terça-feira, 5 de março de 2013


                                           MAPA DE ERRÂNCIAS 3

Por Carlos Vazconcelos

Estou quase concluindo a leitura de O óbvio ululante, crônicas memorialísticas de Nelson Rodrigues. O velho escriba era um gozador. Tinha o poder de desnudar o lado mais torpe da alma humano. Poucos, na literatura brasileira, além de Machado de Assis, o conseguiram de maneira translúcida. Implicava com alguns vultos da época, e quando isso acontecia, era desassossego para a “vítima”, que virava personagem das crônicas semanais. Implicava, por exemplo, com D. Hélder (a personalidade mais citada no livro: 38 vezes), com Alceu Amoroso Lima e outros católicos. Incomodava-se com os doutrinadores, os moralistas, os seres cheios de certeza. Como não via possibilidade de perfeição no ser humano, observava as atitudes dos “homens de boa vontade” com desconfiança e sempre ávido por encontrar goteiras no telhado. Percebe-se frustração quando não as encontra. As referências a João Guimarães Rosa são impagáveis (com a licença da expressão clichê). São passagens em que Nelson dá uma perfeita amostragem de suas próprias contradições, temperadas sempre com  fina ironia e tamanho cinismo. Nunca poupou críticas à “esquerda” brasileira, o que lhe rendeu o rótulo de reacionário. Em Nelson, percebe-se nitidamente a diferença entre o homem e o criador. O segundo não aceitava amarras e apresentava a vida como ela é. O primeiro tinha moral própria, de homem comum, com seus medos, dúvidas e tabus. Só não aceitava doutrinadores. É o rei da frase de efeito, criadas sempre com muita perspicácia. Podemos surpreendê-lo sentimental: “A perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real.” Romântico: “Nasceu comigo o horror de trair. Eu queria ser fiel e que todos fossem fiéis. Amar a mesma, sempre. (...) A minha mais doce utopia era morrer como ser amado.” Reacionário (e atual): “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota.” “Canalha” e “pulha” são palavras recorrentes, de sua preferência, quase uma marca. Narra inclusive o episódio em que escutou pela primeira vez a palavra “canalha”. Não apenas a palavra “canalha”, mas os próprios “canalhas” o fascinavam. E já que o assunto é memória, também tenho as minhas. Lembro que na minha cidade também havia um menino precoce que cedo logo ganhou o apelido de “Canalha”. Ele fazia pose de canalha, e quando tentava disfarçar a alcunha, bancar o homem sério, mais canalha se tornava. Ainda vou descobrir quem batizou o Canalha de canalha. E fico a me perguntar: Já existia em Tianguá algum leitor de Nelson Rodrigues? 

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