segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015




CORRESPONDENTES E ALITERADOS: AS PROSAS E VERSOS DO BONFIM

Valdemar Neto


Quando converso sobre literatura, as coisas nunca saem como eu pensava. Na verdade, as coisas ganham uma profundidade de espírito. Eu acabo ficando tão hermético que, ainda consigo notar, o único que vai entender as coisas seria só eu mesmo. Quando converso de literatura, ainda me resguardo cabisbaixo, olhando o chão e com a voz trêmulo e, mesmo dominando o conteúdo, ainda sou inseguro em como falar. Como? Como falar, escrever, defender, refutar uma arte tão antiga? Mãe das artes, patrona dos vocábulos, rainha da bateria da liberdade? Eu tenho é na verdade um caso de amor com a literatura e um amor só meu. Reservo-me ao direito de permanecer envolto na imensidão apaixonante que é a literatura, até lá, vou tentar me abrir um pouco em como é essa relação. 

Mais estranho do que falar sobre literatura é falar de um amigo que a faz de maneira magistral. A literatura escolhe bem do seu vasto rebanho quem ela irá abençoar com o conhecimento milenar do 'ver-o-mundo' pelos olhos das eternas musas. Luciano Bonfim é um destes escolhidos do rebanho e professa tal arte de uma maneira bem singular, dentro das (des)continuidades da nossa famigerada época contemporânea. Tanto o seu verso quanto a sua prosa nos surgem de uma maneira livre das formas que os antigos e, sobretudo hoje, confusos papas parnasianos não conseguem compreender - ou não querem, ou não desejam, ou apenas invejam. Ah! Libertária! A arte ainda rima bem, rima muito bem com esse adjetivo. As obras do Bonfim nos transmitem uma simplicidade misturada a uma subjetividade próprias das coisas da arte. A simplicidade acha residência nos meios em como ele nos conta história ou escreve versos: usando uma linguagem bem próxima, inerente ao leitor e que desabrocha o mundo diante das retinas ávidas de novidades. Já o subjetivismo, dito lar da pós-modernidade, é o espírito que move as suas obras. Há em Bonfim uma clara amostra do ser que fala por um código hermético, revisto aos olhos enevoados do cotidiano e que busca a mais pura beleza dentro das feridas vastas do dia-a-dia. A crueza dos seus livros, pequenas obras, mas de grande peso, trazem uma cor derivada do trivial, do estranho e incompreendido mundo das imensidões diárias, das conversas com liquidificadores e das cartas à Van Gogh e Kierkegaard, sempre nunca correspondidas (ainda, no mais tardar, talvez...). Gosto muito de ler os livros do Bonfim naqueles minutos em que ninguém mais consegue alcançar a retina feita de pura luz das auroras. Quero a música da dança dos sapatos, as 'hestórias' e os instantâneos presos aos aliterados versos dos dias que teimam em não passar e só pela lente 20/30 do autor que vemos como eles descontinuam.
Eis aqui uma pequena história/análise de cada um dos livros do Bonfim que o tenho por ali, pela estante..

Naqueles idos dias de inverno de 2009, veio-me às mãos pelo próprio autor o 'Móbiles', seu segundo livro. Eu, ainda um 'enfant terrible' aluno-acalourado da Letras da UVA, saí daquela coordenação agraciado com aquele presente. Sobre o autor? Já o conhecia, e pra pouco dali seria um aluno seu. Bonfim é alguém que se pode conversar sobre tudo sem medo das palavras que sairão dele. Li o 'Móbiles' ali mesmo na Universidade, naquele corredor das placas que faz uma ponte da reitoria para onde ficam os cursos de Biologia e Contábeis. A minha impressão aqui é a mesma daquele tempo: o livro é muito belo, simples, atraente. A prosa me encanta pelo fato de ela ir além da retina e concepções pré-formadas sobre muita coisa. Os 'movimentos' que o livro faz, trazem ao leitor uma ideia da prosa disforme ou pré-forme, contando amiúdes entre desparecimentos, pré-romances e palhaços, este últimos 'riem de dentro da pra fora, somente por entre os dentes, somente através do público. De perto, eles não têm graça nenhuma'. As viagens narrativas nos fazem ver cartas inéditas, escritas além do tempo para Kierkegaard ('em compensação, é imprudente esconder-se atrás de uma porta entreaberta'), Caio ('lembra da moça de óculos?') e Clarice ('vai ser difícil escrever esta história! Pois sempre serei o teu amante'). Outras intermitências poéticas, correspondentes, em versos e prosas quase versadas ganham o espaço do livro. A literatura de Bonfim nos aproxima do imortal desejo de tocar a essência das coisas escondidas no dia-a-dia. O lúdico verso de 'Móbiles', em suas páginas finais, denota o fazer poético de dentro dos moldes livres da nossa era de aquário (ainda? Será?) Eis o poeta de Bonfim: 'procuro fugir do nada original lugar comum e perco-me em lugar nenhum.'. Nesta obra, os lapsos poéticos do autor não se resumem somente a produção, mas a uma análise do fazer literário: 'escrever é igualzinho a comer mel de engenho com farinha'. Logo, 'Móbiles', traz, desde o título essa manifestação da poesia de maneira movedora, criativa, que escapa da realidade para se afundar mais nela. Foi por ali que, nesse caminho do inverso, eu dancei com aqueles sapatos...

[o poeta;
(foto de Hudson Costa, outro poeta, da luz da câmera)

Comprei o primeiro livro do Bonfim das mãos do próprio, num bazar promovido pelo curso de Pedagogia onde ele é professor. Ainda aluno, mas não mais um 'enfant terrible' e sim um iniciante monográfico variando em gregos e românticos. Era nos fins de 2010. O mundo girava, a gente agora falava 'Presidenta' e tínhamos o delicioso hábito de adivinhar as chuvas do caju que nunca mais vieram. 'Dançando com sapatos que incomodam', como todo primeiro livro, é arauto de uma responsabilidade além do nexo. É ali que o autor põe em evidência o seu modus operandi de escrever. Bonfim se mostra bem criativo em delinear, em suas consagradas cartas, vontades de eu lírico atordoado com o redor. Eu digo eu lírico, mas bem que, no elementar delírio das estruturas narrativas, eu poderia inscrever 'nar-ra-dor'. Mas o quê? Ainda poesia, ainda 'narra-a-dor' (alguém já disse isso? Não sei...). Os contos trazem, em uma leitura bem aprofundada, uma noção de 'antologia-da-vida-inteira até aquele momento'. De certo modo, Bonfim estava preparado para aquele primeiro livro, não por que escreveu antes para antologias e tal, mas o verbo já não cabia só a ele: precisava de mim, dela, de nós, os leitores. As ânsias de um escritor a beira do caos interno, escreve, longe das cronologias, à Van Gogh. Pobre J., 'a pior tarefa não será fazê-los acreditar. E sim eu mesmo me convencer, não tenho esta convicção. A única coisa que conseguirei: a distância'. As palavras das narrativas de Bonfim fluem e convergem para uma continuação e vivência do ser, 'muitas vidas, tantas mortes - vermes espreitam'. As palavras vão, espreitam, tal qual os vermes, as janelas do cotidiano. A cor de Bonfim vem na música daqueles sapatos. Sapatos zombeteiros que seguem passos uníssonos entre as cores dos dias. Bonfim nos chama, ora com Debussy, ora com Chopin a dançar. E nós dançamos, dançamos com o amor, onde, eu tenho medo desse sentimento: 'João partiu  Azar o dele  Vera ficará comigo  Entretanto temo represálias'. Dançamos ao som, ao som das coisas que se passam despercebidas, coisas que nunca mais os viajantes olharam, pois estão ocupados procurando entender as formas poéticas do falar bem. Eis um beloCenário, 'capim santo, grama, sacos de sanduíche, papéis avulsos, flores e garrafas plásticas... Borboletas reclamam olhos viajantes!'... Há ali toda a matéria poética. O primeiro livro do Bonfim já anunciava o que viria depois, os seus 'Móbiles', os seus 'Instantâneos'... Leia 'dançando...'

Alitere, agora.

O dia em que recebi o livro 'Aliterar Versos 20/60 + alguns instantâneos' foi o dia em que embarquei na literatura cearense com meu livrinho de poesia sobre o Ipu, terra de mim. Bonfim se prestou a apresentar o meu livro no lançamento lá na UVA (fiquei honrado duplamente). Folheei os versos do livro num domingo banhado de vinho. Novamente, Bonfim constrói uma poesia livre, leve. Aliterar versos é quase que uma brincadeira que o poeta faz com a arte literária. A sua construção poética é imaginativa em plenos ares de liberdade sem anseio. As temáticas vão para além das coisas quotidianas, um traço evidente nas obras do escritor e tocam a pele da literatura num suspiro cálido de voz e verso, eis a arte: 'lascívia: l'art-pour-l'art / alma alcança ares / fortuita, fugitiva, fugaz?'. O verso desabrocha, esmiuçando os dias em tons cada vez mais melódicos e transcendentes. Descrevem o agora poético que se torna o pra sempre. Sentimentos que perduram: 'Amor, aleatório almanaque / Sublime sensação. Surto. / Errática exímia emoção.'. Aliados aos versos, ganham as páginas amarelas do seu livrinho verde, ó, Bonfim, teus instantes! Retratos dos dias, mais e mais, infintos os teus dias e e mesmo assim, os lapsos instantâneos desde dias cabem nas páginas do livro. Em miúdas narrativas. Salve o escriba dos nossos dias.

As obras, eis o autor pelos corredores do campus Betânia. Mais uma vez, poesia.


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