domingo, 9 de setembro de 2012

O RAPSODO MANUEL BULCÃO (CRÔNICA DE ANA MIRANDA)



         Coisa triste é perder um amigo. Ainda mais, quando o amigo é jovem. E mais ainda, quando ainda tem muita coisa para escrever. Perdemos, o Ceará perdeu, o filósofo cientificista, se posso intitulá-lo assim, Manuel Soares Bulcão Neto. Quase no dia de seu aniversário, quando completara 49 anos. Ele se dedicava a “estudos críticos sobre questões filosóficas fundamentais no mundo contemporâneo, sobretudo ao que tange às implicações sociopolíticas dos avanços atuais da ciência”, conforme palavras que constam na orelha de um dos seus livros. E me fazia lembrar um pouco Augusto dos Anjos e Baudelaire, pela visão niilista, pessimista, mas apaixonada, pela vida, pelas seitas cientificistas, era um iluminista que acreditava, todavia, que nem dentro nem fora da ciência há libertação ou redenção. E escrevia com a fé desses maravilhosos poetas. Sem a certeza da verdade de seus preceitos sustentados apenas pela incerteza que faz parte do conhecimento: “O princípio fundamental de que tudo é incerto, inclusive esta afirmação”. A grande fé.


         Nesse sentido, era religioso. E revirava as lamas, os fantasmas, as sombras, a escravidão, as guerras, o racismo, a dor da consciência, com coragem para enfrentar a “atmosfera rarefeita de pesadelo” que envolve alguns de seus temas, e que o fazia “respirar com dificuldade e até nausear”, conforme suas próprias palavras. Uma obra que, segundo o professor Diatahy B. de Menezes, pode ser reconhecida também pelo “quanto de emoção, quanto de energia criativa, quanto de labor e quanto de tempo precioso subtraído do legítimo direito ao lazer e às vezes com o sacrifício da própria saúde” guardava em si. Matei-me de escrever, costumam dizer os escritores. Muitos, sem suportar a pressão da lucidez, da consciência, da razão e da sensibilidade, se entregaram ao álcool, ao absinto, ao tabaco ou às madrugadas insones. Manuel parece ter entregue a sua própria vida para suportar sua obra, vida que todavia continua a existir por meio de seus pensamentos. Refugiava-se na sua sagrada família, em seus amores, amigos, em conversas longas, cultas, da mais elevada estirpe de conversadores. Ficaram seus livros.


         São livros inquietantes, maravilhosos, profundos, com o humor da inteligência abrasiva que tanto iluminava aqueles seus olhos grandes, verdes e bonitos. Os títulos de seus livros de ensaios são bem sugestivos sobre o conteúdo: A esquisitice do óbvio, Sombras do iluminismo e A eloquência do ódio. Há um quarto livro, que já foi publicado virtualmente e espera o papel e o velho prelo, única forma de eternizar as palavras. Todos com uma linguagem ao mesmo tempo científica, extremamente erudita, e qualidades inerentes à literatura. Esses livros e seus artigos e crônicas circulavam em jornais, em sites e blogues, principalmente do e-group Ciencialist, com cujos participantes ele travava debates esclarecedores e ardentes. Tinha leitores e fãs pelo Brasil todo.


        Escrevia também contos, e esfalfava-se num romance com traços memorialísticos, que tive a ocasião de ler, de discutir com ele sobre a concepção e a linguagem. E escrevia poemas muito bonitos, fortes, dentro de uma tradição familiar: um dia me mandou o livro de poesias de seu avô. Ditou, no leito de morte, um último poema, que soa às balalaicas de Maiakovski, para sua irmã, sob os olhos sentidos e fortes da mãe. Chama-se “Quem ri por último”, e aí vai, não como um epitáfio desta crônica, mas como uma ode aos que sabem sorrir.


Zé Gaiatin’
Ria, ria, ria!
Mas sua risadaria
Não era sinal de alegria.

Como disse Frejat,
Era sintoma de desespero.
Autodestrutivo e farrista
Nosso cômico trágico Mr. ri.

Até piada fazia
Do seu dissoluto devir.

Aos que perguntavam
“Por que não dá um tempo
Para de vez em quando parar”,
Feito sátiro respondia:

“Saúde — eh eh eh — é
Para se gastar”.

Certo dia,
Num fundo de UTI,
Sentindo dor excruciante,
Calafrio e agonia,
Então percebeu
Pelas frestas de seu biombo
Intensos raios azuis.

As nuvens se dissipando
E uma voz alta e soante:
“Oh, filho, o que antes dizias?
Saúde é para se gastar?
Ah Ah Ah Ah Ah!”

          

 (Crônica publicada na edição de 09 de Setembro de 2012 do Jornal O POVO)         

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