UM DÂNDI
PÓS-MODERNO
Pedro Salgueiro
Jornal O
Povo 14-02-2015
Difícil
alguém não ter ainda avistado pelas ruas de nossa loirinha desmiolada pelo sol
esse sujeito branquelo, alto e desengonçado, com esvoaçante cabeleira branca,
calças quase sempre de cores pouco convencionais, camisetas igualmente com
estampas aberrantes, oclinhos de John Lennon a dar realce ao rosto estranho de
nariz longo e olhos esbugalhados. Não raro alguém o confunde com um excêntrico
estrangeiro, um desses predadores que invadem nossa Fortaleza Voadora durante o
ano inteiro atrás de nossos sol, sal e putas. Impunemente, o indiscreto
caminhante palmilha rua a rua de nossa provinciana metrópole, bairro após
bairro, distribuindo sorrisos e conversando com todos, de singelas donas de
casas que varrem calçadas a belas e incautas moças namoradeiras; nosso don juan
de subúrbio parece estar em mil lugares ao mesmo tempo.
Eu mesmo conheci esse singular personagem faz 10 anos, quando ia com meu amigo Sânzio de Azevedo para uma festa do livro em Aracati: mal nos sentamos no apertado transporte quando apareceu – com seu sorriso cativante e a inseparável máquina fotográfica a tiracolo, já se apresentando como escritor recém publicado – aquele que se tornaria um de meus melhores amigos dos últimos tempos: em poucos minutos o cabeludo resumiu sua vida inteirinha, falou do seu passado de aluno do Colégio Militar de Fortaleza, fisioterapeuta com clínica montada, quadrinista premiado, militante ecológico, também contou dos seus projetos presentes e futuros, deu opinião abalizada sobre dúzia e meia de assuntos, de música popular brasileira a culinária, de política a futebol, isso tudo sem parar um instante sequer, levantar-se, tirar fotos, perguntar alguma coisa ao motorista e, pasmem, até fazer amizade com o restante dos passageiros do lotação.
Daquele dia
em diante nos tornamos amigos de convivência quase diária, além de dividirmos há
8 anos uma coluna alternada e quinzenal no jornal O Povo: aprendemos o novo
ofício de cronistas na marra, eu – um casmurro ermitão que mal fala e que quase
não sai de casa – tive (e tenho ainda) sérias dificuldades; já ele –
conversador nato e andarilho de primeira linha, desses que ficam a vontade em
qualquer local e com variadas classe social dialoga sem assombros – se sentiu
em casa. Um dandy a flanar pela cidade, a colher assuntos com sua sensibilidade
fina, sua simpatia ambulante, seu sorriso cativante e seus gestos largos. Em
pouco tempo estava senhor da situação, zanzando de ônibus com José de Alencar,
batendo papo com Milton Dias e, acreditem, sentado na Praça dos Leões com
Raquel de Queiroz; enfim: costurando o presente e o passado de maneira leve e
criativa – mas não se enganem com a espontaneidade do andarilho de óculos
redondos e calças listradas, por trás dele se encontra um leitor voraz, um
pesquisador cuidadoso e dedicado, amante dos nossos clássicos alencarinos –
deles sabe quase tudo, e o que ainda não aprendeu descobre em demoradas
ligações para o grande Sânzio de Azevedo, sempre tão disponível a todos que o
procuram.
Ao talento literário soma-se uma vocação danada para editar livros, trabalho que faz com um amor só comparável ao que tem pelas duas filhas gêmeas, para as quais demonstra um comovente amor paternal, orgulhoso e dedicado, desses que lhe marejam os olhos e lhe tremem a fala só de recordá-las.
Todos os que
convivem com Raymundo Netto são unânimes em exigir dele uma maior dedicação à
literatura: que escreva logo a esperada continuação da sua novela Cadeiras na
Calçada (que faz agora mesmo dez anos de publicação), que lance uma segunda
edição do seu inquietante (e premiado) livro de contos Acangapebas, que, enfim,
deixe um tempinho em sua apertada agenda de trabalho para burilar seus novos
textos. E quando cobramos, quase exigimos, ele apenas ri, mas como ele ri de
quase tudo e de todos, ficamos na esperança de que não massacre com trabalhos
vãos o seu excepcional talento literário.
Felizes já
ficamos ao sabermos que, para comemorar os 10 anos de sua estreia em livro e os
8 anos de escritas jornalísticas, ele organizou uma coletânea de suas crônicas
dO Povo – especificamente aquelas que tratam de temas literários –, a que deu o
sugestivo (e ambíguo) título de Crônicas Absurdas de Segunda.
A esse amigo
raro, incansável editor, pai amoroso, escritor com talentos vários, desejamos
que lhe venham mais décadas e décadas de crônicas, novelas, contos, quadrinhos,
filhos e amores – mas que não deixe nunca de flanar por aí, chafurdando ruas,
criando caminhos pelas nossas irregulares calçadas, que não deixe jamais de
colocar suas velhas cadeiras nelas, que continue povoando brancas páginas com
seus insólitos (e tão nossos) personagens e, principalmente, não deixe de nos
brindar a todos – os muitos amigos e até os raríssimos inimigos – com sua
presença marcante, criativa, amorosa e terna.
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