HOMENAGEM A NILTO
MACIEL
Pedro Salgueiro - O Povo - 10/05/2014
QUEM TERMINARÁ AS TAREFAS DO MORTO?
Quem completará as inadiáveis tarefas do morto? Quem acabará de arrumar
sua penúltima mala, na qual só faltava uma camisa engomada, já que a calça de
brim jazia bem dobrada ao lado da pasta com o fecho aberto até quase a metade
(por onde dali a pouco ele enfiaria o discurso de abertura de um congresso
macabro).
Quem terminará de pôr sua derradeira postagem na página que era seu
barco, sua âncora, sua tábua de salvação de náufrago sem remissão? Qual dos
amigos postará um primeiro e o último comentário póstumo, com a bendita
insulina do elogio fácil que tanto azeitava o parco sangue do morto?
Quem de nós, amigos de sempre e os ausentes, aparará pela última vez as
unhas tortas do morto; qual deles se sentará desconfortável no sofá puído,
sobre a velha toalha com emblema gasto do glorioso “Tricolor de Aço”, que tanta
tristeza vinha trazendo ultimamente ao finado?
Quem completará o último romance do corpo magro e putrefato que jaz
inocentemente estendido no pequeno corredor entre o banheiro, o quarto de dormir
e a sala?
Quem ouvirá de sua boca minúscula que aquele seria seu Ulisses, seu
canto de cisne, sua última e mais perigosa jogada: depois da qual não se
sustaria pedra sobre pedra do que imprudentemente escreveu antes?
Quem da famigerada corja dos companheiros de copos, de colegas de
geração, de novos e velhos parceiros de penas, escutará suas derradeiras
idiossincrasias, seus restantes insultos velados, suas últimas indiscrições
escritas?
Quais dos ouvidos singelos, limpos e sempre disponíveis, escutarão suas
reles blasfêmias de ateu reimoso, seus vãos arrependimentos, suas dolorosas
lembranças de infância, por onde desfilarão – irremediavelmente sumidos – seus
pais, tios, irmãos, todos mortinhos covardes que o foram deixando sozinho pelos
pedregosos caminhos da vida?
Quem dentre os muitos companheiros de vida ecoará pelos ventos suas
iras, sonhos, amores, dissabores, langores, sussurros e preces?
Quem raspará a rala barba diária do morto, quem cofiará com seu modo
único o velho bigode aparado tão baixo, discretamente escondendo o riso cínico,
a impune maledicência, os dentes finos trincados de dor?
Quem dentre os já mortos o vai auxiliar no profundo estudo da geologia
dos campos santos? Quais dos Josés, Aírtons, Edinardos, Aldas, Alcides, o ajudarão
a aparar as raízes desse imenso “mato baixo” que somos no fundo todos nós que
por aqui restamos?
Quem editará seus livros esquecidos, os quase concluídos e –
principalmente – os que ainda seriam escritos? Quem os postará nos correios
para os tantos admiradores desse Brasil tão grande? Quem receberá, por sua vez,
a enorme quantidade de livros que lhe enviarão todos os novíssimos poetas desse
país gigante?
Quem vai restaurar os derradeiros filmes, fotos e lembranças de vida
para mostrar no moderno projetor, que ele havia acabado de comprar e posto no
quarto para presentear as quatro filhas quando elas aqui por ventura
aportassem?
***
Não! Não! Senhores! Um morto assim não deveria morrer tão cedo, pois ele
ainda tinha diversas coisas a fazer, bastantes (e inadiáveis) tarefas para
completar...
E muita, muita vida ainda por viver!
“Demorou dias a agonia de Ascânio Bustamante Coimbra. Vomitava versos,
retorcia-se na cama, agitado, febril, voz sumida. E finalmente expirou,
translúcido como a evidência, magro, quase ossos, e a pele manchada de letras.”
(Nilto Maciel – do conto O translúcido Ascânio).
9 comentários:
Salgueiro, a crônica é lancinante e crua, mas é verdadeira, e bem ao modo-Maciel de ver o mundo.
Um morto sempre deixa coisas a fazer, pensamentos a completar e dúvidas a suscitar.
Uma croniquinha terna e cabisbaixa não combinaria com o feitio do que foi o nosso conviva no mundo.
Ninguém esperava a partida do Nilto, assim tão rápida, de sobressalto.
Nilto partiu, mas permanece, no que deixou.
Abraço.
Carlos Vazconcelos
As boas homenagens, como a de Salgueiro, dispensam as condescendências fáceis.
Plínio Bortolotti
Jornalista
O POVO - Fortaleza, Ceará
Pedro,
A carga de suas palavras demonstra a dimensão de Nilto (e sua obra) junto a nós. A expressão “parabéns pela crônica” soaria tétrica neste momento. Apenas guardarei seu texto com admiração e reconhecimento deste sentimento mútuo de perda.
Abraçaço.
Frederico Régis Pereira
Amigo Pedro, belíssima homenagem!
Há uma frase atribuída a Friedrich Nietzsche: "A arte existe para que a verdade não nos destrua". Com maestria, você consegue realizar a difícil tarefa de falar dos que ama, mortos. Se não faz as tarefas do morto, faz a grande arte de rememorar o seu nome, suas crenças e grandezas. Faz a morte doer menos, embora a vida siga tomada de saudades!
Forte abraço!
Elias de França
Amigo é coisa para se guardar.
Bela homenagem, Pedro.
Abraço
Chico P.
Francisco Pascoal Pinto
Da melhor escrita do Pedro a narrativa estilosa do Salgueiro.
Quando eu morrer, você já está convocado a me "ressuscitar" através de seu texto imorredouro. Fiquei com inveja do morto na certeza dele ter aqui, neste vale de lágrimas, AMIGOS do seu quilate.
Um fraternal e solidário abraço.
Manuel Casqueiro
Belíssimo, Pedro.
Louvável.
Anderson Fonseca
Bom dia a todos!
Pedroca, li a crônica em sobressaltos como se cada palavra rasgasse uma fenda q eu insistia em costurar. Só o "Sangreiro" mesmo p "sangrar" nossas feridas. Não respondi antes pq simplesmente fiquei sem palavras.
Pensei em escrever para o blog sobre a troca de e-mails divertidos com Nilto, mas não tive coragem p reler os e-mails. Alguma coisa ainda não deu o clique dentro de mim. Fico esperando q tenha sido só mais um dos gracejos dele p fazer charme.
Escrevi o conto Assim seja o Apocalipse com os personagens do Nilto p Revista eletrônica Flaubert, está na página 42, logo após um conto dele. Emoji
http://issuu.com/revistaflaubert/docs/flaubert003#
Envio o arquivo em anexo p quem quiser baixar a revista.
Abraços poéticos!
PS: Tércia, qdo o Nilto foi encontrado completava 60 dias da morte do meu pai.
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