sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

FEITIO POÉTICO DE MEIA TIGELA



Cid Ottoni Bylaardt


É poeticamente demonstrável que uma meia tigela pode mais como continente de poesia do que uma tigela inteira. Na tigela inteira os poemas são totalizantes, unificantes, acabados e definidos; na outra tudo é meio: não há espaço para determinações conclusivas, os poemas se soltam, desgarram-se, ficam sempre pelo meio: meio assim, meio assado, meio dizendo, meio sugerindo, meio escondendo, mantendo a suspensão dos sentidos, preservando a intransitividade entre o fazer e seu objeto, a poesia. Assim, o que cabe na tigela deste poeta, posto que meia? Inicialmente, a fragmentação, a diversidade e a superposição de textos sugerem uma bagunça poética de gêneros, estilos e recursos. A impressão inicial vai sendo desfeita aos poucos, pela sedimentação de alguns traços que persistem, sem, entretanto, quebrar a expectativa de algo novo que sempre surge aos olhos do leitor. Ao final, bem ao final, o foguetório parece querer organizar o inorganizável. Talvez essa seção seja mais útil aos comentadores, analistas, prefaciadores etc. do que à própria poesia, que prescinde dela. Mas tem lá sua utilidade, sua guisa de roteiro.

      Um conjunto, o que alude à sapiência de Bashô, reúne haikais, epigramas, poemas curtinhos de bate-pronto à maneira leminskiana de saques, piques, toques & baques. Os Epiquilos parecem apontar para a solidão da existência, os fracassos, os planos desfeitos ou não-feitos, como sabê-los se não pudermos tê-los?, as dificuldades do coração, a condição do poeta de dejeto humano. Em As Musas Alheias comparecem as mulheres, as do cinema, predominantemente, mas também a marquesa, as mulheres dos romances, a mulher sensual. No Sonetódromo correm, evidentemente... os sonetos. As subversongs trazem paródias e paráfrases de textos de ícones musicais das últimas décadas: os Beatles (com direito ao passeio desengonçado dos quatro pela Abbey Road), os Rolling Stones, Paul Simon, Osbourne, Burdon, Morrisey etc. Em Conta-Gotas, algumas reflexões pontuais sobre a inutilidade dos anjos, as condenações e absolvições absurdas, a aniquilação da humanidade, a sapiência, as malícias não reveladas da igreja católica, até um estranho desenho de uma gota remendada ou um ovário portando um bizarro óvulo cibernético com anteninhas, mais fácil teria sido perguntar a uma criança, que importa o sentido? Em Oratório aparecem os textos de contrição, de devoção, coisas dos deuses cristãos, das nossas-senhoras, dos jesus-cristos, tudo bem alinhavado, rimado e ritmado, ladainha em procissão de bons sentimentos religiosos. Finalmente, sob a designação Profissão de Fé surgem os metapoemas que atestam a insuficiência e as lacunas da linguagem, sua incomunicabilidade, mas ao mesmo tempo não abrem mão das brincadeiras com as palavras, e procura deixá-las falar, encenando o jogo da poesia, signos lá e cá, sim, e mais: o sacrifício em que as palavras são as vítimas, além de mãozinhas dançantes e pinguinhos bruxuleantes.   

       Há aí formas reconhecíveis e anunciadas, como o haicai e o soneto, a ligar os textos ― com todas suas transgressões ― a uma tradição poética de centenários vários. E há também a forma não prevista, não planejada, em que as palavras se rebelam aos desejos do poeta e vão se desalinhando como podem. Há ainda as não-palavras, importantes na construção deste poetar, a compor a dança dos signos: os ícones, os desenhos, os esquemas gráficos com sentidos aparentes e inaparentes, difíceis de fixar o significado, de estabelecer o rumo, como todo jogo poético que possa levar este nome.

       Eis aí a meia tigela do poeta, a que nunca se encherá e jamais cessará de transbordar, buscando sempre instaurar, inaugurar, oferecer sentidos e não-sentidos, a trilhar um caminho de linguagem que não anuncia a chegada. E não chega.

(Prefácio do livro Girândola, do Poeta de Meia-Tigela)

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