O POVO: 85 anos presente no Ceará V
Raymundo Netto especial para O POVO
João Dummar
“Nós, radialistas cearenses, devemos a João Dummar a nossa profissão (...)”
Narcélio Limaverde
O ano: 1941. O jornal O POVO, por meio de Demócrito Rocha e Paulo Sarasate, lança campanha junto ao comércio, além da implantação do sistema de assinaturas em longo prazo, com o objetivo de angariar recursos para compra de novos equipamentos e da primeira sede própria. Dentre os anunciantes, o amigo e futuro genro, João Dummar, “um rapaz alto, gordo, olhos azuis, sempre alegre, com intensa vida social. Solteirão, bonitão, rico, o Rodolfo Valentino das moças da terra. Um gentleman, um coração do tamanho do Pão de Açúcar.”(1)
João Dummar nasceu em Damasco, Síria, em 1903. Seus pais e a família — eram cinco os filhos — migraram ao Brasil. A princípio, em Belém do Pará, dirigindo-se depois a uma atrasada Fortaleza de 1910. Em janeiro do ano seguinte, com o falecimento de sua mãe, Adla, o pai, Demétrio, decidiu estabelecer comércio, a Princesa do Norte, no Crato, onde os filhos cresceriam entre atividades comerciais, teatro, música e o futebol (o seu irmão, Jorge, fundou, em 1919, o Crato Football Club).
Em 1921, com objetivo de ampliar a loja, a família inaugurou sede em Fortaleza. Os filhos João e José, então, seriam sócios do pai. Porém, em 1926, Demétrio sofreu infarto fulminante, e, dois anos mais tarde, os dois irmãos — João com 25 anos —, fundariam a Casa Dummar, na Floriano Peixoto, onde representariam a Philips, a Philco (vendiam rádios e receptores), os pianos Essenfelder (costumava tocá-los na loja como “demonstração”), a Remington, a Brunswich, a RCA Victor, o automóvel Skoda e diversas outras marcas de eletrodomésticos da época, não apenas para o Ceará, mas ao resto do país.
Jovem, excelente comerciante e visionário em seu tempo, João era grande apreciador de arte e da cultura, principalmente da música (chegava a vender pessoalmente os discos de sua loja), e sonhava em implantar a primeira estação de rádio do Ceará, por saber da amplitude que teria a radiodifusão na propagação da cultura, principalmente a cearense, além de democratizar o acesso do povo à boa música brasileira que surgia, mas que, praticamente, estava concentrada nas mãos, e ouvidos, dos mais abastados. Eduardo Campos conta: “(...) Mas o seu forte mesmo era o lado artístico, acentuado gosto musical, em quinze minutos de conversa ele e eu íamos de anúncios a aspiradores de pó, de baterias para rádios e concertos de piano, à música clássica...”(2)
Assim, em 28 de agosto de 1931, há 82 anos, João Dummar fundou a Ceará Rádio Clube, associação integrada por amadores da radiotelefonia (como se chamavam as atividades de radiodifusão), e, em 30 de maio de 1934, são inauguradas as instalações da Ceará Rádio Clube, operando com transmissor no bairro Damas e com estúdio na rua Barão do Rio Branco, sistema de ondas curtas, que recebeu em seus programas de auditório, durante anos (a Era Dourada do Rádio), cantores e músicos nacionais e locais, como: Orlando Silva (inaugurou a Rádio), Francisco Alves, Chico Viola, Uyara de Goiás, Milton Milfont, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Lauro Maia, Romeu Menezes, “4 Azes e 1 Coringa” (conjunto batizado por Demócrito), José Menezes, As “Três Marias”, etc. Dentre os programas, a “Hora da Saudade” e “Coisas que o Tempo Levou”, com o speaker José Limaverde (pai do grande radialista Narcélio Limaverde), “Jazz PRE-9”, com Lauro Maia, “Sorriso de Iracema”, com Paulo Cabral de Araújo, a “Hora Infantil” (aos sábados e dedicado às crianças), com Zilda Maria Rodrigues e o próprio João, além do “Arte e Pensamento”, dirigido por Filgueiras Lima. Na época, a Rádio recebia retorno de ouvintes da Austrália, África do Sul, Califórnia, Inglaterra, dentre outros. O seu estúdio chegou a ter dois pianos, um francês, de cauda, e um nacional, baú. Nos cafés de Fortaleza se encontravam pequenos rádiorreceptores, em caixas de madeira, onde se ouviam os noticiários e a programação da PRE-9 — como era chamada a Rádio —, além de alto-falantes distribuídos em pontos estratégicos da cidade, até na Coluna da Hora, no centro da Praça do Ferreira. Conseguiu João, em discos de acetato, os primeiros lançamentos de Dorival Caymmi. Sem dúvida, João Dummar foi um dos maiores incentivadores dos profissionais da música cearense, empregando e apoiando muitos (cedendo-lhes até instrumentos musicais, além de contratar locutores, diretores artísticos, músicos, maestros, cantores, redatores, técnicos, etc.) que conseguiram destaque, inclusive no exterior (Lauro Maia, por exemplo), representando um dos maiores elementos da história da comunicação cearense. Também ele, iniciou a utilização do veículo para anúncios, ampliando o comércio cearense para o nordeste e ao mundo. Na sede da PRE-9 também formou uma orquestra de câmara, dirigida por Hércules Vareto, maestro italiano. E, daí, surgiu-lhe grande problema: era período de guerra. A Itália fazia parte do “Eixo”, aliada à Alemanha de Hitler. Na época, João mandou colocar, no topo do Ed. Diogo (segunda sede da PRE-9), uma série de pisca-piscas. Então, correu uma boataria de que “aquilo” emitia mensagens codificadas do “italiano” (o maestro) para os submarinos inimigos. O cônsul americano em Fortaleza ameaçou fechar a emissora com denúncia ao governo, o que só não aconteceu devido à intervenção do amigo Demócrito Rocha.
Demócrito, sensível em reconhecer talentos e o empreendedorismo das novidades, logo se afeiçoou ao jovem Dummar e passou a criar com ele campanhas e concursos, como o de versos, além de um festival de marchas carnavalescas cujo juiz foi Ary Barroso, inesquecível autor de “Aquarela do Brasil”. Era muito comum serem vistos juntos em eventos locais, sendo estreitados os laços de amizade quando João passou a frequentar a sua casa, e apaixonou-se por Lúcia, a caçula do jornalista.
Em 1941, João adquiriu um moderníssimo transmissor de ondas curtas, o terceiro instalado no Brasil (os outros dois pertenciam à Rádio Nacional do Rio de Janeiro e Rádio Clube de Pernambuco), fazendo da PRE-9 uma das mais sofisticadas e avançadas estações radiofônicas brasileiras.
Em 1944, João Dummar, a contragosto, após diversas manobras de Assis Chateaubriand para adquirir a Ceará Rádio Clube, a vendeu. Motivo: a lei exigia que os direitos de concessão de radiodifusão só pudessem ser cedidos a brasileiros natos ou naturalizados. João não o era, e a burocracia toda estava emperrada, principalmente após a implantação do Estado Novo. Assim, em 11 de janeiro de 1944, rendeu-se às investidas e a sua rádio passou a fazer parte da rede dos Diários e Rádios Associados.
Em 28 de janeiro de 1944, João casou-se com Lúcia e, dessa união, nasceram seis filhos: Demócrito, Lúcia Maria, Lúcia Helena, João Dummar Filho, Carmen Lúcia (que, segundo João, era a que mais se assemelhava à avó, Adla) e Albanisa Lúcia.
João, apesar da idade, tinha diversos problemas de saúde. Em 14 de julho de 1954, por conta de uma peritonite, faleceu. A Ceará Rádio Clube, assim como outras rádios locais, guardou um minuto de silêncio e pesar em homenagem a este homem que partia, com apenas 51 anos, o grande pioneiro e defensor da radiodifusão no Ceará, incentivador da cultura de um Ceará que o acolhera. (3)
(1) Edmar Morel, jornalista e antigo vendedor da Casa Dummar, em depoimento para O POVO, em 1984.
(2) Eduardo Campos, para Traços de União, de Adísia Sá, 1999.
(3) Para saber mais sobre João Dummar, leia João Dummar: um pioneiro do rádio, de João Dummar Filho, das Edições Demócrito Rocha.