DOIS
ANOS SEM MANUEL BULCÃO
Foram apenas três momentos em que pouco dialogamos, porém
algo me diz que atravessamos séculos e mares de outros tempos. Duas destas
especiais ocasiões ocorreram no barulhento e, então apinhado de gente, “Bar do
Assis” em encontro dos Poetas de Quinta; a outra aconteceu na casa de Pedro
Salgueiro numa noite em que celebrávamos a mudança de idade do anfitrião.
Apesar do quê, o suficiente para nascer uma afinidade que caminhava franca para
grande amizade. Afora isso, trocamos meia dúzia de e-mails e batemos alguns
papos ao telefone. Neste meio tempo, nas duas vezes que os Poetas de Quinta se encontraram
em minha casa, Bulcãozinho (assim tratavam-no os seus mais íntimos de nosso
grupo) manifestou vontade de se fazer presente. Entendia ser uma oportunidade
ímpar para escambiarmos nossas próprias obras. Ele me traria: As esquisitices do óbvio, A eloquência do ódio e Sombras do Iluminismo; em troca levaria
um exemplar de meus livros. No entanto, desencorajado pela doença, justificou a
impossibilidade de nos acompanhar naquelas reuniões expondo-me o quão era
frágil sua saúde.
Noutro momento, ao ouvi-lo chateado por
não ter comparecido ao meu lançamento em 2 de junho de 2011, eu deixei na
portaria de seu condomínio um volume de meu segundo romance, recém-publicado.
No dia seguinte a capa de Devaneios
Delírios & Desamores já estava postada em seu Blog:
asesquisiticesdoobvio.com.br.
Já em 2012, Manuel Bulcão me passou um
e-mail dizendo que acabava de sair de uma crise de duas horas de dores aguda.
Aguardava uma ambulância para ser hospitalizado. Tinha dúvidas se dali sairia
com vida. Se eu quisesse poderia pegar, no hospital, os livros que ele dedicara
a mim. Apesar de seu preocupante quadro clínico o e-mail transbordava bom
humor. Até piadas com alguns companheiros de Quinta ele fez. Meio atrapalhado
(sempre me falta jeito diante de situações do gênero), eu o respondi com votos
de pronto restabelecimento e manifesto desejo de em breve nos encontrarmos para
comemorar a plenitude de sua recuperação. Contudo, ao clicar o comando de
enviar, antevi lágrimas lhe irrigando as faces enquanto lia minha
correspondência; tempo em que a dor de quem perde um ente querido se apoderava
de mim. E assim envolto em completo silêncio, revivi os laços de afeto,
gratidão e respeito mútuos, que construímos. Vaguei entre a alegria e a
tristeza entregue ao sentimento de fé com o olhar firme na réstia de luz e na
esperança que resiste até o último sopro de vida.
Uma semana depois ele recebeu alta
hospitalar. Eu, e por certo todos ao seu redor, afastava por completo o que a
crença popular chama “Melhoria da morte” ou “Visita da saúde”. Fase em que o
doente dá sinais de recuperação (na verdade um crédito de horas ou dias, dados
pela lei divina), mas de repetente o seu prazo na Terra se encerra e o espírito
sobe aos céus. Afinal é assim que a vida acontece num eterno e ir e vir. E como
nós, conforme disse Clarice Lispector: “Nunca estamos preparados para o que nos
espera”, eu compartilhava da alegria do amigo que retornava para casa
duplamente feliz.
Primeiro porque o médico que o
acompanhava estava bastante confiante na evolução de seu quadro; segundo porque
o livro que acabara de concluir: O
heliocentrismo de Copérnico tinha sido aprovado por uma editora virtual portuguesa.
E disse mais: “Este tipo de publicação é um achado para escritores criativos
como nós. Digo criativos assim com eu e você. Não o... nem o... muito menos
o... brincou”. Contudo, confessava-se nervoso porque a esse propósito teria de
gravar um documentário em Sobral, e, segundo suas próprias palavras, em
demandas do gênero lhe batia uma gagueira de assustar.
Isso, no entanto, ele não disse, mas
minha perita intuição deduz que o citado município cearense foi escolhido para
ambientar o referenciado vídeo pelo fato de o teor do livro (haja vista o
título) ter muito a ver com a Lei da Gravidade Geral, bem como devido à efetiva
contribuição que a Princesa do Norte deu para a comprovação dessa grande
descoberta do gênio da física, o cientista Albert Einstein.
A despeito da consciência que tinha da
fragilidade da própria saúde, em nenhum momento vi ou ouvi Bulcãozinho se
lamentar. No entanto, uma vez também por e-mail, ele deixou transparecer que os
leitores não gostavam de sua obra. Certo de que esta era a verdade dos fatos,
respondi que apesar de ter lido apenas algumas poesias e textos de sua lavra,
postados em nosso www.poetasdequinta.blogspot.com e em seu já citado Blog, eu não tinha dúvida de que sua
obra breve mente teria o justo reconhecimento. Pois confiava no bom gosto de
nossos colegas de grupo, unânimes em ressaltar seu talento de escritor.
Sobretudo como ensaísta técnico-científico e filosófico.
Meses depois, na busca de unidade
literária para uma nova publicação, eu consultava alguns colegas e o caro
Bulcão, mais uma vez em rede social, analisou com presteza, sabedoria, carinho
e fez boas observações acerca do que eu o enviara.
Menos de um mês depois desta
correspondência, ao retornar de viagem num fim de semana eu soube que ele estava
numa UTI. Prontamente liguei para o Silas Falcão, o Pedro Salgueiro e o Carlos
Vazconcelos e agendamos, para a quarta-feira seguinte, uma visita ao amigo. Uma
reunião de trabalho, no entanto, segurou o Vaz além do tempo previsto e
perdemos a hora da visita, que, remarcada para dois dias depois, acabou não
acontecendo. É que às 19 horas do dia 23 de agosto de 2012, Manuel Soares
Bulcão Neto, exato numa quinta-feira (dia e hora em que os Poetas de Quinta
costumeiramente se reúnem) partiu deixando uma grande saudade e um vazio imenso
em nós.
As palavras guardadas para a visita
ainda me povoam o pensamento, no entanto mais calmas e consoladas pela
sabedoria do coração, coexistem com a luz que cruza o meu livre-arbítrio. São
recordações imorredouras que mostram e enaltecem a natureza do amigo, que, de
quando em quando, eu revejo-o através de uma porta aberta pela sinfonia do céu
noturno. E na perspectiva de nos reconhecermos na travessia de um horizonte de
almas eternas, meu ego se dissolve perdoando-me por eu não tê-lo abraçado mais
uma vez.
Bernivaldo Carneiro