quarta-feira, 18 de dezembro de 2013



O RETRATO DO GATO DE TÉRCIA

Meia noite de sexta-feira, a responsabilidade me deixa insone. No gabinete que consume parte de minhas horas de trabalho e abriga meus estudos e leituras, vou separando livros e documentos. Tento dar ordem à minha vida. E assim recolhido entre a matéria das chegadas e partidas da convivência que mantenho com a seca — o cíclico fenômeno que muito me absorve — meio sem me dar conta coloco sobre as pernas o livro que pretendo reler. Tempo em que sou importunado pelo desajeitado carinho de Vovozete.

Eu olho enviesado para o lado e meus pensamentos retroagem àquela manhã, quando, dentro de uma caixa de papelão, ela miava desafinadamente à minha porta. Eram apenas migalhas de pele e ossos cobertos por rarefeitos e assanhados pelos alvinegros. Mas mesmo sem conhecer sua origem: seria provocação de um torcedor daquele que um dia foi o “Mais Querido” ou gozação de um apaixonado tricolor? O fato é que Naná e eu logo nos afeiçoamos ao diminuto filhote e o acolhemos prontamente. Não demorou e a recém-chegada felina tomou corpo e apesar de pé-duro, com pose de nobre linhagem, fez-se metida além da conta. Pensando em conjugar o lúdico com a realidade de sua plumagem, mesmo sendo eu um admirador de cores mais alegres, batizei-a com o nome da única instituição de Porangabussu que merece meu apreço. Falo do grupo que nos intervalos das partidas do “Vozão” põe beleza nos olhos dos admiradores do belo sexo.

Quem hoje vê seus olhinhos de um verde furta-cor a nos convidar para uma quase sedução jamais desconfia do que ela é capaz. Vovozete não escolhe parceiro para suas peraltices e às vezes é traiçoeira. Fingindo brincar (a rigor em seu modo de ver as coisas, de fato está), quando menos se espera ela sapeca a mordida e extrai sangue do parceiro. Não lhe importa se é alguém de casa ou visitante.

Mas, de volta aos meus afazeres, ergo o livro do colo e o coloco sobre a velha poltrona, ao alcance da mão. Um móvel que segue o valor das heranças de família e que, por um instante, deixa-me à mercê de minhas lembranças paternas; logo substituídas por outras bem mais recentes. Mas antes de iniciar qualquer coisa que me aguce o intelecto, eu vejo a exibida gata se deslocando como quem valsa um baile de quinze anos. Num acrobático salto ela alcança a poltrona de minhas recordações e com olhar cúpido se põe a cativar o Gato preto de Os Espantos. Um ato que me leva de volta ao célebre convite que a amiga Tércia Montenegro nos faz nesta sua obra: a um susto saudável e surpreendente. E eu que pensei estivera a Vovozete disputando o aconchego de meu colo, acabo de perceber que ela está mesmo é enamorada do ouriçado gato que ilustra a capa do citado livro. Rio-me e em silêncio: “mulheres! Essas mulheres!” e me entrego a outras recordações.
Retroajo ao dia em que conheci Tércia Montenegro: semblante sério, poucas palavras, riso contido, andar de bailarina, modos finos, aristocráticos até. E como tal eu esperava uma literatura saída de sua pena, senão afetada de seriedade Franciscana; pelo menos beirando as raias da sisudez. Que nada! Espantei-me agradavelmente com Os Espantos. Vi-me diante de uma leitura com que muito me identifico.

A escrita de Tércia me encanta não somente pela estética (texto enxuto, palavras bem medidas e colocadas...), como também por sua leve irreverência e deliciosa ironia. Não sei em outros gêneros (conto e romance) pelos quais ela transita, certamente com igual habilidade, mas como cronista Tércia é admiravelmente bem humorada. Aos poucos ela vai lançando luz em tudo que escreve. Tornei-me um de seus maiores admiradores.

Não fosse eu um homem das ciências exatas, metido a escriba e sim um estudioso da literatura, teria muito a dizer sobre o formidável livro em apreço. Mas me falta conteúdo para tanto e o tempo segue em ritmo acelerado. Passa das duas da manhã e as flores de jasmim agora dormem como dorme minha Vovozete. Com uma das faces reposada na capa de Os Espantos eu não me atrevo atrapalhar as quimeras que ela por certo mantém com o bichano de Tércia. Enfim, feliz por reviver o convite ao susto, deixo para mais tarde a releitura de Os Espantos. É hora de me recolher

Bernivaldo Carneiro



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