O RETRATO DO GATO DE TÉRCIA
Meia
noite de sexta-feira, a responsabilidade me deixa insone. No gabinete que
consume parte de minhas horas de trabalho e abriga meus estudos e leituras, vou
separando livros e documentos. Tento dar ordem à minha vida. E assim recolhido
entre a matéria das chegadas e partidas da convivência que mantenho com a seca
— o cíclico fenômeno que muito me absorve — meio sem me dar conta coloco sobre
as pernas o livro que pretendo reler. Tempo em que sou importunado pelo
desajeitado carinho de Vovozete.
Eu olho enviesado para o lado e meus
pensamentos retroagem àquela manhã, quando, dentro de uma caixa de papelão, ela
miava desafinadamente à minha porta. Eram apenas migalhas de pele e ossos
cobertos por rarefeitos e assanhados pelos alvinegros. Mas mesmo sem conhecer
sua origem: seria provocação de um torcedor daquele que um dia foi o “Mais
Querido” ou gozação de um apaixonado tricolor? O fato é que Naná e eu logo nos
afeiçoamos ao diminuto filhote e o acolhemos prontamente. Não demorou e a
recém-chegada felina tomou corpo e apesar de pé-duro, com pose de nobre
linhagem, fez-se metida além da conta. Pensando em conjugar o lúdico com a
realidade de sua plumagem, mesmo sendo eu um admirador de cores mais alegres,
batizei-a com o nome da única instituição de Porangabussu que merece meu
apreço. Falo do grupo que nos intervalos das partidas do “Vozão” põe beleza nos
olhos dos admiradores do belo sexo.
Quem hoje vê seus olhinhos de um verde
furta-cor a nos convidar para uma quase sedução jamais desconfia do que ela é
capaz. Vovozete não escolhe parceiro para suas peraltices e às vezes é
traiçoeira. Fingindo brincar (a rigor em seu modo de ver as coisas, de fato
está), quando menos se espera ela sapeca a mordida e extrai sangue do parceiro.
Não lhe importa se é alguém de casa ou visitante.
Mas, de volta aos meus afazeres, ergo
o livro do colo e o coloco sobre a velha poltrona, ao alcance da mão. Um móvel
que segue o valor das heranças de família e que, por um instante, deixa-me à
mercê de minhas lembranças paternas; logo substituídas por outras bem mais
recentes. Mas antes de iniciar qualquer coisa que me aguce o intelecto, eu vejo
a exibida gata se deslocando como quem valsa um baile de quinze anos. Num
acrobático salto ela alcança a poltrona de minhas recordações e com olhar
cúpido se põe a cativar o Gato preto de Os
Espantos. Um ato que me leva de volta ao célebre convite que a amiga Tércia
Montenegro nos faz nesta sua obra: a um
susto saudável e surpreendente. E eu que pensei estivera a Vovozete
disputando o aconchego de meu colo, acabo de perceber que ela está mesmo é
enamorada do ouriçado gato que ilustra a capa do citado livro. Rio-me e em
silêncio: “mulheres! Essas mulheres!” e me entrego a outras recordações.
Retroajo ao dia em que conheci Tércia
Montenegro: semblante sério, poucas palavras, riso contido, andar de bailarina,
modos finos, aristocráticos até. E como tal eu esperava uma literatura saída de
sua pena, senão afetada de seriedade Franciscana; pelo menos beirando as raias
da sisudez. Que nada! Espantei-me agradavelmente com Os Espantos. Vi-me diante de uma leitura com que muito me
identifico.
A escrita de Tércia me encanta não
somente pela estética (texto enxuto, palavras bem medidas e colocadas...), como
também por sua leve irreverência e deliciosa ironia. Não sei em outros gêneros
(conto e romance) pelos quais ela transita, certamente com igual habilidade,
mas como cronista Tércia é admiravelmente bem humorada. Aos poucos ela vai
lançando luz em tudo que escreve. Tornei-me um de seus maiores admiradores.
Não fosse eu um homem das ciências
exatas, metido a escriba e sim um estudioso da literatura, teria muito a dizer
sobre o formidável livro em apreço. Mas me falta conteúdo para tanto e o tempo
segue em ritmo acelerado. Passa das duas da manhã e as flores de jasmim agora
dormem como dorme minha Vovozete. Com uma das faces reposada na capa de Os Espantos eu não me atrevo atrapalhar
as quimeras que ela por certo mantém com o bichano de Tércia. Enfim, feliz por
reviver o convite ao susto, deixo para mais tarde a releitura de Os Espantos. É hora de me recolher
Bernivaldo
Carneiro