Ilustração de Lúcio Cleto
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
O AFILHADO. CRÔNICA DE PEDRO SALGUEIRO
Qualquer desavisado que percorra esse imenso país chamado Sertão pensará – erroneamente, é claro! – que todas as nossas cidadezinhas são iguais, ou bastante parecidas: a mesma igreja ladeada por uma praça, as mesmíssimas casinholas de porta e janela com suas calçadas de cimento morto; aquele povinho simples com sua existência pacata, enfim: nossa bendita vidinha besta de matutos! Mas que nada, cada lugarejo tem suas especificidades, seus encantamentos, suas idiossincrasias...
Morei por muito tempo numa residência estudantil – no simpático prédio da UFC ali na Praça da Gentilândia, apelidada de REU 125 ou REU Grande – e lá convivi com mais de uma centena de estudantes do interior, vindos praticamente de todas as regiões do estado: serranos, sertanejos, jaguaribanos, caririenses e até praianos. Adorava ouvir as historinhas bobas que cada um contava de suas “aldeias”, talvez uma forma de matar a nostalgia do meu “torrão” natal, de ir aos poucos enganando a minha tristeza bebendo a saudade alheia.
Também relatava aos colegas as “pérolas” perdidas do meu pequeno Tamboril, já quase extraviadas na memória de estudante exilado na capital. Riam muito quando eu dizia que aquele picolé em saco que quase todos chamavam de “dimdim”, ou “sacolé”, ou “geladinho”... por lá era simplesmente denominado de “cafona”; isso mesmo, sem nenhuma cerimônia pedíamos: “me dê aí duas cafonas”; e até mesmo as tolas brincadeiras da minha infância despertavam o interesse dos companheiros, como aquela em que desocupados comerciantes, talvez por não terem com o que se divertir, chamavam uma criança que perambulasse pelos arredores e davam a ela qualquer agrado para que fosse pegar a “chave do forno” no outro lado da cidade, chegando lá o coitado era mandado pra mais longe – alguns inocentes passavam a tarde cruzando ruas, até que aparecesse uma alma boa e os livrasse daquela maldosa (e infinita) tarefa.
Não acreditavam que meus queridos contemporâneos ainda apostassem disputadas corridas de rua, muito menos que se divertissem chamando de longe alguém pelo nome – “Fulaaaano!!!” – e quando o incauto desavisadamente olhasse assustado ouvia (em meio às primeiras gargalhadas) essa frase sem sentido: “Pega um bombom!!!”.
Porém o que mais lhes despertava a curiosidade era quando eu revelava que para chegar ou sair de nosso querido município, a qualquer hora do dia e até da noite, todos os ônibus da única empresa que circulava por lá tinham que – obrigatoriamente –parar no Alto do Bruto, onde se descortina a bela vista da cidade, para que (acreditem!) um simpático cego adentrasse o veículo e calmamente recolhesse suas esmolas. Os conterrâneos não estranhavam, pois desde pequeninos presenciavam a cena: que achavam tão natural quanto o badalar do sino antes das missas do Padre Helênio, a vista do serrote “Feiticeiro” ou o barulho d’água da barragem “Pedra-e-cal” nos invernos bons; já alguns viajantes censuravam o acontecimento, até protestavam com o motorista pela demora inesperada; quando então o pacato funcionário tinha que pacientemente explicar ao incomodado que o bendito ceguinho era afilhado do dono da empresa de ônibus.
(Crônica originalmente publicada no jornal O POVO, em 20/02/2016)
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016
Cinco espelhos e muitas desimagens
Batista
de Lima
“E5pelhos” é uma
antologia com cinco poetas. O primeiro deles, Carlos Nóbrega, desdiz-se. Não é
nada. É apenas feliz. Como árvore embriagada de vento, ele se embriaga de
poesia. Sua paixão lembrada é a moça da lata do Leite Moça. Na vingança dos
espelhos, estampa-se a ausência de Borges. Para não ser como duna que dura
algum vento, ele se poemiza pétreo à beira de um zodíaco, esperando um trem
antes do trilho. Como herança para algum póstero, ele leva, como prenda, três
batatas e uma felicidade. E se até o coqueiro enlouquece com o vento, quem será
ele para não desenraizar-se montado nos panos de sono, todos sujos de sonhos?
Carlos Nóbrega tem um boi incomodado que berra no seu cinto, se contorce no casaco,
mexe-se no prato quente para lhe dizer que também tem alma. Entretanto, foi no
dia em que pintou de palavras sua página branca que sua inocência fugiu
envergonhada. Esse poeta ferrado pelo vento leva nos ossos a inscrição CN, tu
és poeta, e sobre este abismo em que caem as horas, plantarei minhas trombetas
para que anuncie a ressurreição dos versos.
Frederico Régis é um poeta desbiografado. Seu verso é seu exame de sangue.
Quando apresenta o poema “Curatela”, abre as comportas dos açudes que carregamos
e os faz sangrar pelas janelas de nossas almas. Pungente e belo, dorido de um
lirismo avassalador, é o melhor poema da coletânea. Depois, para completar, nos
oferece seus avós nos semblantes de seus tios, numa lanterna sobre a mesa, numa
bengala sobre a praia. Que poeta memorial! Mesmo arrependido pelo que não fez,
imagine se tivesse feito. Depois sai a perguntar: “Onde será que te guardei?”
Frederico Régis é poeta das dimensões da memória, a reconstruir compartimentos.
Seu inventário poético é de quem não foi criança em vão.
Jorge Furtado é poeta itinerante. Transita pelo corpo da cidade como quem
vasculha quartetos de um poema. Sangra pelas bribocas do poema como quem se
esvai pelos escoadouros do Pajeú, do Cocó e do rio Ceará. Seu destino é o
grande estuário desse paiol que é o poema. Avulso como papéis soltos, o vento
que ainda resta é seu guia. No pântano de incógnitas com que se depara vai
plantando mudas poéticas como quem povoa solidões. Nesta selva, o único
transeunte a quem ignora é o tempo. Aos outros oferta versos como quem oferta
lares. Nos seus sonhos bocadioonisíacos, Alcides Pinto lhe oferta musas. Ante o
espelho, saltita o menino que um dia foi.
Lúcio Cleto biografa-se com a palavra e o traço. Sua poesia não se
conforma em ficar apenas enclausurada na palavra. Ela salta do verso e cola nas
paredes semióticas do mundo das coisas. Seus poemas experimentais são ávidos de
dimensões. O símbolo e o ícone bifurcam-se para que o grito lírico seja
crucificado na tela. Surreal é a sua criação. Do sonho à montagem, cada um dos
seus murmúrios vem binário e triádico. Linguístico e semiótico esse poeta busca
uma terceira dimensão do que produz. Nada para ele está definitivo. Tudo flui e
reflui. Há uma correnteza, um fluxo de mensagens que se sobrepõe para dizer
“ecce Cletus”.
Por último aparece o Poeta de Meia-Tigela, ou o Poeta de Tigela-e-Meia, ou
Alves de Aquino, querendo distar-se do que o cerca. Começa sonetando natalýnicamente
em quatro estações. Suas meditações lhe meditam, afinal filosofia e poesia lhe
atravessam, apolíneo e dionisíaco respectivamente. Seu amor pançudo vive da
própria fome. Sua heroína, “Tia Ioiô”, desviveu para dar vida a seu melhor
poema, sua culminância poética. Sua poesia tenta nos salvar a todos doentes de
entulho. Esse poeta, quando transita por esses ínvios caminhos poéticos, sempre
encontra alguns rostos impressos e desertos, algumas lágrimas neblinando sobre
um espinho que lhe perfura entre a unha e a carne.
De tanto se perguntar, Alves de Aquino não sabe de quem são os olhos com
que vê. De tanto se ver, termina por não se conhecer. Não se acha parecido
consigo mesmo, para desventura dos espelhos. Tudo isso quando passa, e o poeta
põe os pés em algum chão, ele metazoa zooludicamente à moda Manoel de Barros,
“passarinho / nota musical / emplumada (…) cachorro / espanador / que late.”
Também quando se refere ao cavalo, ele afirma que o animal “sofre espora / não
despiora / só desmelhora”. Ainda passeando pelo reino animal, impressiona-se ao
ver “o leão leonar / o jacaré jacarelar e o peixe-espada / espadanar-se”. Tudo
isso comprova que esse poeta tigelado desmantela a linguagem e depois lhe dá
uma nova ordem.
O Poeta de Meia-Tigela conclui-se no Departamento de Sonhadoria. Ali,
quando a sombra ameaça anoitecer sua alma é porque a solidão quer lhe passar
cadeado. Terminando seu contingente poético, Alves de Aquino nos oferta um
poema piada da mais bela feitura. E é assim que essa seleta se encerra. O
quinteto que espicha seus poemas ao longo da nossa leitura, nos põe em alerta
diante do fazer poético. Poesia é linguagem, artesanato sofrido. Esses
brinquedos verbais necessitam de experimentações. Coragem e sofreguidão se
aliam nesse parto. Esses cinco poetas quebram seus espelhos para nos mostrar
suas faces estilhaçadas e nos convidar para, na companhia de cada um, tentar
rearrumar esse mundo que desmantelaram.
jbatista@unifor.br
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
ORELHAS DO LIVRO E5PELHOS
Ilustração de Lúcio Cleto (Lucjo Gaivota)
Neste mundo iluminado pelo caos, nesta sala cheia de espelhos, eis
que surge a poesia.
Poesia que des[a]fia a escuridão desde o raiar do dia - e que
amplia a recôndita luz da sua própria imagem e [des]semelhança.
Nesta viagem trago 5 espelhos comigo. 5 espelhos d’alma que ora
dividido contigo. Estes que ora trago comigo podem ser carregados no bolso.
Podem permanecer na sala. Podem te apresentar à vida pelo movimento retrovisor.
Podem, de resto, irem do chão ao teto. Se há um protesto, é este: não devem
ficar encobertos ou parados.
Nalguns destes espelhos não
existe a persistência da forma, mas a insistência da deformação do ser no tempo
e no espaço – cada um a deformar e a decantar a sua imprópria existência. Noutros existe a persistência da forma, apesar
da insistência da deformação do tempo e do espaço.
Espelho é um tipo de casca, uma
semente vadia, uma pirlimpimpimaresia ofuscada pela névoa que a bruma me traz -
diminuto equipamento sobre a escuridão. Escuridão é o lado do espelho que não se revela “de
cara”. Toda poesia é um espelho de si mesma? Toda Poesia é uma luz que foge do
poeta e invade a carapaça do espelho amplificador? Cada poeta é um espelho
disforme?
Espelhos:
alguns ricos; outros furtados; tantos nobres; muitos gaivotas; vários de
meia-tigela.
[Espelhos conforme. Espelhos disformes.
Espelhos de si, fora de si: poetas].
A
alma é um espelho que não se deixa ver facilmente, inclusive a dos poetas. Há um
desencanto lírico e quase apostólico num estilhaço de poeta. Do outro lado
do espelho existe uma tristeza lírica e
um lirismo de desencanto, desde o ar marinho que declamando e rindo ao vento
até a velhice ocorrida a partir dos 16 neste espelho que hoje se desnuda sem
plumas como um cão perdido numa noite só.
Espelho:
você vem me vê e vai
Espelho
é fora, mas pode [ou]vir de dentro – servirá o espelho como anti-recado à
posteridade?
O
espelho que trago comigo me assombra
todas as noites com seus açoites – com a sua abstinência de amor. E nos estilhaços - cuidado
pra não quebrar o nariz na sala dos espelhos - a minhalma enrugada e ressequida;
a minhalma curtida enxovalhada; a minhalma encardida e desbotada; remendada a
minhalma retorcida... Se
esvai...
Tudo
é poesia na sala dos espelhos. Nem toda poesia é sã na sala dos espelhos. Nem
toda alma é sã, principalmente na sala dos espelhos. Na sala dos espelhos, meu amor, quanto tu me dás de alma?
Se há
algo que os espelhos multiplicam mais do que os homens... É o rosto dos mortos.
A ausência - infinitamente ausência! Eis que surge a poesia!
Luciano Bonfim
[E5PELHOS é um livro coletivo dos poetas Carlos Nóbrega, Frederico Régis, Jorge Furtado, Lúcio Cleto e O Poeta de Meia-Tigela e pertence ao Projeto Edições em Coautoria - de Silas Falcão, Editora LuAzul]
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
GIRÂNDOLA, JULIO CORTÁZAR E O POETA DE MEIA-TIGELA, OU: UMA BREVE CRÔNICA LITERÁRIA
Léo Prudêncio
Após ler o
mais novo livro do Poeta de MeiaTigela intitulado Girândola (Substânsia,
2015), relembrei uma conversa rápida que tive, pessoalmente, com ele. Na
ocasião, me falou de alguns livros que viriam a lume e um deles, desde esse
dia, me chamou atenção logo pelo título: Girândola. Indaguei sobre e sua
composição, e ele confidenciou-me (acaba-se agora a surpresa), de que se
tratava de uma obra com indícios cortazarianos (nessa época o autor cearense
estava em contato assíduo com a obra do cronopiano-mor).
Quando o livro
me chegou em mãos e, lendo-o, me deparo com o nome do argentino escrito de
maneira subliminar em um contopoético: "desinvenção da fábula, a ou era
uma vez... para cortar o azar". A forma como os poemas são apresentados
não segue uma linha lógica de sumário, pois eles estão embaralhados ou
misturados com todas as oito divisões do livro: se bem que a (des)ordem não
altera o fator final dessa leitura; mesmo embaralhado, o volume possui uma
unidade poético-textual que nos leva a vasculhar mais e mais a propensa
estrutura verbal-imagética da obra.
O livro é
composto de haicais, palíndromos, sonetos, versos livres e desenhos. Ao final
lemos uma entrevista em que o Poeta responde fazendo uso de versos, como se
estivesse em uma rinha com outro cantador. Para o Poeta de Meia-Tigela tudo
vira poesia: inclusive as 64 contas do rosário. Nesse poema, faz a sua oração
em prol da poesia. Músicas dos Beatles, Black Sabbath, Morrisey dentre outros
servem como empréstimo para a construção de poemas. (Inclusive há um desenho
dos quatro beatles atravessando a famosa rua de Liverpool, e há outro de que
gostei bastante: a figura de Bashô).
Agora eu volto
a falar de Cortázar. Muitos de seus livros incluem gêneros literários de todas
as formas. Em Girândola, com os poemas, desenhos, conto, canções e uma
entrevista, logo deveremos nos perguntar: como classificar um livro desse? Eis
um livroalmanaque, à moda de Cortázar.
Mas, deixemos
o prefaciador desta obra tigelírica, Cid Ottoni Bylaardt, falar: "Assim, o
que cabe na tigela deste poeta, posto que meia? Inicialmente a fragmentação, a
diversidade e a superposição de textos sugerem uma bagunça poética de gêneros,
estilos e recursos. A impressão inicial vai sendo desfeita aos poucos, pela
sedimentação de alguns traços que persistem, sem, entretanto, quebrar a
expectativa de algo novo que surge aos olhos do leitor. Ao final, bem ao final,
o foguetório parece querer organizar o inorganizável. Talvez essa seção seja
mais útil aos comentadores, analistas, prefaciadores etc. Do que à própria
poesia, que prescinde dela."
Alguns autores
já fizeram uso do sumário como guia ou desguia de leitura (vede Tutaméia de
João Guimarães Rosa, em que o sumário inicial é desmentido no sumário final, ou
vede o sumário-guia de O jogo de amarelinha do já tão citado nesta crônica
Julio Cortázar). Os poetas contemporâneos e escritores de uma forma geral fazem
uso de todo o material do livro para compor o poema. Fazem do livro um objeto-poético.
Desvio o
assunto para comentar outros poemas de Girândola, como os que fazem uso da
língua brasileira de sinais, a Libras. A desbiografia do autor, situada no
final do livro, é um capítulo à parte, pois seu nome é reinventado, Aves de
Aquilino, assim como a data e o local de nascimento. O motivo?
Bom, melhor
parar por aqui. Segredar significados e influências é também uma maneira de
incentivar a leitura deste Girândola, se bem que não se precisa de muito
incentivo para ler tal obra literária, pois ela nos chama desde a feitura da
bela capa (de Nataly Pinho). Até o próximo ensaio de orquestra arquitetado pelo
maestro e poeta, este, de tigela transbordante.
*
[Aviso aos navegantes: O Poeta de Meia-Tigela nasceu Alves de Aquino,
em 1974. Todos os livros publicados por ele são coletados do 1nico livro a que
se dedica: Concerto Nº1nico em mim maior
para palavra e orquestra. Poema. Esta obra é formada por quatro movimentos,
cujo primeiro foi publicado integralmente em 2010. Em 2008 uma coletânea de
poemas do segundo movimento foi publicada, e relançada em 2011 com anexos, o Memorial Bárbara de
Alencar & outros poemas. Em 2014 o Poeta organizou uma publicação
coletiva chamada Mutirão e em 2015,
além do Girândola, publicou a
antologia de sonetos que permeia os quatro movimentos do Concerto, saída pela
Confraria do Vento, Miravilha: liriai o
campo dos olhos]
*
Léo Prudêncio é colunista no site LiteraturaBr e autor de Baladas para violão de cinco cordas
(Editora Penalux)
*
Este ensaio foi publicado originalmente em Letras in.verso e re.verso:
http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/12/girandola-julio-cortazar-e-o-poeta-de.html
http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/12/girandola-julio-cortazar-e-o-poeta-de.html