sábado, 13 de setembro de 2014

A FUNÇÃO SOCIAL DA LITERATURA

La Lectrice Soumise (1928), de Rene Magritte


Existe uma música do Raul Seixas, chamadaEu Sou Egoísta, que diz: “… Minha espada é a guitarra na mão”. Eu nunca toquei guitarra na minha vida e, para falar a verdade, mal sei segurar uma. Contudo, eu também tenho uma espada, que uso para atacar e para me defender: a literatura.
Em minha opinião, existem dois tipos diferentes de literatura: uma serve para distrair; a outra, para incomodar. E é somente quando a literatura incomoda que ela deixa de ser apenas um passatempo, e passa a assumir uma função social das mais importantes.
Devo dizer que, pessoalmente, não tenho nada contra a literatura de entretenimento. Não a desqualifico e nem a ridicularizo, como muitos costumam fazer. Inclusive, conheço e admiro autores que escrevem com o único objetivo de distrair o leitor. Não se aprofundam em nenhum assunto que possa gerar polêmica, limitando-se a contar uma historinha divertida sobre uma situação corriqueira.
Não podem ser considerados textos ruins só por que são comportados e convenientes. Alguns são até muito bons e extremamente divertidos; mas dez dias depois de lê-los você nem se lembra mais do que leu.
Creio que a literatura atinge sua maturidade, e cumpre seu papel social plenamente, quando tira o leitor do lugar onde ele confortavelmente está, e perturba, questiona, instiga o raciocínio, obriga a pensar sob outro ponto de vista. Falo de textos que, anos e anos após sua leitura, você ainda se lembra claramente, por que exigiram um esforço ao qual não estamos acostumados – e quando digo esforço, não é esforço para entender o que um autor confuso e rebuscado quis dizer, mas sim o esforço de sair do lugar-comum onde o leitor está muito bem, obrigado. Ou acha que está.
É esta peneira que define quais títulos ficarão na minha estante, e quais serão passados adiante. Por que os livros que me incomodaram eu sei que acabarei relendo e relendo e relendo, e a cada releitura eles me mostrarão uma nova porta, um novo caminho, um detalhe que eu não havia percebido antes. E incomodarão ainda mais.
Eis a mágica da maturidade literária.
No entanto, a maioria dos novos autores ainda produz literatura de recreação. Escrevem livros bons, de relativa qualidade, mas que são apenas isso: bons e de relativa qualidade.
E não é por que o novo autor não tem capacidade ou condições de escrever um texto instigante e incomodativo; é por que, geralmente, o novo autor quer da literatura somente confetes sobre a cabeça, e textos que instigam e incomodam são mais fáceis de serem descartados pela grande mídia e pelo grande público – que é formado, infelizmente, por leitores muitas vezes limitados e facilmente manipulados.
Não acho que o objetivo final do escritor deva ser a fama. Pois, quando é mais importante ser conhecido do que ser reconhecido, as chances de se tornar um autor medíocre e irrelevante aumentam substancialmente.
Ademais, para escrever um livro que obrigue o leitor a pensar é necessário que o próprio autor pense sobre o que irá escrever antes de escrever – e são poucos os que trabalham assim. A maioria senta na frente do computador e passa a digitar com frenesi, pois, ingenuamente, acredita que literatura é mais inspiração do que transpiração.
Todavia, devo dizer que não são somente os novos autores que costumam produzir literatura de entretenimento. Muitos escritores renomados, e alguns até consagrados, e que publicam através de grandes selos e em grandes veículos de comunicação, são, também, autores que não pretendem incomodar ninguém. Querem apenas contar uma boa história e depois ir para casa, dormir em paz. Muitos construíram uma carreira invejável escrevendo livros que o leitor esquecerá dez dias depois de lê-los.
Não estou dizendo, naturalmente, que eu sou uma escritora que perturba; que o meu texto já atingiu sua maturidade social, e deixou de ser apenas entretenimento. Bom se fosse! Mas posso garantir que é o que eu procuro, incansavelmente. Não foi nem uma e nem duas vezes que ouvi de amigos e familiares: “Não escreva sobre isso, Jana”. “Tu só vai se incomodar se tocar neste assunto”. “Melhor não mexer no vespeiro”. “Fica na tua, guria!”.
Nunca dei ouvidos para estes amigos e familiares. Porque, se não é para escrever sobre o que eu não devo escrever; se não é para incomodar; se não é para mexer no vespeiro; qual a razão de escrever?
A literatura mansa e politicamente correta tem o seu valor, sem dúvidas. Mas é a literatura indomada e politicamente incorreta que faz a diferença, e distingue os grandes dos médios e pequenos.
Pense nisso quando for escrever, amigo autor.
Não se esqueça de que a literatura é, provavelmente, a única espada que você possui para se defender, e também para atacar. E se você entregar esta espada ao inimigo, ou se a pendurar na parede como um enfeite bonitinho, eu pergunto: o que sobrará para você?
Talvez não venham os aplausos que você tanto espera, pois muitos leitores ficam tão desconfortáveis por serem arrancados de seus respectivos sofás, que passam a ignorar o autor – apesar de dificilmente esquecê-lo.
Talvez você nunca escreva para grandes veículos de comunicação, por que poucos deles estão dispostos a assumir colunistas capazes de dar uma opinião concreta, consistente, sem maquiagem (“afinal, o anunciante pode não gostar”).
Talvez você nunca publique por uma grande editora, pois elas também preferem livros de entretenimento, que vendem mais e incomodam menos.
Mas eu acho que este é um preço baixo a se pagar.
Caro é escrever somente o que os outros querem ler, e falar apenas o que os outros querem ouvir, e ser nada além do que os outros querem que você seja: pacífico, obediente, domesticado.
Já existem muitos escritores e artistas fazendo exatamente o que esperam que eles façam. Não precisamos de mais do mesmo.
Então, caro amigo autor: não abra mão de usar a espada que tem nas mãos.
Porque, como disse o escritor Fausto Wolff, “Antes de voltar a escrever, eu quero poder escolher o meu lado do ringue”.



Jana Lauxen é produtora cultural e escritora, autora dos livros Uma Carta por Benjamin (Ed. Multifoco, 2009) e O Túmulo do Ladrão (Ed. Multifoco, 2013). 

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