quinta-feira, 24 de janeiro de 2013


                                              "Olhar Poético"

 

 

Tércia Montenegro para O POVO (15.1)



 Para além da técnica, todo artista é dotado de uma percepção incomum – aquela que faz o escultor pressentir o objeto “guardado” na matéria bruta; a certeza que orienta o equilíbrio de cores na pintura ou indica ao fotógrafo qual cena capturada é única. Chamem de instinto, bênção ou iluminação – não importa o nome; existe essa marca que define e perpassa músicos, atores, bailarinos, poetas... A habilidade de extrair do real uma fatia de beleza que quase ninguém percebe: esse é o olhar poético, transformável e criativo. Na atual literatura cearense, a obra de Carlos Nóbrega é um dos melhores exemplos disso, e o seu mais recente título, Lápis branco (Guaratinguetá: editora Penalux), só confirma as expectativas de quem busca se abismar com bons versos.
            É assim, pela mão do poeta, que enxergamos o gato, animal feito “de dengo, pelo e preguiça”: “Talvez seja bicho de seda/ ou alma andando de quatro/ Pois pisa a Terra e não pesa/ e se evapora em um salto./ É mais mistério que fato,/ direito e avesso de grave,/ E como o mistério/ É visível, /Existe, mas é improvável.” Vemos as carnaubeiras, que “dão asteriscos verdes ao ar ido”, e sabemos que um botão de rosa se contorce, para fazer “origami de si mesmo”. O passeio pela vida, com as pequenas coisas da cidade, luzes e sombras, memórias e tristezas, vem como um sobressalto a cada página – o poeta desnovela as palavras, querendo “não doer”.
            O olhar poético se exercita na travessia entre mundo e linguagem. No caso de Carlos Nóbrega, inclusive, basta uma rápida convivência para notar em seu comportamento cotidiano essa expectativa do sublime, na atenção que dedica a seres e objetos que possa transfigurar em arte. Certa vez, num encontro com vários outros amigos, eu percebi que apenas ele observava a tatuagem de uma desconhecida sentada de costas para nós, no restaurante. O arabesco vertical, impresso entre as omoplatas, parecia a continuação de um penteado – um cabelo convertido em desenho. Carlos me apontou a cena, perguntando se eu achava que a moça tinha consciência daquele efeito estético. Disse que provavelmente não; ela fizera um rabo-de-cavalo displicente. Foi o olhar do poeta que enxergou (e criou) a metamorfose entre pelo e pele. Naquele instante, não interessava a moça, que permaneceu para sempre sem rosto ou identidade. O poeta meditava no arranjo de fios e traços, testando associações possíveis. Depois que o texto despertasse, Carlos Nóbrega devolveria um fragmento de beleza, traduzido e destilado, para que os distraídos percebessem: a arte vive no mundo, mas disfarçada.
            Após Outros poemas, BreviárioÁrvore de manivelas e 8 verbetes, Carlos Nóbrega acrescenta, com Lápis branco, mais um livro à minha estante de favoritos. Nela estão as obras que me socorrem, trazendo claridade quando um dia ameaça acontecer em tom insípido.
Para adquirir o livro:
http://www.editorapenalux.com.br/loja/product_info.php?products_id=85


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