quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

                           O Homem Bom

Brennand de Sousa


“Por que me chamas de bom? Bom é meu Pai que está nos céus”. Eis o aforismo com o qual Cristo larga-se do Céu para irmanar-se conosco.

Da minha parte, não compreendo que bonomia seria esta que desperta nos outros o sentimento de confiança e gratidão.  O que em mim atrai mendigos, tristíssimas donas de casa, desempregados, prostitutas, renegados de toda ordem a me requisitarem os mais inusitados adjutórios? Enquanto missionários atocaiam incréus em pontos visivelmente estratégicos, minha presença chama – involuntariamente – os crédulos saídos das mais obscuras brechas feito mariposas. Acalma-os.

Reparando-me no espelho penso que a resposta pode estar na composição suavemente assimétrica do rosto. Os olhos tristes e desalinhados insinuam uma placidez monacal, inspiram confiança. Não só isso, a superfície esquerda da face, de relevo mais suave, possui maçã um pouco menos angulosa; a boca, bem delineada, em conjunção com as largas aletas do nariz, deve conferir à moldura redonda de minha cara, um toque infantil, sugestivamente confiável.  Essas sutilezas fisionômicas passam despercebidas nesse mundo de pouca atenção, onde as pessoas dão-se umas às outras sem qualquer preparo analítico. Vai saber! Busco compreender essa atração. Um rosto de simetria especular, de fato, revela algo de inacessível, tal qual a escultura de um grande mestre renascentista. Já as faces francamente assimétricas repelem por outra forma, conduzem a uma inevitável feiúra... Criaturas quasimodescas nunca inspiram empatia.

No entanto, por mais evocativo que se mostrem os traços de uma feição, estes não possuem atributos que definem o etos de qualquer indivíduo, embora as pessoas – inclusive você que me lê – sejam propensas à credulidade estética. Oh dúvida! Não sendo a geometria de minha expressão, a responsável pelas freqüentes abordagens na cena urbana, o que seria então? Minha conduta? Menos provável ainda. Esta só a conhecem os poucos que me são próximos e ainda sim ilusoriamente. Mesmo não sendo o completo canalha, tenho plena consciência de que todos os meus passos, inclusive aqueles que podem ser reputados meritórios, são na verdade motivados em causa própria. Todos os atos nobres possuem intenções muito bem guardadas. A solidariedade é o emblema oculto da vaidade humana, embora bem poucos atentem para isto. Se as pessoas não fossem tão carentes quanto obtusas, notariam que quando ofereço o ombro, presto o favor, sou diligente, na verdade estou testando minha superioridade luciferina travestida de cristã. Em que momento ofertei-me de bom exemplo sem, contudo, pegar carona na oportunidade? Não me recordo.  Aliás, pouco me importo, sei que não sou diferente de ninguém, ou por outro, se difiro-me é pela prospecção com que executo minhas benesses.

Tive o essencial para que a tão decantada bondade divina em mim desabrochasse: O amor assistido dos pais, juntinhos até que um dia a morte viesse a separá-los, o conforto de um berço aconchegado pela ternura, onde nada me faltara e jamais viria a faltar... Depois obtive razoável formação intelectual, sinceras amizades, festas, prazeres... Uma arquitetura social toda favorável. Natural, pois, para um burguês insensato, os ataques de Madalena Arrependida... “Muito será cobrado, a quem muito foi dado” Contrapartes! É amigo, estava farto delas! A parte que hoje me cabe, faço-a sem dever nada a ninguém, somente à minha clarividente vaidade.
           
             Todos que se dedicam a nobre arte da compaixão disputam, com voracidade, a alma do Homem. Talvez, também eu, em minha cínica honestidade, esteja querendo açambarcar a sua, ou quem sabe, não passe de um ingrato que deu uma tremenda cusparada no banquete como costumam os camicases da poesia e que almejam justamente o mesmo que todos.

Tu tens princípios, disto tenho certeza. Refiro-me obviamente aos bons princípios. Já desconfiastes, alguma vez sequer, do suor que os mantém? Buscaste a fundo as ocultas motivações que os representam?  Mas buscaste a fundo perdido ou temendo diante dos Credores? E então? Que fios invisíveis e inconfessáveis suportaste enxergar? Que volume de vazio descobriste por baixo da tábua a que te apegaste?

Quero, por fim, dividir contigo somente o que não possuo. Se depois do teu auto-veredicto (onde espero francamente que não te tenhas absolvido – tampouco condenado-te) a vaidade blindada não houver cegado-te de todo, dá-me a certeza: Haverá, em nós, algum sinal benéfico, salvador e que nos credencie bons... Pelo menos perante àqueles que nos desconhecem?
    




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