ORIGENS
Pedro Salgueiro para O Povo
Dentro da comemoração dos 70 anos de minha mãe Geni, planejamos (eu e o primo Mileno) uma viagem aos vilarejos onde ela e, claro, os irmãos e meus avós maternos nasceram e viveram suas infâncias, na primeira metade do século passado.
Teríamos que enfrentar estradas carroçáveis num ziguezague danado pelo semi-árido quase desértico entre os municípios de Tamboril, Independência e Boa Viagem: um recanto do mundo pouco habitável, com raríssima água disponível e população cada vez menor.
Juntamos mais alguns primos, minha companheira Ana e minha irmã Geyna, os tios José e Gilberta e rumamos na sexta feira, 13 de janeiro, em dois carros rumo às nossas origens. A última vez que minha mãe e sua irmã haviam andado por aquelas bandas tinha sido há mais de 50 anos, quando ainda eram mocinhas e nossa família fazia pela primeira vez o caminho (sem volta) da zona rural para a pequena cidade de Tamboril.
Mal deixamos o Bairro das Pedrinhas e atravessamos o Cercado do Estado na direção do Bom Tempo ela foi adquirindo uma ansiedade própria das crianças que dão os primeiros passos: os olhos, entre arregalados e lacrimejantes, iam se recordando milagrosamente de coisas nas quais nunca mais haviam pensado, tocado, olhado desde suas meninices distantes.
Na Fazenda Cilista foram, os irmãos emocionados, se recordando das primeiras descobertas da infância, das brincadeiras nos terreiros em noites de lua, naquela enorme casa de reboco milagrosamente preservada em tudo: na janelinha para o oitão onde um irmão empurrou o outro em 1957, nos armadores (que eu nunca havia visto nem imaginado iguais) de galhos de árvores parecendo cotovelos de madeira torta saindo das paredes em que armavam as muitas redes, na camarinha escura onde a irmã Núbia falecera de apendicite, no quartinho de bodega do avô Chico Inácio, na linha do teto onde numa noite de chuva com vento caiu um raio, que abriu um enorme buraco no teto e encheu de espanto a imaginação dos pequenos.
Tudo isso narrado pela memória prodigiosa do tio José.
Fomos saindo de lá e retomando a estrada de pura terra e poeira como se andássemos sobre nuvens, as cabeças distantes no tempo em que apenas animais atravessavam aquelas paragens ermas, percorrida mais por anuns e raros galos de campinas. Logo avistamos, da passagem do mata-burros, por sobre o açude em que minha mãe um dia quase se afogou, a localidade de Oliveiras, onde viveram por muitos anos e nasceram alguns dos vários filhos. O casarão mais que centenário em que meu avô foi criado, as três casas (uma só já caída) em que habitaram, lá ouvi pela milésima vez a famosa história dos quatro assassinatos por vingança da morte do Velho Dionísio (o lendário Jumentão da Maravilha), acontecidos na bodega de meu avô Chico Inácio. De lá rumamos, depois de conversarmos um pouco com o quase centenário Chiquinho Flor, para a Curimatã, então visitamos a casa dos Diogos e suas velhas fotografias nas paredes protegendo a solidão de Rosa, que me presenteou com uma boneca de sua infância: “Você tem filha? Leve pra ela, eu fiz quando era criança...”. Em cada alcova ainda os suspiros dos mortos. Como que por encanto pularam a cerca, vindos de um brocado atrás da casa, os irmãos Antônio (e sua nobre Guerreira) e Chico. Eu fiquei sem saber se eles eram reais ou somente visagens, na dúvida chamei os outros para que fôssemos logo procurar a Cruz de Zé Guilherme, morto (lá para as bandas do São Francisco) em 1928 a mando do Velho Dionísio, que por sua vez fora assassinado 32 anos depois de maneira semelhante dentro de sua fantasmagórica casa (fato que desencadeou a vingança, já citada, dos quatro assassinatos na bodega de meu avô).
Precisaria de um livro inteiro para descrever todas as emoções que senti, através de meus próprios olhos e dos de meus familiares, nessa simples (mas profunda) viagem de regresso.
Voltamos para Tamboril cobertos de poeira e de sonhos, certos de que nunca mais seríamos os mesmos.