Cid Ottoni Bylaardt
É poeticamente demonstrável que uma meia tigela
pode mais como continente de poesia do que uma tigela inteira. Na tigela
inteira os poemas são totalizantes, unificantes, acabados e definidos; na outra
tudo é meio: não há espaço para determinações conclusivas, os poemas se soltam,
desgarram-se, ficam sempre pelo meio: meio assim, meio assado, meio dizendo,
meio sugerindo, meio escondendo, mantendo a suspensão dos sentidos, preservando
a intransitividade entre o fazer e seu objeto, a poesia. Assim, o que cabe na
tigela deste poeta, posto que meia? Inicialmente, a fragmentação, a diversidade
e a superposição de textos sugerem uma bagunça poética de gêneros, estilos e
recursos. A impressão inicial vai sendo desfeita aos poucos, pela sedimentação
de alguns traços que persistem, sem, entretanto, quebrar a expectativa de algo
novo que sempre surge aos olhos do leitor. Ao final, bem ao final, o foguetório
parece querer organizar o inorganizável. Talvez essa seção seja mais útil aos
comentadores, analistas, prefaciadores etc. do que à própria poesia, que
prescinde dela. Mas tem lá sua utilidade, sua guisa de roteiro.
Um conjunto, o que alude à sapiência
de Bashô, reúne haikais, epigramas, poemas curtinhos de bate-pronto à maneira
leminskiana de saques, piques, toques & baques. Os Epiquilos parecem
apontar para a solidão da existência, os fracassos, os planos desfeitos ou
não-feitos, como sabê-los se não pudermos tê-los?, as dificuldades do coração,
a condição do poeta de dejeto humano. Em As Musas Alheias comparecem as
mulheres, as do cinema, predominantemente, mas também a marquesa, as mulheres
dos romances, a mulher sensual. No Sonetódromo correm, evidentemente... os
sonetos. As subversongs trazem paródias e paráfrases de textos de ícones
musicais das últimas décadas: os Beatles (com direito ao passeio desengonçado
dos quatro pela Abbey Road), os Rolling Stones, Paul Simon, Osbourne, Burdon,
Morrisey etc. Em Conta-Gotas, algumas reflexões pontuais sobre a inutilidade
dos anjos, as condenações e absolvições absurdas, a aniquilação da humanidade,
a sapiência, as malícias não reveladas da igreja católica, até um estranho
desenho de uma gota remendada ou um ovário portando um bizarro óvulo
cibernético com anteninhas, mais fácil teria sido perguntar a uma criança, que
importa o sentido? Em Oratório aparecem os textos de contrição, de devoção,
coisas dos deuses cristãos, das nossas-senhoras, dos jesus-cristos, tudo bem
alinhavado, rimado e ritmado, ladainha em procissão de bons sentimentos
religiosos. Finalmente, sob a designação Profissão de Fé surgem os metapoemas
que atestam a insuficiência e as lacunas da linguagem, sua incomunicabilidade,
mas ao mesmo tempo não abrem mão das brincadeiras com as palavras, e procura
deixá-las falar, encenando o jogo da poesia, signos lá e cá, sim, e mais: o
sacrifício em que as palavras são as vítimas, além de mãozinhas dançantes e
pinguinhos bruxuleantes.
Há aí formas reconhecíveis e
anunciadas, como o haicai e o soneto, a ligar os textos ― com todas suas transgressões ― a uma tradição poética de centenários vários. E há também
a forma não prevista, não planejada, em que as palavras se rebelam aos desejos
do poeta e vão se desalinhando como podem. Há ainda as não-palavras,
importantes na construção deste poetar, a compor a dança dos signos: os ícones,
os desenhos, os esquemas gráficos com sentidos aparentes e inaparentes,
difíceis de fixar o significado, de estabelecer o rumo, como todo jogo poético
que possa levar este nome.
Eis aí a meia tigela do poeta, a que
nunca se encherá e jamais cessará de transbordar, buscando sempre instaurar,
inaugurar, oferecer sentidos e não-sentidos, a trilhar um caminho de linguagem
que não anuncia a chegada. E não chega.
(Prefácio do livro Girândola, do Poeta de Meia-Tigela)