo,
Dançando na fantasia.




              O HOMEM QUE CIRCUM-PERCORREU O MUNDO

Por Paulo Avelino

Dasha Ulugbek [dizem] começou suas três voltas ao redor do Globo [um evidente exagero, denunciado mais tarde pelo geógrafo soviético Serguei Kovinev] no dia de hoje, no ano [calendário herético] de 1138. Dizem as seis lendas [eram mais, porém a sétima foi considerada subversiva pelo governo do General Chavkat e queimada] que o jovem [doze ou treze anos] Dasha Ulugbek deu o seu primeiro passo e topou com um velho de rugas de canyon e perguntou onde era certa aldeia [há 99 versões do seu nome, todas inconfiáveis].
A resposta Harruzsmachir-Kaj-Bakashtimoor desafiou linguistas até o século XIX. Significa:
- Você não poderá chegar lá, daqui. Ulugbek apenas colocou o primeiro pé adiante do segundo e se deslocou. E pôs o segundo à frente do primeiro, e se deslocou mais. Concluiu que esta era a essência do caminhar: os pés um após o outro, o outro após o um. Cabeça vazia, nada além do puro ir. E descansar sob uma árvore e fugir de bois e pedir comida e levar surras e sobreviver às surras. Perguntava da aldeia. Respondiam:- Você não poderá chegar lá, daqui.
E ele colocava o primeiro pé adiante do segundo. Trinta ou Trezentos anos depois [as versões variam ridiculamente] um velho chegou. Disse que era Dasha Ulugbek, e que o mundo não era infinito e dera voltas a ele. Consideraram-no fantasma. Ou farsa. A Escola Soviética de Geografia, inimiga dos sobrenaturais, apoiou a segunda opinião. Nunca se soube da aldeia - não na versão oficial.
(de Efemérides do Reino de Amhitar: http://amhitar.blogspot.com.br/)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013



                                                      O MAPA
Da decapagem das velhas paredes do casarão, aparecem mapas antigos. Mãos ágeis e indiferentes destroem todos eles. Menos um destes, que sempre se reconstituía.

Do livro O colecionador de dedos
Silas Falcão


                                                      
                
Em lembrança


Carlos Nóbrega


Para onde foram os dias
que um dia estiveram comigo?
Foram à Cochinchina?
Saboeiro? Pra Pasargada?
Para onde vão os dias?

Em que margem de rio
viram cascalho,
pepita de aluvião?
(Oh não me falem em Aqueronte
que eu gosto mesmo é de Amazonas
com suas mães-d’água
de peitos generosos
para a gente mamar)

Onde é o cemitério dos dias?
Onde é que fica a lápide
do 23 de Maio de 2008,
que eu quero mandar um punhado de rosas-loucas
sem dizer porque.



                                              "Olhar Poético"

 

 

Tércia Montenegro para O POVO (15.1)



 Para além da técnica, todo artista é dotado de uma percepção incomum – aquela que faz o escultor pressentir o objeto “guardado” na matéria bruta; a certeza que orienta o equilíbrio de cores na pintura ou indica ao fotógrafo qual cena capturada é única. Chamem de instinto, bênção ou iluminação – não importa o nome; existe essa marca que define e perpassa músicos, atores, bailarinos, poetas... A habilidade de extrair do real uma fatia de beleza que quase ninguém percebe: esse é o olhar poético, transformável e criativo. Na atual literatura cearense, a obra de Carlos Nóbrega é um dos melhores exemplos disso, e o seu mais recente título, Lápis branco (Guaratinguetá: editora Penalux), só confirma as expectativas de quem busca se abismar com bons versos.
            É assim, pela mão do poeta, que enxergamos o gato, animal feito “de dengo, pelo e preguiça”: “Talvez seja bicho de seda/ ou alma andando de quatro/ Pois pisa a Terra e não pesa/ e se evapora em um salto./ É mais mistério que fato,/ direito e avesso de grave,/ E como o mistério/ É visível, /Existe, mas é improvável.” Vemos as carnaubeiras, que “dão asteriscos verdes ao ar ido”, e sabemos que um botão de rosa se contorce, para fazer “origami de si mesmo”. O passeio pela vida, com as pequenas coisas da cidade, luzes e sombras, memórias e tristezas, vem como um sobressalto a cada página – o poeta desnovela as palavras, querendo “não doer”.
            O olhar poético se exercita na travessia entre mundo e linguagem. No caso de Carlos Nóbrega, inclusive, basta uma rápida convivência para notar em seu comportamento cotidiano essa expectativa do sublime, na atenção que dedica a seres e objetos que possa transfigurar em arte. Certa vez, num encontro com vários outros amigos, eu percebi que apenas ele observava a tatuagem de uma desconhecida sentada de costas para nós, no restaurante. O arabesco vertical, impresso entre as omoplatas, parecia a continuação de um penteado – um cabelo convertido em desenho. Carlos me apontou a cena, perguntando se eu achava que a moça tinha consciência daquele efeito estético. Disse que provavelmente não; ela fizera um rabo-de-cavalo displicente. Foi o olhar do poeta que enxergou (e criou) a metamorfose entre pelo e pele. Naquele instante, não interessava a moça, que permaneceu para sempre sem rosto ou identidade. O poeta meditava no arranjo de fios e traços, testando associações possíveis. Depois que o texto despertasse, Carlos Nóbrega devolveria um fragmento de beleza, traduzido e destilado, para que os distraídos percebessem: a arte vive no mundo, mas disfarçada.
            Após Outros poemas, BreviárioÁrvore de manivelas e 8 verbetes, Carlos Nóbrega acrescenta, com Lápis branco, mais um livro à minha estante de favoritos. Nela estão as obras que me socorrem, trazendo claridade quando um dia ameaça acontecer em tom insípido.
Para adquirir o livro:
http://www.editorapenalux.com.br/loja/product_info.php?products_id=85



“Férias”, de Pedro Salgueiro para O Povo

                                                 
(Pedro Salgueiro em férias... outra vez!)
Janeiro, mês de pegar a criançada e sair por aí descobrindo as férias.
Principalmente encontrar um jeito de conciliar o lazer de adultos e crianças. Forçar uma maneira de despregá-los dos games, dos penduricalhos eletrônicos que os acompanham durante o ano inteiro. Reduzir a quase zero o tempo de TV. Uns dias de praia, outros de cinemas e livrarias, depois tentar seguir rumo ao interior para rever primos, tios e avós: manter e solidificar raízes.
Desacelerar o ritmo frenético a que a gurizada foi submetida durante o período letivo passado: aulas, tarefas escolares, esportes, horários regrados para estudo e sono... fazê-los sentir o mundo usando todos os sentidos: olhar passarinhos no campo infelizmente seco, sentir o cheiro do chão após o sereno indeciso em se tornar chuva, descobrir desenhos nas estrelas lá no fundo do quintal, por trás do limoeiro que filtra a luz vinda da cozinha, ou simplesmente conversar muito, dar risadas descompromissadas deste nosso mundinho sem jeito e sua ridícula seriedade.
Desacelerar também o próprio juízo, despregá-lo do trabalho maçante da repartição, das rotinas burrificantes que nos acompanham pelos meses afora; tentar, enfim, se soltar das amarras passadas, penadas, pesadas. Começar um novo regime, ao mesmo tempo em que aumenta sem dó a cervejinha libertadora e o preguiçoso sono reparador, usando as mesmas velhas formulas fatalmente fadadas ao fracasso.
Olhar o tempo, simplesmente, sem pressa; deixar as crianças soltas no terreiro, dando uns gritos de vez em quando para alertá-los sobre as motos e carros. Dar uns gritos de quando em vez para simplesmente acordar a gente mesmo...
Reler Infância, do fundamental Graciliano; saborear Meus Verdes Anos, do delicioso Zé Lins; descobrir (e me espantar) com A Cidade e a Infância, de José Luandino Vieira. Rabiscar uns projetos de contos que faz tempo martelam a cabeça, alinhavar historinhas começadas há anos.
Sonhar em vão que o ano vai demorar a engrenar... que estes míseros dias vão gotejar (devagarinho) com pena de nós.
Ou apenas juntar forças para costurar esta preguiçosa croniquinha de férias


O POVO: 85 anos presente no Ceará I
Raymundo Netto especial para O POVO


Demócrito Rocha/”Antônio Garrido

“(...) É no jornal que o povo encontra o seu pão espiritual de cada dia. O jornal descortina-lhe o mundo, vencendo distâncias. É a lanterna mágica do progresso. É a força propulsora e condutora das massas insatisfeitas, para as grandes reivindicações de seus direitos postergados pela cáfila absorvente dos magnatas de todos os tempos. Quando o povo geme escravo, entorpecido pelas algemas do cativeiro, indiferente à violência paralisante do grilhão, o jornal é o sangue novo, forte e generoso a nutrir-lhe as células dormentes, a despertar-lhe os neurônios amortecidos, a ondear-lhe, nas veias, a torrente vigorosa e enérgica da revolta. O povo precisa de mais gritos que o estimulem, de mais vozes que lhe falem ao sentimento. Eis por que surgimos...”

 Foi assim que, em 7 de janeiro de 1928, surgia O POVO, a mais tradicional, democrática e conceituada folha do Ceará, na voz corajosa e ousada de Demócrito Rocha, seu sonhador-mor. Como era bem de Demócrito, tanto o nome do jornal como sua logo foram escolhidos por meio de concurso. Ele gostava de ouvir a “voz do povo”, e, durante o período que dirigiu o jornal, escrevia, fazia enquetes, criava outros concursos, provocava o leitor, ao mesmo tempo em que liderava o “banco da Opinião Pública”, um dos integrantes das “sociedades dos banquistas” — pequenas agremiações que nasciam em torno dos bancos da praça do Ferreira, reunindo membros de diversos segmentos da sociedade (jornalistas, poetas, comerciantes, professores, políticos, profissionais liberais etc.) a discutir de um tudo: das coisas mais importantes ao trivial anedotário.
Demócrito teve origem humilde, cedo ficou órfão e teve que trabalhar duro (aos 12, era operário), fortalecendo-se em caráter, idealismo e senso de justiça e liberdade. Assim, não temia o debate, ao contrário, se alimentava da polêmica, tinha gosto pela interatividade, pela participação popular, pela opinião de outrem.
As primeiras edições de O POVO saíram de uma impressora de segunda mão, na sede alugada no entorno da praça dos Leões. Já no segundo ano de jornal, Demócrito, também poeta e notável cronista, lançou o suplemento literário Maracajá, veículo que revelou os nossos autores modernistas (Rachel de Queiroz, Jáder de Carvalho, Mozart Firmeza, Mário de Andrade do Norte, Heitor Marçal, Edigar de Alencar, Suzana de Alencar Guimarães, Júlio Maciel e o próprio Demócrito, sob o pseudônimo de “Antônio Garrido”, dentre outros) para todo Brasil, numa época onde isso dificilmente aconteceria (alguns dos textos foram reproduzidos na Revista de Antropofagia de São Paulo, e há matérias sobre o Maracajá em O Globo, do Rio de Janeiro, e no Diário da Tarde, de Curitiba).
Justamente no primeiro aniversário de O POVO, em 7 de janeiro de 1929, Demócrito presentearia seus leitores com “O rio Jaguaribe é uma artéria aberta”, poema que o consagrou, sendo um dos mais representativos do modernismo cearense[1]. Apaixonado pelas palavras, mesmo quando extinto o Maracajá, O POVO continuou durante toda a sua existência, até hoje, sendo a grande janela da literatura, acolhendo escritores, como Rachel de Queiroz, Moreira Campos, João Jacques, Milton Dias, Ciro Colares, Airton Monte, Audifax Rios, Ana Miranda, Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro, Jorge Pieiro, dentre nós outros e eteceteras. Também ele foi o criador do título e do sistema eleitoral do “Príncipe dos Poetas Cearenses”, além de promover concursos de versos na rádio PRE-9, de João Dummar.
Li, há mais de 20 anos, um livro de Daniel Carneiro Job[2] que nos conta algumas histórias de Demócrito, dentre elas, a de uma emboscada no centro da cidade, em 1927, quando por ordem do presidente Moreira da Rocha, 12 policiais o encurralaram e deram-lhe murros, pontapés e golpes de rebenques, afastando os populares, indignados diante da covardia, com ameaça de revólveres. Não bastasse, arrastaram-no, sangrando, a Photo Salles, na praça do Ferreira, para tirar uma “prova da eficiência da lição”... O jornalista, com 39 anos, foi levado nos braços do povo para sua casa, onde até a madrugada, diversas personalidades, amigos, representantes de entidades e/ou partidos políticos, além de professores e estudantes de odontologia (ele era cirurgião-dentista) uniram-se em oratórias e em vigília ao seu bravo porta-voz. Ora, em 1922, alguns anos antes, em represália ao seu apoio ao comitê de Nilo Peçanha e J.J. Seabra, recebeu notificação de transferência (atuava como telegrafista, à época) de Fortaleza ao Mato Grosso, o que só não aconteceu devido à intervenção de D. Manuel e Antônio Sales.
Da mesma forma, perseguido pela polícia do presidente do Estado, foi ele, em 8 de outubro de 1930, a anunciar no Palacete Ceará (prédio da Caixa Econômica do Centro) a vitória da Revolução e a deposição do presidente Matos Peixoto, o “dançarino”, sendo levado nos braços do povo para o coreto da praça onde discursou sob aplausos efusivos: “Como um tubo de matéria fecal jogada ao monturo, caiu o governo podre que infelicitava o Ceará!”, bradava.[3]Em 2013, o jornal O POVO aniversaria: 85 anos, dia a dia, de histórias do Ceará, o seu maior acervo jornalístico, seja na cultura, na arte, na política, na economia, nos esportes, na ciência e em todas as demais áreas, além de consolidar o seu papel de grande prestador de serviços ao povo cearense.
Também em 2013, um marco a ser lembrado: 70 anos sem Demócrito Rocha. O Ceará ainda há de fazer justiça a esse nome. Mais sobre ele e O POVO, em 15 dias...


[1] Muitas das afirmações literárias neste texto são do pesquisador Sânzio de Azevedo, e podem ser encontradas em O Modernismo na Poesia Cearense, das Edições Demócrito Rocha.
[2] Daniel Carneiro Job foi jornalista de O POVO. O livro a que me refiro é A Praça do Ferreira (1992), atualmente esgotado.
[3] Demócrito Rocha, de Cleto Pontes, da coleção “Terra Bárbara”, das Edições Demócrito Rocha.

Quando o Amor é de Graça XXI: Crônica Epistolar
Raymundo Netto especial para O POVO

Para D. Lúcia Dummar


Outubro de 2011.
Deixado um apartamento amarelo, abri a porta do quarto da meninice na casa paterna. O seu bafio me tomou o rosto, na tenção de imprimir-lhe o sorriso fácil da ingenuidade, ao tempo que apontava-me o pó da ausência de tantos anos, de uma história, dizia ressentido, adormecida.
Não me suportava aquele quarto: escuro, quente, sujo e profundamente triste, porém tão cheio de mim a assustar. Olhava à porta, sentia-me 20 anos mais jovem, assistindo meus pais 20 anos mais velhos. A surpresa de um futuro inesperado a todos. A ausência devorando tudo.
Deitado na cama, desconhecia aquele quarto, mesmo sendo ele tão fiel de minha memória. Não havia irmãos, nem redes penduradas, nada do velho beliche, menos ainda as risadas e falas excessivas de éramos seis.
No canto do quarto, vi um menino magro, chorando com medo do escuro; desiludia-se e seguia em frente somente pela fé própria de acrobatas e trapezistas, crente apenas que um dia, no absoluto silêncio, um ser de nada, com corpo coberto de estrelas e língua de fogo, cheirou o pó universal, e na quarta trombeta os lobos cuspiram o sol e a lua, enquanto crocodilos se desmanchavam em água. De cada carreirinha de pó, soprava um novo planeta com suas luas e lendas. Pintou com as tintas de seu engenho um mundo azul, mais aquário do que zôo, e, ao murmurar no ouvido do infinito o único “sim”, esse lhe bastou para que a história toda lhe tivesse algum sentido.
O menino me encarava a perguntar o que eu tinha feito com ele; por que eu havia brincado com a sua vida... Dei-lhe as costas e dormi um sono sem sonhos.

Janeiro de 2013.
Sábado. Manhã quente. De volta ao apartamento amarelo, em paredes nuas, na busca dos últimos largados, encaixados à sala margeada por restos de gavetas, contas vencidas, pastas empoeiradas, revistas nunca lidas, aparelhos nunca consertados, enfim, a escória de uma vida.
Tudo aquilo que durante mais de 30 anos guardei com cuidado em armários, levando e trazendo para cima e para baixo, ali, em caixas emprestadas, amontoadas, me pareceram tão sem importância. Em sacos, cartas e cartões enviados e recebidos, máquinas de relógios, óculos velhos, garrafas e latas antigas, lembranças esquecidas. Da vida, dizem com uma razão de decreto, nada se leva!
Sentado a esperar o caminhão da mudança, ouvia no silêncio que passava por mim, as memórias da casa. Outra, dentre outras não menos dura, despedida — “a vida é o exercício de perder”.
Na minha última morada, havia uma menina de uns seis anos, coleguinha de minhas filhas. Seus pais não tinham boa condição financeira e estavam sempre com o aluguel atrasado. A menina, muito pequenina e magrinha, tinha os olhos grandes e brilhantes. Vez ou outra pedia à mãe que a deixasse em nossa casa, onde compartilhava da amizade e dos inúmeros brinquedos do quarto das crianças. Ela mesma, em sua casa, pouco tinha.
Um dia, veio se despedir: iriam para outra casa — foram colocados para fora do imóvel da vila. Ela e o irmão mais velho subiram à carroceria do caminhão que os conduziria ao novo lar. Fiquei na rua assistindo a sua partida. Inda hoje não esqueço aquela menina, em meio aos poucos bens da família, em pé, encostada ao colchão do casal, nos braços uma boneca, presente de minhas filhas. Sorria e acenava lentamente para nós, com seus olhos grandes, desta vez ao invés do brilho, uma completa escuridão de incertezas.
Desse pensamento, lembrei-me que ao me mudar para nova moradia, gostava de saber-lhe a história, algo sobre os antigos moradores, o que faziam, porque saíram, e coisas assim. Possível fosse, “limpava a casa”, pintava de cores vivas, enchia de lâmpadas, abria janelas, a enfeitava, a alegrava, afinal ela, de então, acolheria as minhas meninas.
Hoje, pedi desculpa àquele apartamento por deixá-lo de herança uma história triste. Contudo, no momento do adeus final — gosto de rituais —, antes de passar-lhe a chave, lancei, como último consolo, a certeza de que, de fato, tudo que começa está fadado a um final, mas certamente isso não funciona para o que é essencial e verdadeiro. Essas coisas podem mudar de cara ou de cor, até de lugar, mas perduram e nos acompanham a vida inteira.