sábado, 28 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015


UM DÂNDI PÓS-MODERNO


Pedro Salgueiro
Jornal O Povo 14-02-2015


Difícil alguém não ter ainda avistado pelas ruas de nossa loirinha desmiolada pelo sol esse sujeito branquelo, alto e desengonçado, com esvoaçante cabeleira branca, calças quase sempre de cores pouco convencionais, camisetas igualmente com estampas aberrantes, oclinhos de John Lennon a dar realce ao rosto estranho de nariz longo e olhos esbugalhados. Não raro alguém o confunde com um excêntrico estrangeiro, um desses predadores que invadem nossa Fortaleza Voadora durante o ano inteiro atrás de nossos sol, sal e putas. Impunemente, o indiscreto caminhante palmilha rua a rua de nossa provinciana metrópole, bairro após bairro, distribuindo sorrisos e conversando com todos, de singelas donas de casas que varrem calçadas a belas e incautas moças namoradeiras; nosso don juan de subúrbio parece estar em mil lugares ao mesmo tempo.

Eu mesmo conheci esse singular personagem faz 10 anos, quando ia com meu amigo Sânzio de Azevedo para uma festa do livro em Aracati: mal nos sentamos no apertado transporte quando apareceu – com seu sorriso cativante e a inseparável máquina fotográfica a tiracolo, já se apresentando como escritor recém publicado – aquele que se tornaria um de meus melhores amigos dos últimos tempos: em poucos minutos o cabeludo resumiu sua vida inteirinha, falou do seu passado de aluno do Colégio Militar de Fortaleza, fisioterapeuta com clínica montada, quadrinista premiado, militante ecológico, também contou dos seus projetos presentes e futuros, deu opinião abalizada sobre dúzia e meia de assuntos, de música popular brasileira a culinária, de política a futebol, isso tudo sem parar um instante sequer, levantar-se, tirar fotos, perguntar alguma coisa ao motorista e, pasmem, até fazer amizade com o restante dos passageiros do lotação.

Daquele dia em diante nos tornamos amigos de convivência quase diária, além de dividirmos há 8 anos uma coluna alternada e quinzenal no jornal O Povo: aprendemos o novo ofício de cronistas na marra, eu – um casmurro ermitão que mal fala e que quase não sai de casa – tive (e tenho ainda) sérias dificuldades; já ele – conversador nato e andarilho de primeira linha, desses que ficam a vontade em qualquer local e com variadas classe social dialoga sem assombros – se sentiu em casa. Um dandy a flanar pela cidade, a colher assuntos com sua sensibilidade fina, sua simpatia ambulante, seu sorriso cativante e seus gestos largos. Em pouco tempo estava senhor da situação, zanzando de ônibus com José de Alencar, batendo papo com Milton Dias e, acreditem, sentado na Praça dos Leões com Raquel de Queiroz; enfim: costurando o presente e o passado de maneira leve e criativa – mas não se enganem com a espontaneidade do andarilho de óculos redondos e calças listradas, por trás dele se encontra um leitor voraz, um pesquisador cuidadoso e dedicado, amante dos nossos clássicos alencarinos – deles sabe quase tudo, e o que ainda não aprendeu descobre em demoradas ligações para o grande Sânzio de Azevedo, sempre tão disponível a todos que o procuram.

Ao talento literário soma-se uma vocação danada para editar livros, trabalho que faz com um amor só comparável ao que tem pelas duas filhas gêmeas, para as quais demonstra um comovente amor paternal, orgulhoso e dedicado, desses que lhe marejam os olhos e lhe tremem a fala só de recordá-las.

Todos os que convivem com Raymundo Netto são unânimes em exigir dele uma maior dedicação à literatura: que escreva logo a esperada continuação da sua novela Cadeiras na Calçada (que faz agora mesmo dez anos de publicação), que lance uma segunda edição do seu inquietante (e premiado) livro de contos Acangapebas, que, enfim, deixe um tempinho em sua apertada agenda de trabalho para burilar seus novos textos. E quando cobramos, quase exigimos, ele apenas ri, mas como ele ri de quase tudo e de todos, ficamos na esperança de que não massacre com trabalhos vãos o seu excepcional talento literário.

Felizes já ficamos ao sabermos que, para comemorar os 10 anos de sua estreia em livro e os 8 anos de escritas jornalísticas, ele organizou uma coletânea de suas crônicas dO Povo – especificamente aquelas que tratam de temas literários –, a que deu o sugestivo (e ambíguo) título de Crônicas Absurdas de Segunda.

A esse amigo raro, incansável editor, pai amoroso, escritor com talentos vários, desejamos que lhe venham mais décadas e décadas de crônicas, novelas, contos, quadrinhos, filhos e amores – mas que não deixe nunca de flanar por aí, chafurdando ruas, criando caminhos pelas nossas irregulares calçadas, que não deixe jamais de colocar suas velhas cadeiras nelas, que continue povoando brancas páginas com seus insólitos (e tão nossos) personagens e, principalmente, não deixe de nos brindar a todos – os muitos amigos e até os raríssimos inimigos – com sua presença marcante, criativa, amorosa e terna.





CORRESPONDENTES E ALITERADOS: AS PROSAS E VERSOS DO BONFIM

Valdemar Neto


Quando converso sobre literatura, as coisas nunca saem como eu pensava. Na verdade, as coisas ganham uma profundidade de espírito. Eu acabo ficando tão hermético que, ainda consigo notar, o único que vai entender as coisas seria só eu mesmo. Quando converso de literatura, ainda me resguardo cabisbaixo, olhando o chão e com a voz trêmulo e, mesmo dominando o conteúdo, ainda sou inseguro em como falar. Como? Como falar, escrever, defender, refutar uma arte tão antiga? Mãe das artes, patrona dos vocábulos, rainha da bateria da liberdade? Eu tenho é na verdade um caso de amor com a literatura e um amor só meu. Reservo-me ao direito de permanecer envolto na imensidão apaixonante que é a literatura, até lá, vou tentar me abrir um pouco em como é essa relação. 

Mais estranho do que falar sobre literatura é falar de um amigo que a faz de maneira magistral. A literatura escolhe bem do seu vasto rebanho quem ela irá abençoar com o conhecimento milenar do 'ver-o-mundo' pelos olhos das eternas musas. Luciano Bonfim é um destes escolhidos do rebanho e professa tal arte de uma maneira bem singular, dentro das (des)continuidades da nossa famigerada época contemporânea. Tanto o seu verso quanto a sua prosa nos surgem de uma maneira livre das formas que os antigos e, sobretudo hoje, confusos papas parnasianos não conseguem compreender - ou não querem, ou não desejam, ou apenas invejam. Ah! Libertária! A arte ainda rima bem, rima muito bem com esse adjetivo. As obras do Bonfim nos transmitem uma simplicidade misturada a uma subjetividade próprias das coisas da arte. A simplicidade acha residência nos meios em como ele nos conta história ou escreve versos: usando uma linguagem bem próxima, inerente ao leitor e que desabrocha o mundo diante das retinas ávidas de novidades. Já o subjetivismo, dito lar da pós-modernidade, é o espírito que move as suas obras. Há em Bonfim uma clara amostra do ser que fala por um código hermético, revisto aos olhos enevoados do cotidiano e que busca a mais pura beleza dentro das feridas vastas do dia-a-dia. A crueza dos seus livros, pequenas obras, mas de grande peso, trazem uma cor derivada do trivial, do estranho e incompreendido mundo das imensidões diárias, das conversas com liquidificadores e das cartas à Van Gogh e Kierkegaard, sempre nunca correspondidas (ainda, no mais tardar, talvez...). Gosto muito de ler os livros do Bonfim naqueles minutos em que ninguém mais consegue alcançar a retina feita de pura luz das auroras. Quero a música da dança dos sapatos, as 'hestórias' e os instantâneos presos aos aliterados versos dos dias que teimam em não passar e só pela lente 20/30 do autor que vemos como eles descontinuam.
Eis aqui uma pequena história/análise de cada um dos livros do Bonfim que o tenho por ali, pela estante..

Naqueles idos dias de inverno de 2009, veio-me às mãos pelo próprio autor o 'Móbiles', seu segundo livro. Eu, ainda um 'enfant terrible' aluno-acalourado da Letras da UVA, saí daquela coordenação agraciado com aquele presente. Sobre o autor? Já o conhecia, e pra pouco dali seria um aluno seu. Bonfim é alguém que se pode conversar sobre tudo sem medo das palavras que sairão dele. Li o 'Móbiles' ali mesmo na Universidade, naquele corredor das placas que faz uma ponte da reitoria para onde ficam os cursos de Biologia e Contábeis. A minha impressão aqui é a mesma daquele tempo: o livro é muito belo, simples, atraente. A prosa me encanta pelo fato de ela ir além da retina e concepções pré-formadas sobre muita coisa. Os 'movimentos' que o livro faz, trazem ao leitor uma ideia da prosa disforme ou pré-forme, contando amiúdes entre desparecimentos, pré-romances e palhaços, este últimos 'riem de dentro da pra fora, somente por entre os dentes, somente através do público. De perto, eles não têm graça nenhuma'. As viagens narrativas nos fazem ver cartas inéditas, escritas além do tempo para Kierkegaard ('em compensação, é imprudente esconder-se atrás de uma porta entreaberta'), Caio ('lembra da moça de óculos?') e Clarice ('vai ser difícil escrever esta história! Pois sempre serei o teu amante'). Outras intermitências poéticas, correspondentes, em versos e prosas quase versadas ganham o espaço do livro. A literatura de Bonfim nos aproxima do imortal desejo de tocar a essência das coisas escondidas no dia-a-dia. O lúdico verso de 'Móbiles', em suas páginas finais, denota o fazer poético de dentro dos moldes livres da nossa era de aquário (ainda? Será?) Eis o poeta de Bonfim: 'procuro fugir do nada original lugar comum e perco-me em lugar nenhum.'. Nesta obra, os lapsos poéticos do autor não se resumem somente a produção, mas a uma análise do fazer literário: 'escrever é igualzinho a comer mel de engenho com farinha'. Logo, 'Móbiles', traz, desde o título essa manifestação da poesia de maneira movedora, criativa, que escapa da realidade para se afundar mais nela. Foi por ali que, nesse caminho do inverso, eu dancei com aqueles sapatos...

[o poeta;
(foto de Hudson Costa, outro poeta, da luz da câmera)

Comprei o primeiro livro do Bonfim das mãos do próprio, num bazar promovido pelo curso de Pedagogia onde ele é professor. Ainda aluno, mas não mais um 'enfant terrible' e sim um iniciante monográfico variando em gregos e românticos. Era nos fins de 2010. O mundo girava, a gente agora falava 'Presidenta' e tínhamos o delicioso hábito de adivinhar as chuvas do caju que nunca mais vieram. 'Dançando com sapatos que incomodam', como todo primeiro livro, é arauto de uma responsabilidade além do nexo. É ali que o autor põe em evidência o seu modus operandi de escrever. Bonfim se mostra bem criativo em delinear, em suas consagradas cartas, vontades de eu lírico atordoado com o redor. Eu digo eu lírico, mas bem que, no elementar delírio das estruturas narrativas, eu poderia inscrever 'nar-ra-dor'. Mas o quê? Ainda poesia, ainda 'narra-a-dor' (alguém já disse isso? Não sei...). Os contos trazem, em uma leitura bem aprofundada, uma noção de 'antologia-da-vida-inteira até aquele momento'. De certo modo, Bonfim estava preparado para aquele primeiro livro, não por que escreveu antes para antologias e tal, mas o verbo já não cabia só a ele: precisava de mim, dela, de nós, os leitores. As ânsias de um escritor a beira do caos interno, escreve, longe das cronologias, à Van Gogh. Pobre J., 'a pior tarefa não será fazê-los acreditar. E sim eu mesmo me convencer, não tenho esta convicção. A única coisa que conseguirei: a distância'. As palavras das narrativas de Bonfim fluem e convergem para uma continuação e vivência do ser, 'muitas vidas, tantas mortes - vermes espreitam'. As palavras vão, espreitam, tal qual os vermes, as janelas do cotidiano. A cor de Bonfim vem na música daqueles sapatos. Sapatos zombeteiros que seguem passos uníssonos entre as cores dos dias. Bonfim nos chama, ora com Debussy, ora com Chopin a dançar. E nós dançamos, dançamos com o amor, onde, eu tenho medo desse sentimento: 'João partiu  Azar o dele  Vera ficará comigo  Entretanto temo represálias'. Dançamos ao som, ao som das coisas que se passam despercebidas, coisas que nunca mais os viajantes olharam, pois estão ocupados procurando entender as formas poéticas do falar bem. Eis um beloCenário, 'capim santo, grama, sacos de sanduíche, papéis avulsos, flores e garrafas plásticas... Borboletas reclamam olhos viajantes!'... Há ali toda a matéria poética. O primeiro livro do Bonfim já anunciava o que viria depois, os seus 'Móbiles', os seus 'Instantâneos'... Leia 'dançando...'

Alitere, agora.

O dia em que recebi o livro 'Aliterar Versos 20/60 + alguns instantâneos' foi o dia em que embarquei na literatura cearense com meu livrinho de poesia sobre o Ipu, terra de mim. Bonfim se prestou a apresentar o meu livro no lançamento lá na UVA (fiquei honrado duplamente). Folheei os versos do livro num domingo banhado de vinho. Novamente, Bonfim constrói uma poesia livre, leve. Aliterar versos é quase que uma brincadeira que o poeta faz com a arte literária. A sua construção poética é imaginativa em plenos ares de liberdade sem anseio. As temáticas vão para além das coisas quotidianas, um traço evidente nas obras do escritor e tocam a pele da literatura num suspiro cálido de voz e verso, eis a arte: 'lascívia: l'art-pour-l'art / alma alcança ares / fortuita, fugitiva, fugaz?'. O verso desabrocha, esmiuçando os dias em tons cada vez mais melódicos e transcendentes. Descrevem o agora poético que se torna o pra sempre. Sentimentos que perduram: 'Amor, aleatório almanaque / Sublime sensação. Surto. / Errática exímia emoção.'. Aliados aos versos, ganham as páginas amarelas do seu livrinho verde, ó, Bonfim, teus instantes! Retratos dos dias, mais e mais, infintos os teus dias e e mesmo assim, os lapsos instantâneos desde dias cabem nas páginas do livro. Em miúdas narrativas. Salve o escriba dos nossos dias.

As obras, eis o autor pelos corredores do campus Betânia. Mais uma vez, poesia.


sábado, 21 de fevereiro de 2015



Negada Solidão",
De Raymundo Netto para O POVO (21.2)



A solidão é o retiro em si mesmo. O monólogo diante da plateia vazia. A arena devoradora de leões. A nascente da criação. A inspiração de capela. A sugestão da palavra contida. A cortina cerrada na janela. O soluço de medo. O piscar do olho. A luz das estrelas quando do nascer do sol.

Muitos não se permitem a companhia da solidão. Tentam se lhe escapar, entretidas em birôs abarrotados de trabalho ou em risonhas mesas de bar, nas constantes reuniões de grupos, na conexão ininterrupta das mídias e redes sociais, cercados de amigos eletrônicos que, como nuvens e sonhos, os deixam no primeiro soprar de vento. Entretanto, inconscientes, aproximam-se cada vez mais dela, só que de mãos vazias, sem nada lhe oferecer. A solidão exige completude, dedicação e, acima de tudo, verdade!

No exercício da solidão, deve-se permitir o autoabandono, o salto de paraquedas – ou sem ele –, o caminhar doloroso nas brasas de pânico daquilo que desconhecemos ou do que tememos perder ou mudar. É mais fácil lançar as nossas chagas num retrato a óleo de Dorian Gray, do que permitir o mergulho dentro de si, ir além das rugas e acnes, explorar as dobras e depressões íntimas, geralmente escuras e úmidas, aqueles infernos que nos revelam e nos assemelham ao propalado Deus da creação, pois, como espelhos distorcidos, nos amedrontam, nos causam estranhamento diante da máscara ridícula e preenchem de ilusões a nossa vã identidade.

O ser humano é um átomo diante do grande universo. Talvez menos do que isso, se eu tivesse sido melhor aluno de Física, o que não fui, assim como consegui não aprender tudo aquilo que, por um motivo ou por outro – geralmente imposição era o grande motivo – decidi não levar comigo, assim como o xadrez e a datilografia.

Escolhas. A nossa vida é determinada por elas. Nada nos chega que não tenhamos construído (leia-se “escolhido”) ao longo dos anos. Vale responsabilizar-se pelas consequências que atribuímos à má sorte ou àquele(a) criatura que nunca nos deu a mão ou negou o seu amor.

Carregamos nos ombros o entulho dessa má elaborada engenharia. E ele pesa, cega, sufoca e, se nós deixarmos, não nos abandona.

Não raro, por não suportar a si mesmos, os solitários necessitam de lugares com espaço, ar, pouca luz e muitos ruídos. Saem à noite, em fuga do seu espinhoso encontro consigo mesmo, e sentem carência de pessoas, muitas delas. Encostados em paredes, feito espectros algemados em correntes de angústias, não são notados nem ouvidos. Incapazes de pensar ou decidir um futuro – não que precise fazê-lo, pois quem é solitário priva de uma liberdade à beira da indecência –, torna-se um observador a viver a vida do outro, alimentando-se das sobras das alegrias e emoções alheias, em simbiose com esses estranhos comuns, num consortismo antihedonista social.

Noutros dias, a seu redor, apenas os grilos lhe despertam do andar superior dos pensamentos e penosos psiquismos. É quando ouve a canção que diz ser a sua alucinação suportar o dia a dia e o porvir da lembrança do corpo delirado que cai do oitavo andar.




segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015



Sábado de carnaval. Aniversário do Bernivaldo Carneiro e Manuel Casqueiro. E os Poetas de Quinta sempre presentes.



POETAS DE QUINTA
Rosa Virgínia, Casqueiro e Gislânia
Silas Falcão, Luciano Bomfim, Pedro Salgueiro, Casqueiro







Eudismar Mendes







Bernivaldo Carneiro


O Carnaval do Poeta de Meia-Tigela