Entrevista de Pedro Salgueiro a Breno Fernandes
(Muito
– Revista Semanal do Grupo “A Tarde”)
Pedro Salgueiro (Tamboril, Ceará, 1964) é da
geração que ficou conhecida como Geração 90, por conta da compilação homônima
organizada por Nelson de Oliveira. Salgueiro tem editados os livros de contos O
Peso do Morto (1997), O Espantalho (1996), Brincar
Com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007),
de contos; além de Fortaleza Voadora, de crônicas. Vencedor do
Concurso Guimarães Rosa, da Rádio France Internationale, e do Prêmio de Contos
da Biblioteca Nacional/Instituto Nacional do Livro para obras em curso, dentre
outros. Tem contos nas coletâneas Contos Cruéis, Geração 90:
manuscritos de computador, Os Menores Contos Brasileiros do Século, Quartas
Histórias e Todas as Guerras.
Diz ele que, se essa tal Geração 90 tem algo em comum, é justamente a
falta de um estilo ou temática em comum. De sua parte, prefere ambientar seus
contos nas pequenas cidades.
É possível ensinar a escrever?
Ensinar a escrever, sim, claro, com técnica, boa
gramática e um estudo apurado; agora, escrever com talento é bem mais difícil.
Acredito muito que exista uma capacidade inata para apreender o mundo ao redor
e transportá-lo para o papel em forma de arte; assim como acredito também que
sem um esforço de elaboração, de suor, de tentativas várias, não se consiga
desenvolver um texto de valor maior. Um jogador de futebol esforçado pode até
ser mais eficiente que um craque relapso, mas um craque esforçado vale por mil
apenas esforçados.
O que mais te atrai no conto?
O desafio de tentar dizer tudo o que se tem em
mente com pouquíssimas palavras, de contar uma história ou sensação sem ter que
matar (como bem dizia Clarice Lispector) com palavras as entrelinhas. Acho que
o contista, por causa desse desafio, tende a ter uma técnica mais apurada, um
senso de escolha mais contundente. Como escreveu o argentino Cortázar, o
escritor de contos tem que ganhar a luta de boxe por nocaute (já o romancista
pode muito bem se contentar em vencer por pontos), com um golpe certeiro.
Nunca tentou o romance, a poesia?
Como quase todo jovem comecei escrevendo poesia,
uma poesia muito ruim, imitando a péssima poesia dos poetas marginais dos anos
1970. Com o tempo, e quase sem querer, fui, naturalmente, indo para a prosa curta.
Não acredito que um autor escolha o gênero em que vai escrever melhor, acho que
o gênero é quem escolhe o escritor. Tem pessoas que até pra dar um recado dão
arrodeios, fazem associações em várias direções, traçam paralelos, acabam (se
não tiverem muito talento) confundindo o interlocutor; estes serão os
romancistas. Outros enfeitam tudo que falam, tem uma presença de espírito em
dizer coisas banais; escreverão poesias com êxitos. Já o sujeito seco,
lacônico, fatalmente se sentirá atraído pelo conto. Na maioria das vezes em que
escuto essa pergunta de quando irei escrever um romance, percebo certo ranço de
preconceito para com o contista (não é o seu caso, acredito), como se o romance
fosse um passo além… Então, para desafiar o interlocutor, costumo afirmar que
escreverei um romance quando não tiver mais capacidade de escrever um bom conto
(claro que devolvo o mesmo preconceito, mas serve como vingança).
Minimalismo é escolha estética ou dogma?
É tendência inata, não escolhi escrever contos
curtos com uma consciência teórica, sempre fui lacônico, calado, casmurro… Tudo
o que é derramamento sempre me enfadou muito. Talvez por eu ser de uma região
muito seca (o sertão dos Inhamuns, no Ceará) tenha adquirido uma secura
interior inconsciente; na minha região as pessoas são lacônicas, falam as
frases pela metade, nunca completam o raciocínio começado, têm medo de que a
quentura seque a saliva de suas bocas. Claro que a escolha dos meus autores
prediletos seria por esses parâmetros, da contenção, da secura; da tentativa de
dizer o máximo com o mínimo de palavras. Sempre fui fanático por Machado de
Assis, Juan Rulfo, Dalton Trevisan, Luis Vilela, Tchekov, Moreira Campos e
outros mini(ani)malistas.
Qual o ponto em comum dos autores
chamados Geração 90?
Apesar de ter participado da
coletânea Geração 90: Manuscritos de Computador, organizada por
Nélson de Oliveira, eu nunca consegui ver uma identidade comum entre os muitos
autores, eu mesmo sempre me senti um peixe fora d’água dessa turma toda, pois
ainda faço uns contos ambientados em cidades pequenas, quando a maioria é bem
urbana… Talvez o que pareça mais comum nessa minha geração seja a falta de
traços comuns entre seus membros (risos). Sinto-me mais próximo talvez
(descontando o desnível, claro) de um José J. Veiga, de um Graciliano Ramos;
também percebo alguns pontos de contatos dos meus pequenos contos com os que
fazem hoje, por exemplo, Ronaldo Correia de Brito (também cearense) e o
sergipano Antônio Carlos Viana.
O que foi marcante na literatura nos
anos 00?
Acho muito cedo pra que se analise
até mesmo a minha geração, que hoje é composta por tios grisalhos e
barrigudinhos, quanto mais a essa safra maravilhosa de bons autores que pululam
por aí em todos os estados; daqui a uns 20 anos talvez se vislumbre o pouco
trigo perdido em meio a esse imenso matagal de joios. Mas nós precisaremos
sempre de classificações, de amarras, de compartimentos estanques, de
etiquetas… Muitas vezes um autor é bem mais próximo de outro que escreveu um
século antes, outros estão completamente à frente de seu tempo (estes, muito
poucos). Aqui mesmo no Ceará e outros estado do Nordeste vejo uma juventude
muito afoita, muito aguerrida; mas dificilmente agora saberemos quem é fera
mesmo, quem é só fogo de palha… o que se tem aprendido com o passar das
gerações é que sobrevive bem pouca gente, e que nem sempre é quem está na
boleia de sua geração (risos).
Como é seu processo de escrita?
É uma mistura de intuição com técnica
aprendida ao longo de anos de leitura; de erros muitos e acertos poucos; de
muito papel riscado (ainda hoje escrevo à mão as três primeiras versões dos
contos), de cada ano floresce duas ou três historinhas em meu jardim de cactos,
quando muito. Gosto de ficar matutando a narrativa um bom tempo antes de pô-la
no papel, mas às vezes elas vêm de uma vez com uma força danada, como um transe
espírita (o que sempre acho um mistério). Guardo por um bom tempo, releio, vejo
se mantém ainda o fogo do início; penso em outras maneiras de contar a mesma
história, faço variações, submeto aos amigos escritores, à minha companheira,
também mostro para pessoas que não têm muita familiaridade com a literatura,
pra sentir alguns aspectos de compreensão, de efeito das imagens. Porque o
conto tem várias camadas, e alguns níveis de escrita nem todos vão perceber,
mas acho que temos que fazer um bom balanceamento dessas camadas, para que não
caiamos nem no conto raso, anedótico, típico, nem na mera masturbação estética,
preciosa, vazia.
Quem são os escritores que mais te
influenciaram?
Não dou conta de quantos, desde os
livrinhos de caubói que lia na bodega de meu avô, que era viciado, fanático
mesmo, passando pelos cordéis de feira (tão comuns em minha região), que
passavam da voz dos cantadores para o papel ruim das tipografias, até os livros
ditos literários mesmo. Sempre li de tudo, de literatura barata aos clássicos.
Claro que com o tempo você vai se apegando a alguns autores, que foram vários
em diversas épocas; teve o tempo do realismo mágico, li quase tudo de Jorge
Luis Borges, Garcia Márquez, Vargas Lhosa, Júlio Cortázar, veio a época dos
clássicos nacionais, dos estrangeiros, me ficaram alguns autores de cabeceira,
como Juan Rulfo, Graciliano, Moreira Campos, John Fante, Salinger, Dalton
Trevisan, José J. Veiga e diversos outros que volto de vez em quando. Agora
mesmo estou relendo todo o Tchekov que tenho guardado, e que prazer renovado,
que força, que sensibilidade. Onde terá aprendido tanto da alma humana em tão
pouco tempo de vida aquele discreto médico de província, de família miserável e
atitudes discretas? Um mistério! Agora tento aprender mesmo é com o livrão do
mundo, como bem disse Raduan Nassar em uma de suas raras entrevistas (Cadernos
de Literatura, do Instituto Moreira Sales).
Que obra dita grandiosa você leu e
achou ruim?
Diversas grandes obras da humanidade
li sem nenhum prazer, mais por incapacidade minha, por pressa, por estar mais
interessado em outras coisas; de alguns autores esperava muito e me
decepcionei, muitos anos depois, por contingência de um relançamento ou outro
qualquer, fui reler e adorei. Uma grande obra não é nunca ruim, outros é que
são os nossos anseios, expectativas. A primeira vez que li os contos de Juan
Carlos Onetti achei um “saco”, monótonos; eu ainda estava impregnado de García
Márquez e seu turbilhão de imagens, não poderia gostar mesmo naquele momento,
tempos depois me tornei fanático pela obra do uruguaio, que hoje tenho toda num
lugar bem seguro da estante, sempre ao alcance da mão.
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