terça-feira, 13 de janeiro de 2015


A MORTE ANUNCIADA DE MÁRIO GOMES

Batista de Lima
Diário do Nordeste

Quando Mário Gomes casou-se com Fortaleza, fazia escuro e nós cantávamos versos na Casa de Juvenal Galeno. 68 era um ano que prenunciava não ter mais fim. Todos os sonhos se dilaceravam e Mário ainda tinha os pés e a mãe no Bonsucesso. Sua cabeça, entretanto oscilava entre a praça e a nuvem. No auge dessa dúvida, ele pregava uma orgia universal, mais ou menos com as palavras daquele simbolista maldito que de plena França gritou um dia: "embriagai-vos/ não importa de que/ mas embriagai-vos". Sua embriaguez era pela loura ainda desposada do sol. Era pelo coração dela, aquela mesma praça que um dia Paula Nei cismou de abandoná-la, fugindo para o Sul, e José Albano de tanto amá-la, preferiu dela fugir para mochilar em Europa, França e Bahia.
Mário Gomes conquistou o coração de sua amada. Deixou o subúrbio sem mala e sem cuia, sem a mãe e sem os comprimidos e montou presença no nervo mais exposto de sua amada, a Praça do Ferreira. Ali montou escritório em um de seus bancos de cimento e brisa, reuniu seus vassalos, todos fardados de lirismo e sonhos e desreinou poeticamente por décadas. Ali açoitou, com seus gritos poéticos, multidões de tributáveis criaturas que não vislumbravam aquele ninho em que a poesia chocava ovos de lirismo. Mistura de Whitman com Artaud, reunia, em torno de si, seu séquito de guardiões das musas e ensaiava os passos da desloucura pairante. Amava Fortaleza como habitante de seu coração.
Como acontecera antes com Antônio Girão, um dia ficou prenhe desta cidade, de musculatura avariada. Gritou para as oiças da sua amada que era a última salvação desta dama emparedada. Assim foi sendo preservado por ela, sem mãe, sem medicamentos, ao sol e à chuva como um arauto de um apocalipse iminente. Mário Gomes profetizou, nós é que não lhe demos crédito. Alojou-se nos seus sapatos e em conluio com seu pensamento rebelde proclamou que o sonho não havia morrido naqueles distantes anos de chumbo e que ele estava ali onde um dia Barbosa de Freitas e Joaquim de Souza o havia plantado. Mário Gomes dizia, nós é que não acreditávamos. Apenas contávamos as horas que faltavam para a indesejada levá-lo para o mundo dos ventos que não voltam.
Último dos byronianos de nosso chão, ultimamente esteve no limiar entre a loucura e a lucidez. Não se vestiu de uma nem de outra, preferiu o paletó amarfanhado, a barba por fazer e os sapatos por residência. Vasculhou o corpo da cidade onde ela mais pulsa, onde todos os caminhos se cruzam, num tecido de destinos e pressas. Ali ele instalou-se, observador desse fluir, mar, e Mário e estuário, deglutindo antropofagicamente a neura alada da urbe atravessada por infinitas interrogações. Nunca entendeu porque a legião de seus antigos companheiros, que brandiam o verso como arma, sucumbiram entre gravatas, bravatas e cifras, aos encantos da Dalila do enquadramento social.
Carneiro Portela, Márcio Catunda, Aírton Monte, Pádua Lima, Iton Lopes, Valden Luís, Nelson Freitas, Jackson Sampaio, Josênio Parente, Silvino Neves, Luiz Ribeiro, Pedro Albino, Rembrant Esmeraldo, Renato Saldanha, Ricardo Guilherme, Nonato de Brito, todos faziam poesia, mas Mário Ferreira Gomes vivia a poesia e era salvo por ela. E do alto dos seus versos verberava: "Meu nome é pensamento/Moro nos meus sapatos". Por conta desse desmonte do convencional, tornou-se único no seu "motus vivendi". Daí já ter sido tema de dissertação de mestrado e ter no seu séquito de discípulos, quem sugerisse até a mudança do nome Praça do Ferreira para Praça Mário Gomes.
Como 2014 foi ano em que muitos literatos migraram para não mais voltarem, ele pegou a fila humildemente como último colocado. Deixou que fossem Ivan Junqueira, João Ubaldo, Ariano Suassuna, Artur Eduardo Benevides, Manoel de Barros e Nilto Maciel. Foi aí que ele aproveitou o embalo e também se foi sem nos dar adeus. Antes, no entanto protestou: "Vivo encarcerado nessa carcaça de carne e osso por nome Mário Gomes, mas um dia me libertarei, dando descanso a esse pobre coitado". Dele para ele, continuava: "Mário Gomes, me desculpe, mas às vezes você me enraivece com sua sede, com sua embriaguez, com sua fome".
Esse pensamento e a vida dissoluta ele já transportava, nos estertores da década de 1960, quando beletrávamos nas noites dos sábados no Clube dos Poetas Cearenses. Ao final das reuniões, íamos para nossas casas e Mário ia para os braços da sua musa, a noite fortalezense. Essa musa o segurou para além das nossas previsões. Alcançou a linha de chegada aos 67 anos de vida airosa, levando sempre a esperança à frente e os desenganos atrás. "Beijei a boca da noite / e engoli milhões de estrelas / fiquei iluminado", disse ele no poema "Ação gigantesca". "Quando estou aqui na praça e cai uma folhinha em mim, penso que foi um beijo que a natureza me deu".
Na sua irreverência assumida, sempre se proclamou "vagabundo e malandro". E na sua biografia fazia questão de acentuar sua aposentadoria aos 29 anos como louco. Compromissado unicamente com a máxima liberdade possível, curtiu prisões, fez grandes viagens de carona e a pé e quando internado no manicômio ainda teve a lucidez de enumerar os 12 choques elétricos que lhe aplicaram. Com essas torturas, tornaram-no mais poeta, mais habitante da margem esquerda dessa correnteza em que o resto da população é levada como boiada servil. Dos seus oito livros deixados, dos amigos que ficaram, dos parceiros Márcio Catunda e Alcides Pinto, há um verso que caracteriza bem o seu viver: "Foi gostoso viver".


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