terça-feira, 13 de março de 2012

(Moreira Campos e Dna. Zezé)


MOREIRA CAMPOS

Pedro Salgueiro para O POVO

Conheci primeiro Moreira Campos de livros, na primeira metade dos anos 80 do século XX; quase uma década depois é que fui ter o primeiro contato pessoal com ele. Eu ainda fazia Agronomia na Universidade Federal do Ceará e morava na Residência Estudantil ali na Pracinha da Gentilândia; com o tempo fui fazendo amizade com estudantes de Letras e aumentando meu gosto pela literatura (apesar de adorar livros desde pequeno). E foi numa das minhas andanças pelos sebos atrás de Gabriel Márquez, Júlio Cortazar e Juan Rulfo (um livro novo na época era um sonho impossível, lia-se muito emprestado de amigos e bibliotecas, vivíamos roubando exemplares das livrarias) que me deparei com seu A Grande Mosca no Copo de Leite e só o larguei quando uma semana depois encontrei Os Doze Parafusos numa calçada da Rua Pedro I, entre revistas e best sellers. Dali em diante passei a ser seu leitor fiel, e lembro que tremi quando folheei o belo volume d’O Puxador de Terço (ainda hoje o meu preferido entre seus poucos livros editados).

Cruzávamos sempre o Bosque de Letras indo para o Restaurante Universitário: um belo dia um colega me apontou um senhor muito magro que conversava com vários estudantes debaixo de uma mangueira. Perguntou-me: — Sabe quem é aquele? Respondi que não, ele riu e disse que era o grande contista Moreira Campos. Senti um frio na barriga, mas seguimos adiante, sem coragem de parar ou ficar olhando por mais tempo, assim como continuei a fazer por quase dez anos. Sempre o avistava conversando com estudantes, passando a pé ou no seu conhecido fusca verde (na época ainda morava quase na esquina da avenida Carapinima, numa casa vistosa que tempos depois foi criminosamente derrubada para abrigar um estacionamento). Nunca tive coragem de puxar uma conversa, éramos tímidos demais para isso. E mesmo já tendo lido grande parte de seus livros e de o admira-lo bastante como escritor jamais me aproximei do homem.

Tempos depois, já rabiscando meus primeiros contos e tendo até vencido alguns prêmios literários é que conheci a filha dele, também ótima escritora, Natércia Campos. Da amizade com ela me veio a coragem tardia de confessar que queria conhecer o agora já mestre e inspirador escritor.

Dois dias depois estava eu, nervoso, suado, descendo do ônibus quase na esquina de seu apartamento da rua Beni de Carvalho. Anuncie-me pelo interfone e subi com uma vontade danada de voltar dali mesmo. Em pouco tempo eu estava sendo recebido à porta pela simpática esposa do professor agora aposentado, Dona Zezé, que, sem ligar para o meu acanhamento foi me mandando entrar, sentar, esperar um pouco que o “Zé Maria já vem, acabou de sair do banho”, e enquanto eu esperava fui me deliciando com aquela sala bonita, bem cuidada, cheia de livros e quadros de bom gosto, podia-se dizer sofisticada, muito sofisticada para os meus padrões de estudante pobre vindo do interior. Lembro bem que fiquei olhando para a coleção de miniatura de corujas em cima da estante. Lembranças que os muitos amigos, alunos e familiares traziam de viagem, homenageando o escritor pelo seu belo conto As Corujas.

Pouco depois ele entrou na sala, magrinho, um pouco curvado, a fala baixa mas muito simpática, sintoma já do enfisema pulmonar que o maltratava. Conversamos mais de uma hora, intercalados por visitas ao seu escritório (onde me mostrou os muitos clássicos portugueses) e a um baú no canto da sala, de onde Dona Zezé foi tirando um a um os seus livros mais antigos, edições impecáveis que hoje trago em lugar especial de minha estante, com seu autógrafo já trêmulo. Daí a pouco ele começou a tossir e fui me apressando em ir embora, mas não sem antes prometer voltar qualquer dia desses.

Voltei ainda duas vezes, numa das quais criei coragem e trouxe a cópia ampliada de meu primeiro livro, O Peso do Morto, e na maior cara de pau pedi que ele “desse uma olhadinha, se pudesse”. Juro que só tive coragem de tal gesto devido à simpatia com que já era tratado por ele e Dona Zezé naquele agradável encontro.

Tempos depois, num domingo bem cedo, recebi um telefonema de Dona Zezé me dizendo que o “Zé Maria está escrevendo uma crônica sobre seu livro para a Porta de Academia” (coluna que o escritor mantinha neste mesmo O POVO). Agradeci a atenção e passei o resto do dia, da semana embevecido, sem pisar no chão. Esperei uma semana, duas, três, achando estranho não ter mais saído as crônicas dele no referido jornal. Dias depois um amigo me disse que o escritor estava internado. Procurei Natércia que me confirmou muito abatida. Coragem alguma de ligar para Dona Zezé.

Pouco tempo depois soube da notícia de seu falecimento. Não fui ao sepultamento, preferi ficar com as agradáveis lembranças dele vivo.

Fiquei triste por algum tempo, de vez em quando releio seus contos, olho suas últimas fotos tiradas por mim nas poucas mas agradáveis visitas ao seu apartamento, vejo nos livros sua bela assinatura trêmula e lembro com carinho sua figura gentil, atenciosa e ética. Um dos raros escritores que a valiosa obra ombreia com a personalidade, com o caráter.


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