quarta-feira, 9 de março de 2011

                                 “A arte imita a natureza”

Por Bernivaldo Carneiro

Tempos em que Santa Rosa (depois Jaguaribara) ainda não se emancipara e o outro era distrito de Limoeiro do Norte; os dois eram territórios contíguos. Hoje, quando a represa do Castanhão separa suas sedes municipais em mais de cem quilômetros rodoviários (em linha reta não monta 70), apenas se tocam lá na divisa que ambos fazem com Morada Nova. Enfim, dois municípios, duas histórias e muitos pontos em comum.
Encravados na mesma Microrregião do baixo Jaguaribe, enquanto um se estende à esquerda do majestoso vale da principal artéria hídrica do Ceará; o outro se espalha à sua direita. Mas nada que reprima as coincidências que há em suas origens. Movido pela fé católica, um dado fazendeiro lá e outro cá, cada um ao seu tempo, doa parte de suas terras à igreja e ergue uma capela em cujo entorno levanta-se uma aldeia que toma corpo e prospera. Assim nascem para o mundo os municípios que hoje respondem pelos nomes de Jaguaretama e Alto Santo. Aquele à margem esquerda do Rio do Sangue; este à direita do Rio Figueiredo. Dois caudalosos tributários do curso d’água que num passado não muito remoto foi o maior rio seco do Mundo. Ambos (como diria o poeta alto-santense), “Transbordando de contentamento o coração de quantos, habitam as suas margens”. Isso, não sem antes as tais circunscrições territoriais receberem vários e distintos batismos: Riacho das Pedras, Riacho do Sangue, Riachuelo, Frade e, finalmente Jaguaretama; Utuva, Alto dos Bodes, Alto da Viúva, Alto Santo da Viúva ou simplesmente Alto Santo.
Dois municípios também irmanados pela solidariedade. Quando sobrou água e faltou terra a Jaguaribara para compor o novo município, Jaguaretama e Alto Santo não tergiversaram em se associarem a Morada Nova para juntos doarem parte de seus territórios e assim compensar o que submergiriam as águas do Castanhão. Dois municípios que, dentre outras coincidências, também têm em comum o seu folclore. E neste viés de raciocínio, o espaço me impõe citar, e de passagem, apenas uma lenda de cada. Consta que ao plantar sua Cruz no aglomerado urbano de Frade, o Frei Vidal fora apedrejado e expulso dali. Não sem antes rogar uma praga ao município: “Esta terra há de crescer para baixo como rabo de cavalo. O vale do Jaguaribe virará um braço de mar e o local da Igreja será cama de baleia”. Não são poucos os conterrâneos que veem na Barragem do Castanhão e no completo afogamento da cidade de Jaguaribara, a materialização daquele vaticínio soprado em tom de maus augúrios. Por outro lado, comentários dão conta de que, atendendo determinação do Vaticano (tudo leva a crer que à época o pontificado pertencia a Pio IX), dois padres retiraram do cemitério de Alto da Viúva um “corpo santo”. Daí o topônimo Alto Santo da Viúva e depois apenas Alto Santo.      
Enfim: dois férteis celeiros na produção de denodados filhos que têm se destacado, nos mais diferentes segmentos sociais: Política, religião, letras e artes em geral. E por falar em letras... Bem, se de fato “A arte imita a natureza” como diria Aristóteles, deixo momentaneamente o criador de lado para me ocupar da criatura.
Três anos e um mês é o tempo que separa o meu do seu natalício. Quanto ao espaço... Bom, desse já tratei antes e não pretendo ser redundante. Igualmente de origem humilde, nasci no Sítio Santa Cruz olfatando os odores campestres e cresci assimilando o que de bom o meio rural dos anos 1950 proporcionava aos seus filhos. Quanto ao amigo Nicodemos, tenhamos em mente o trecho a seguir transcrito de sua autobiografia e veremos que com ele as coisas não foram muito diferentes: “Nasci... mais precisamente no Sítio Papa à beira de uma lagoa, rodeado de árvores, pássaros e riachos... Onde o sopro da brisa recendia o cheiro agradável dos aguapés que se estendiam elegante e confortavelmente na lagoa... Do quintal ouvia-se o canto da seriema, mavioso canto que, ainda hoje, embevece os meus ouvidos de poesia”.
Pois bem, mas se meus feitos ainda não fundamentam o mérito reivindicatório de um lugar ao lado dos conterrâneos que se deram à literatura (não escondo que minha vontade é boa e só aspiro às virtudes); por outro lado não abro mão de uma honrosa colocação do gênero para o companheiro Nicodemos. Ele que é confessadamente “grato ao pequeno-grande município que gerou sua vida e o alimentou num seio farto e generoso”. Ele que já despertou para o mundo, não só com a essência da poesia, mas também com o dom da prosa. Haja vista, por exemplo, Obstinação Sertaneja. Mais que uma metáfora da luta de um povo, Obstinação Sertaneja é uma rica e instrutiva monografia sobre o município de Alto Santo; escrita de forma escorreita e com todo o verniz do estilo que tão bem caracteriza o autor. Seu passaporte à ALMECE — Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará, que depois de três anos dormitando no fundo de uma gaveta é convertida em livro. Um livro que será levado ao público neste, 30 de maio de 2008 na cidade de Alto Santo. Um lançamento que por certo abrilhantará ainda mais os festejos que celebram o meio século de emancipação política do município, a ser completado em primeiro de junho de 2008. “A cidade é bem nova, mas o lugar é muito antigo, antigo até demais” — dizem os historiadores.
Mas em se tratando de Nicodemos, nunca é demais ressaltar minha honra de ser seu amigo e companheiro de trabalho. E dizer da satisfação e do orgulho que tenho de, juntamente com ele, compartilhar assento em uma Arcádia cujas portas me foram abertas por suas generosas mãos. Enfim, um bom caráter. “Fala mansa e especial acento aristocrático nos modos, Nicodemos tem, em gérmen, o altruísmo dos grandes homens” — escrevi em minha monografia à ALMECE — no que sua modéstia assim rebateu nesta que é uma das dez estrofes com que me presenteou acerca do referenciado trabalho:
Na referência ao meu nome
O amigo exagerou
Não tenho aristocracia
Sou mero propagador
Das letras de meu país
E um “cabôco” sonhador
“Toda cidade está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado”. Citei aqui este ensinamento de Maquiavel em O Príncipe para ressaltar as atitudes de Nicodemos: jamais inconsistentes com sua índole humanitária. Mesmo quando a pouca idade poderia lhe suavizar os pulsos ele representou seu povo na Câmara municipal de Alto Santo sem se curvar às espúrias vontades dos poderosos. Uma altivez que só ampliou ainda mais sua bonita história de luta em prol dos hiposuficientes. Não é, pois, em vão que ele ainda hoje goza da estima pública de sua gente.
Parabéns, Alto Santo por seus cinquenta anos de vida e pelo filho que tanto orgulho dá a essa pequena, porém, grandiosa fração da geografia cearense. Parabéns, Nicodemos por sua “Obstinação Sertaneja” com os meus melhores votos de bons êxitos. Que a aceitação por parte do público e da crítica possa suplantar o sucesso que são: Alto Santo de Ontem e de Hoje e Sonho e Emoções — as suas duas primeiras obras editadas.
E finalizo dizendo de minha gratidão pelo importante papel que o amigo tem desempenhado como meu padrinho literário e deixando-os (criador e criatura) com esse entendimento de Sartre: “O que importa não é saber o que fizemos de nós e sim o que fizemos com o que quiseram fazer conosco”.

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