De Sabão e Areia
Meu céu era ferro, naquele momento... E só.
Cilindros, bases, confusão de conexões... Chassi recoberto de lama petrificada.
De ferro tinha que ser meu ânimo para cumprir a tarefa, mas... Tarefas estão aí, meu caro; cumpre-as quem delas precisa.
Pra começar, presilha e gaxeta é coisa besta, mas necessário faz-se um exame prévio antes de arrancar qualquer parafuso mais incabuloso... A boa observação, por vezes, economiza preciosos minutos de energia, coisas que nós mecânicos – de uma e de outra – pouco dispomos numa despropositada manhã de segunda-feira.
Nem sempre o cuidado do olho detecta o caminho interno do defeito. Aí, moço, é respirar fundo e principiar desde fora... Por onde, evidentemente, tudo se começa. Engatar freio de mão, empurrar o jacaré, sacar pneus, despinçar pastilhas, meter fora o disco de freio... Depois é prensar-se com o rolimã entre o cimento e o teto de aço. Trabalho mesmo começa é logo depois, desatarraxando as oito sapatas de sustentação das juntas homocinéticas. Grande desafio de espírito, principalmente depois de uma domingueira envenenada. E quando então o parafuso teima em não dar folga? Naquela manhã, abafada de luz, me lembrava dos filmes de kung fu, do treinamento dos chineses pra pegar pressão. Sujeitinho franzino, mas no final dos exercícios virava artista capaz de esfarelar – de uma única lapada – uma pilastra dessas, dessa oficina de merda. Precisão e força, moço... Tudo concentrado ali, nas falanges dos dedos. Vai! Vaai... E o satanás não ia! Ô parafuso abençoado! Nem um chio! E olha que se afobação enricasse, profissão mais concorrida do mundo seria a nossa. Quando o juízo rodopia não adianta continuar. Um cafezinho cai bem, mas aí tomava e olhava o cartaz daquela loura na parede, com aquela garupa toda empinada em minha direção, desfazendo-se de minha luta. “Olha aí bestão, essa aqui tu nunca vai montar!” Lembrei-me da nega do dia anterior. Que é que há? Vá lá... Pelo menos estava ali, sob minhas posses... Esse do papel... Rabo de papel! Que serventia me tem? Muito diferente é rebolar com um corpo quente, de carne... Colocá-lo sob domínio, em poder dessa mão aqui, ó! Venha!
Pois bem, as sapatas quando encasquetam!... Mas já havia resolvido, por bem ou por mal, o resto da cachaça iria embora! Encaixei a angulação correta do antebraço e nem apliquei a maior das forças para o primeiro parafuso apitar. Viva! Lembrei do chinês fazendo apoio de frente com o polegar e o indicador... O mestre escanchado em sua cacunda. E me ri. É que se um parafuso assim me dá esse trabalho, moço, não vou pro seguinte enquanto não amolecer o bichinho e, pode ter certeza, mais cedo ou mais tarde o danado se rende nem que pra isso me arrebente junto com ele. Depois de afrouxada as bases, o feixe de molas cede. Mais um pequeno golpe de chave e eis o amortecedor em minhas mãos. A essa altura o suor escorria em caldas por baixo da Hilux... Duvidassem e pensariam que eu teria arriado o radiador. Uma rápida vistoria nas buchas e... Veja bem amigo, qual a diferença minha para o médico? O carvão... E só! O carro é ver o corpo humano. Fluidos, cabos e amortecedores são o quê, além de sangue, nervos e cartilagens? Aqui já te mostro essa junta homocinética... Vê os rolamentos? Tá próximo ou não de uma artrose? Não é a rótula de um joelho? As buchas das sapatas... Completamente desgastadas! Daí para estourar um amortecedor é questão de tempo. Depois me vem o muquirana do proprietário achar que temos tramóia com casas de peças só porque falo pra trocar as buchas todas! O tal não entende nada de conjunto e se acha!
Naquele dia é porque tava queimando ruim. Não era para ter vindo, sabe como é, o cara quando é bom no que faz o patrão considera, sabe que o sistema da gente em dia de segunda-feira rende dez, vinte por cento... E olhe lá. Mas vim... Fiquei escornado ali naquele cantinho esperando o mundo acabar. Aí me chega um cliente vip e o patrão não costuma alisar quando se trata de agradar gente desse tipo. Média por cima de média, não sei se me entende. Eu que tava semimorto tive por fina força de levantar o pé da cova pra deixar de ser otário.
Cinco horas e meia de serviço pegado! Cismei com a gata da parede. Só se rindo de mim com essa cinturinha que dá pra abarcar assim ó... Com minhas duas mãos. Ou tava doido, ou ouvia a fala de deboche de sua voz gozosa. “Trabalha jumento! Vai, trabalha!” Não reclamo, mas a vida bem que poderia levar um pouquinho de graxa, não acha?
Ao final inspeciono minuciosamente cada peça. Mecânico tem que ter cabeça boa, moço. Vai que ele esquece de lubrificar algo ou deixa de voltear o parafuso um tantinho mais... É o tal médico que esquece linha e tesoura na barriga do paciente!
Serviço terminado, o negrume do dia que escorre pelo ralo só sai na base do sabão com areia. E a cachaça? Você me pergunta. Nem vestígio!
Dia seguinte, não... Sou homem pra qualquer serviço.
Brennand de Sousa
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