quarta-feira, 29 de junho de 2011


                                         O jogo de damas

Pedro Salgueiro

Há cento e trinta anos jogava aquela partida; os parceiros se revezavam até sumirem de vez; os filhos e netos os sucediam e tornavam a envelhecer, enquanto ele permanecia ao pé do balcão, pelo lado de dentro: somente ele sentado – o tilintar dos dedos da mão esquerda continuava a fazer sulcos na madeira: os parceiros teimavam em desaparecer.
Na madrugada em que vieram me avisar que ele jogava à luz de candeeiro na mesma mercearia virada para o nascente, no mercado, eu comecei a chorar e rezei três terços e acendi duas velas em cada canto da sala; não dormi a madrugada inteira, sem coragem de ir vê-lo;  a rua deserta, os cães ladrando insistentes, até os grilos pararam...
...eu pequenino e fugia da oficina de meu pai e maquinalmente corria à mercearia do avô, onde já divisa, de longe, as latas de bombons enferrujadas, e nunca as vimos por dentro, é um mistério que estamos levando para o túmulo... o tac-tac das pedras no tabuleiro de vidro nos invadia os ouvidos e nos atraia pra lá.
Disfarçados, fingíamos nem ligar, sentados a um canto. E apenas um mundo girava em seu eixo naquela tarde morta em que os únicos ruídos eram o trovejar das moscas no saco de açúcar e o arrastar das pedras no vidro.
O silencio doía. Comentários, só os dele, irritado com alguma demora do adversário – cantava às vezes uma musiquinha insistente, quando ganhava folgado: “– caboclo, caboclo... ô caboclo perigoso!” ou insistia por horas na mesma palavra, até o limite da exaustão: “– mas homem, mas homem, mas homem...”
Madrugávamos com o reco-teco das pedras no tabuleiro da cabeça, o começo incisivo, a vagareza do meio, rumando para o final nervoso de horas depois; no resto da tarde, imitava-se com a dama riscada na areia e nos enraivecíamos por as pedras de cacos de telha não chiarem no tabuleiro do chão...
... e o vizinho contava de novo que o viram jogar, cantarolando a mesma palavra a madrugada inteira, o bater de pedras invadindo o mercado e assustando quem passava desligado pelas calçadas àquela hora da noite.
Acendi mais uma vela, pensei em quebrar a dama empoeirada e não tive coragem... ela estava gravada, fazia tempo, na lembrança; abandonara para sempre o baú velho em que fora esquecida. Perseguia-me. Agora o bisavô do meu vizinho vinha insistir que o deixassem descansar, que parassem com aquele jogo a noite toda, sem sossego.
...decidi abrir o armário antigo, há décadas fechado. Jogaria o tabuleiro no cacimbão ou quebraria a marteladas, contudo...
...abri de chofre a tampa e, entre casas de aranha e poeira, a jogada já não era a mesma da noite passada; movi a minha pedra, fechei o armário num supetão, rezei meu terço, acendi as velas...

   (Do livro O Cravo Roxo do Diabo, o conto fantástico no Ceará)

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