DONA ZENAIDE
Pedro Salgueiro para o Jornal O povo
Asseverou, com naturalidade, que não carecia eu plantar todas aquelas mudas, quando eu quisesse sentir o cheiro da Bunina era só vir ao seu jardim. Foi a primeira frase dela que senti certa intenção de me dar uma lição; não uma lição de mestre de alta escola, universidade, desses cheios de empáfia e poses; mas, sim, lição de vida, cálida, sempre cercada de gestos e cuidados. Tirei, prático que sou em lições de vida, que não devemos querer ter tudo, muitas vezes pedir por empréstimo até dá motivo para uma boa prosa com alguém.
Logo que entrei em sua cozinha já sorvi o cheiro do café, que me inundou os pulmões, chegando rápido até o coração. Em cima da mesinha ao lado da rede uma Bíblia de Jerusalém vermelha e um livrinho de religião oriental. No canto da sala, uma vela acesa dentro de meia garrafa plástica de refrigerante.
Certo que ela sempre se saía com uma frase, palavrinha que fosse com sentido mole, querendo ser verdade por trás da boca enrugada. Fui aprendendo, aos poucos, a tirar o leite da cabra, a escutar o besouro mangangá no tremido da cerca de madeira quase apodrecida.
Dia desses foi mais direta, quase me aconselhando: “Na vida, temos que fazer as coisas devagarinho, viu, Candinha!?”; falou para uma amiga mas olhando com um dos seus muitos olhos para mim. Sem demonstrar qualquer arrogância, essa espécie orgulhosa de superioridade que, às vezes, a idade avançada vai pregando em determinadas pessoas, ficou como que esperando uma interferência minha na suposta conversa com a “outra” visita. “Mas sempre devagar?”, resolvi inquirir em meio a um sorriso maroto, não querendo ser irônico, que era para não contrariar a amiga tão gentil. Filosofia que aprendi com meu falecido pai, nunca contrariar alguém mais velho, sempre contrariar alguém mais novo.
Coloquei a frase simples no meu matulão e passei a semana pensando, preguiçosamente, nela. A sentença caberia com perfeição a mim, que fui sempre um “marcha lenta”, “devagar-quase-parando”... Ou, como diz minha mãe Geni, um “imaginário”, atribuindo sempre a palavra inventada por ela ao tio, por parte de pai, Onésimo.
Nem digeri direito sua frasezinha aparentemente simples e ela já me tascava outra, desta vez já claramente estabelecendo comigo um diálogo meio estranho, eu tentando decifrar seus ensinamentos de vida, ela querendo me passar mais e mais outros. Vezes até evito passar rente à mureta de seu belo jardim. Verdades às vezes se tornam fardos, pesam em nossos ombros... mas isso já sou eu quem diz, procurando um ouvinte imaginário. Acho que me viciei em lições de vida, em verdades camufladas nas frases singelas, principalmente ditas por pessoas mais velhas.
Basta passar em sua calçada, sentir o cheiro doce da Bunina, para que eu já fique imaginando sua respiração pausada: “Acredite em tudo, meu filho, até em horóscopo de jornal”; então olho desconfiado na direção da casa simples, balanço ligeiro a cabeça, tentando afugentar o restinho da frase, mas me resta ainda nos ouvidos um “faz bem” conformado.
Culpa de minha querida amiga Zenaide, que nos dias difíceis de hoje ainda encontra tempo para me surpreender com palavras: “Meu filho, reze para o êxito de seus inimigos!”. Vendo meu espanto, mas dando um tempo para que eu bebesse ao menos dois goles do seu ótimo suco de maracujá, me segredou com olhos arregalados, como se decifrasse um vocábulo óbvio de uma palavra-cruzada: “Assim, eles te deixarão em paz!”.
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