segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O AFILHADO. CRÔNICA DE PEDRO SALGUEIRO




Qualquer desavisado que percorra esse imenso país chamado Sertão pensará – erroneamente, é claro! – que todas as nossas cidadezinhas são iguais, ou bastante parecidas: a mesma igreja ladeada por uma praça, as mesmíssimas casinholas de porta e janela com suas calçadas de cimento morto; aquele povinho simples com sua existência pacata, enfim: nossa bendita vidinha besta de matutos! Mas que nada, cada lugarejo tem suas especificidades, seus encantamentos, suas idiossincrasias...

Morei por muito tempo numa residência estudantil – no simpático prédio da UFC ali na Praça da Gentilândia, apelidada de REU 125 ou REU Grande – e lá convivi com mais de uma centena de estudantes do interior, vindos praticamente de todas as regiões do estado: serranos, sertanejos, jaguaribanos, caririenses e até praianos. Adorava ouvir as historinhas bobas que cada um contava de suas “aldeias”, talvez uma forma de matar a nostalgia do meu “torrão” natal, de ir aos poucos enganando a minha tristeza bebendo a saudade alheia.

Também relatava aos colegas as “pérolas” perdidas do meu pequeno Tamboril, já quase extraviadas na memória de estudante exilado na capital. Riam muito quando eu dizia que aquele picolé em saco que quase todos chamavam de “dimdim”, ou “sacolé”, ou “geladinho”... por lá era simplesmente denominado de “cafona”; isso mesmo, sem nenhuma cerimônia pedíamos: “me dê aí duas cafonas”; e até mesmo as tolas brincadeiras da minha infância despertavam o interesse dos companheiros, como aquela em que desocupados comerciantes, talvez por não terem com o que se divertir, chamavam uma criança que perambulasse pelos arredores e davam a ela qualquer agrado para que fosse pegar a “chave do forno” no outro lado da cidade, chegando lá o coitado era mandado pra mais longe – alguns inocentes passavam a tarde cruzando ruas, até que aparecesse uma alma boa e os livrasse daquela maldosa (e infinita) tarefa.

Não acreditavam que meus queridos contemporâneos ainda apostassem disputadas corridas de rua, muito menos que se divertissem chamando de longe alguém pelo nome – “Fulaaaano!!!” – e quando o incauto desavisadamente olhasse assustado ouvia (em meio às primeiras gargalhadas) essa frase sem sentido: “Pega um bombom!!!”.

Porém o que mais lhes despertava a curiosidade era quando eu revelava que para chegar ou sair de nosso querido município, a qualquer hora do dia e até da noite, todos os ônibus da única empresa que circulava por lá tinham que – obrigatoriamente –parar no Alto do Bruto, onde se descortina a bela vista da cidade, para que (acreditem!) um simpático cego adentrasse o veículo e calmamente recolhesse suas esmolas. Os conterrâneos não estranhavam, pois desde pequeninos presenciavam a cena: que achavam tão natural quanto o badalar do sino antes das missas do Padre Helênio, a vista do serrote “Feiticeiro” ou o barulho d’água da barragem “Pedra-e-cal” nos invernos bons; já alguns viajantes censuravam o acontecimento, até protestavam com o motorista pela demora inesperada; quando então o pacato funcionário tinha que pacientemente explicar ao incomodado que o bendito ceguinho era afilhado do dono da empresa de ônibus.

(Crônica originalmente publicada no jornal O POVO, em 20/02/2016)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016




Cinco espelhos e muitas desimagens


                                               Batista de Lima


E5pelhos” é uma antologia com cinco poetas. O primeiro deles, Carlos Nóbrega, desdiz-se. Não é nada. É apenas feliz. Como árvore embriagada de vento, ele se embriaga de poesia. Sua paixão lembrada é a moça da lata do Leite Moça. Na vingança dos espelhos, estampa-se a ausência de Borges. Para não ser como duna que dura algum vento, ele se poemiza pétreo à beira de um zodíaco, esperando um trem antes do trilho. Como herança para algum póstero, ele leva, como prenda, três batatas e uma felicidade. E se até o coqueiro enlouquece com o vento, quem será ele para não desenraizar-se montado nos panos de sono, todos sujos de sonhos? Carlos Nóbrega tem um boi incomodado que berra no seu cinto, se contorce no casaco, mexe-se no prato quente para lhe dizer que também tem alma. Entretanto, foi no dia em que pintou de palavras sua página branca que sua inocência fugiu envergonhada. Esse poeta ferrado pelo vento leva nos ossos a inscrição CN, tu és poeta, e sobre este abismo em que caem as horas, plantarei minhas trombetas para que anuncie a ressurreição dos versos.
Frederico Régis é um poeta desbiografado. Seu verso é seu exame de sangue. Quando apresenta o poema “Curatela”, abre as comportas dos açudes que carregamos e os faz sangrar pelas janelas de nossas almas. Pungente e belo, dorido de um lirismo avassalador, é o melhor poema da coletânea. Depois, para completar, nos oferece seus avós nos semblantes de seus tios, numa lanterna sobre a mesa, numa bengala sobre a praia. Que poeta memorial! Mesmo arrependido pelo que não fez, imagine se tivesse feito. Depois sai a perguntar: “Onde será que te guardei?” Frederico Régis é poeta das dimensões da memória, a reconstruir compartimentos. Seu inventário poético é de quem não foi criança em vão.
Jorge Furtado é poeta itinerante. Transita pelo corpo da cidade como quem vasculha quartetos de um poema. Sangra pelas bribocas do poema como quem se esvai pelos escoadouros do Pajeú, do Cocó e do rio Ceará. Seu destino é o grande estuário desse paiol que é o poema. Avulso como papéis soltos, o vento que ainda resta é seu guia. No pântano de incógnitas com que se depara vai plantando mudas poéticas como quem povoa solidões. Nesta selva, o único transeunte a quem ignora é o tempo. Aos outros oferta versos como quem oferta lares. Nos seus sonhos bocadioonisíacos, Alcides Pinto lhe oferta musas. Ante o espelho, saltita o menino que um dia foi.
Lúcio Cleto biografa-se com a palavra e o traço. Sua poesia não se conforma em ficar apenas enclausurada na palavra. Ela salta do verso e cola nas paredes semióticas do mundo das coisas. Seus poemas experimentais são ávidos de dimensões. O símbolo e o ícone bifurcam-se para que o grito lírico seja crucificado na tela. Surreal é a sua criação. Do sonho à montagem, cada um dos seus murmúrios vem binário e triádico. Linguístico e semiótico esse poeta busca uma terceira dimensão do que produz. Nada para ele está definitivo. Tudo flui e reflui. Há uma correnteza, um fluxo de mensagens que se sobrepõe para dizer “ecce Cletus”.
Por último aparece o Poeta de Meia-Tigela, ou o Poeta de Tigela-e-Meia, ou Alves de Aquino, querendo distar-se do que o cerca. Começa sonetando natalýnicamente em quatro estações. Suas meditações lhe meditam, afinal filosofia e poesia lhe atravessam, apolíneo e dionisíaco respectivamente. Seu amor pançudo vive da própria fome. Sua heroína, “Tia Ioiô”, desviveu para dar vida a seu melhor poema, sua culminância poética. Sua poesia tenta nos salvar a todos doentes de entulho. Esse poeta, quando transita por esses ínvios caminhos poéticos, sempre encontra alguns rostos impressos e desertos, algumas lágrimas neblinando sobre um espinho que lhe perfura entre a unha e a carne.
De tanto se perguntar, Alves de Aquino não sabe de quem são os olhos com que vê. De tanto se ver, termina por não se conhecer. Não se acha parecido consigo mesmo, para desventura dos espelhos. Tudo isso quando passa, e o poeta põe os pés em algum chão, ele metazoa zooludicamente à moda Manoel de Barros, “passarinho / nota musical / emplumada (…) cachorro / espanador / que late.” Também quando se refere ao cavalo, ele afirma que o animal “sofre espora / não despiora / só desmelhora”. Ainda passeando pelo reino animal, impressiona-se ao ver “o leão leonar / o jacaré jacarelar e o peixe-espada / espadanar-se”. Tudo isso comprova que esse poeta tigelado desmantela a linguagem e depois lhe dá uma nova ordem.
O Poeta de Meia-Tigela conclui-se no Departamento de Sonhadoria. Ali, quando a sombra ameaça anoitecer sua alma é porque a solidão quer lhe passar cadeado. Terminando seu contingente poético, Alves de Aquino nos oferta um poema piada da mais bela feitura. E é assim que essa seleta se encerra. O quinteto que espicha seus poemas ao longo da nossa leitura, nos põe em alerta diante do fazer poético. Poesia é linguagem, artesanato sofrido. Esses brinquedos verbais necessitam de experimentações. Coragem e sofreguidão se aliam nesse parto. Esses cinco poetas quebram seus espelhos para nos mostrar suas faces estilhaçadas e nos convidar para, na companhia de cada um, tentar rearrumar esse mundo que desmantelaram.        
                                                     

                                                                jbatista@unifor.br

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ORELHAS DO LIVRO E5PELHOS

Ilustração de Lúcio Cleto (Lucjo Gaivota)


Neste mundo iluminado pelo caos, nesta sala cheia de espelhos, eis que surge a poesia.

Poesia que des[a]fia a escuridão desde o raiar do dia - e que amplia a recôndita luz da sua própria imagem e [des]semelhança.

Nesta viagem trago 5 espelhos comigo. 5 espelhos d’alma que ora dividido contigo. Estes que ora trago comigo podem ser carregados no bolso. Podem permanecer na sala. Podem te apresentar à vida pelo movimento retrovisor. Podem, de resto, irem do chão ao teto. Se há um protesto, é este: não devem ficar encobertos ou parados.

Nalguns destes espelhos não existe a persistência da forma, mas a insistência da deformação do ser no tempo e no espaço – cada um a deformar e a decantar a sua imprópria existência.  Noutros existe a persistência da forma, apesar da insistência da deformação do tempo e do espaço.

Espelho é um tipo de casca, uma semente vadia, uma pirlimpimpimaresia ofuscada pela névoa que a bruma me traz - diminuto equipamento sobre a escuridão. Escuridão é o lado do espelho que não se revela “de cara”. Toda poesia é um espelho de si mesma? Toda Poesia é uma luz que foge do poeta e invade a carapaça do espelho amplificador? Cada poeta é um espelho disforme?

Espelhos: alguns ricos; outros furtados; tantos nobres; muitos gaivotas; vários de meia-tigela. 
        
[Espelhos conforme. Espelhos disformes. Espelhos de si, fora de si: poetas].

A alma é um espelho que não se deixa ver facilmente, inclusive a dos poetas.  Há um desencanto lírico e quase apostólico num estilhaço de poeta. Do outro lado do espelho existe uma tristeza lírica e um lirismo de desencanto, desde o ar marinho que declamando e rindo ao vento até a velhice ocorrida a partir dos 16 neste espelho que hoje se desnuda sem plumas como um cão perdido numa noite só.

Espelho: você vem me vê e vai

Espelho é fora, mas pode [ou]vir de dentro – servirá o espelho como anti-recado à posteridade?

O espelho que trago comigo me assombra todas as noites com seus açoites – com a sua abstinência de amor. E nos estilhaços - cuidado pra não quebrar o nariz na sala dos espelhos - a minhalma enrugada e ressequida; a minhalma curtida enxovalhada; a minhalma encardida e desbotada; remendada a minhalma retorcida... Se esvai...

Tudo é poesia na sala dos espelhos. Nem toda poesia é sã na sala dos espelhos. Nem toda alma é sã, principalmente na sala dos espelhos. Na sala dos espelhos, meu amor, quanto tu me dás de alma?

Se há algo que os espelhos multiplicam mais do que os homens... É o rosto dos mortos. A ausência - infinitamente ausência! Eis que surge a poesia!

Luciano Bonfim


[E5PELHOS é um livro coletivo dos poetas Carlos Nóbrega, Frederico Régis, Jorge Furtado, Lúcio Cleto e O Poeta de Meia-Tigela e pertence ao Projeto Edições em Coautoria - de Silas Falcão, Editora LuAzul]

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

GIRÂNDOLA, JULIO CORTÁZAR E O POETA DE MEIA-TIGELA, OU: UMA BREVE CRÔNICA LITERÁRIA



Léo Prudêncio


Após ler o mais novo livro do Poeta de Meia­Tigela intitulado Girândola (Substânsia, 2015), relembrei uma conversa rápida que tive, pessoalmente, com ele. Na ocasião, me falou de alguns livros que viriam a lume e um deles, desde esse dia, me chamou atenção logo pelo título: Girândola. Indaguei sobre e sua composição, e ele confidenciou-­me (acaba­-se agora a surpresa), de que se tratava de uma obra com indícios cortazarianos (nessa época o autor cearense estava em contato assíduo com a obra do cronopiano­-mor).

Quando o livro me chegou em mãos e, lendo­-o, me deparo com o nome do argentino escrito de maneira subliminar em um contopoético: "desinvenção da fábula, a ou era uma vez... para cortar o azar". A forma como os poemas são apresentados não segue uma linha lógica de sumário, pois eles estão embaralhados ou misturados com todas as oito divisões do livro: se bem que a (des)ordem não altera o fator final dessa leitura; mesmo embaralhado, o volume possui uma unidade poético-textual que nos leva a vasculhar mais e mais a propensa estrutura verbal-­imagética da obra.

O livro é composto de haicais, palíndromos, sonetos, versos livres e desenhos. Ao final lemos uma entrevista em que o Poeta responde fazendo uso de versos, como se estivesse em uma rinha com outro cantador. Para o Poeta de Meia-­Tigela tudo vira poesia: inclusive as 64 contas do rosário. Nesse poema, faz a sua oração em prol da poesia. Músicas dos Beatles, Black Sabbath, Morrisey dentre outros servem como empréstimo para a construção de poemas. (Inclusive há um desenho dos quatro beatles atravessando a famosa rua de Liverpool, e há outro de que gostei bastante: a figura de Bashô).

Agora eu volto a falar de Cortázar. Muitos de seus livros incluem gêneros literários de todas as formas. Em Girândola, com os poemas, desenhos, conto, canções e uma entrevista, logo deveremos nos perguntar: como classificar um livro desse? Eis um livro­almanaque, à moda de Cortázar.

Mas, deixemos o prefaciador desta obra tigelírica, Cid Ottoni Bylaardt, falar: "Assim, o que cabe na tigela deste poeta, posto que meia? Inicialmente a fragmentação, a diversidade e a superposição de textos sugerem uma bagunça poética de gêneros, estilos e recursos. A impressão inicial vai sendo desfeita aos poucos, pela sedimentação de alguns traços que persistem, sem, entretanto, quebrar a expectativa de algo novo que surge aos olhos do leitor. Ao final, bem ao final, o foguetório parece querer organizar o inorganizável. Talvez essa seção seja mais útil aos comentadores, analistas, prefaciadores etc. Do que à própria poesia, que prescinde dela."

Alguns autores já fizeram uso do sumário como guia ou desguia de leitura (vede Tutaméia de João Guimarães Rosa, em que o sumário inicial é desmentido no sumário final, ou vede o sumário­-guia de O jogo de amarelinha do já tão citado nesta crônica Julio Cortázar). Os poetas contemporâneos e escritores de uma forma geral fazem uso de todo o material do livro para compor o poema. Fazem do livro um objeto­-poético.

Desvio o assunto para comentar outros poemas de Girândola, como os que fazem uso da língua brasileira de sinais, a Libras. A desbiografia do autor, situada no final do livro, é um capítulo à parte, pois seu nome é reinventado, Aves de Aquilino, assim como a data e o local de nascimento. O motivo? 

Bom, melhor parar por aqui. Segredar significados e influências é também uma maneira de incentivar a leitura deste Girândola, se bem que não se precisa de muito incentivo para ler tal obra literária, pois ela nos chama desde a feitura da bela capa (de Nataly Pinho). Até o próximo ensaio de orquestra arquitetado pelo maestro e poeta, este, de tigela transbordante.

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[Aviso aos navegantes: O Poeta de Meia-­Tigela nasceu Alves de Aquino, em 1974. Todos os livros publicados por ele são coletados do 1nico livro a que se dedica: Concerto Nº1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema. Esta obra é formada por quatro movimentos, cujo primeiro foi publicado integralmente em 2010. Em 2008 uma coletânea de poemas do segundo movimento foi publicada, e relançada em 2011 com anexos, o Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas. Em 2014 o Poeta organizou uma publicação coletiva chamada Mutirão e em 2015, além do Girândola, publicou a antologia de sonetos que permeia os quatro movimentos do Concerto, saída pela Confraria do Vento, Miravilha: liriai o campo dos olhos]

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Léo Prudêncio é colunista no site LiteraturaBr e autor de Baladas para violão de cinco cordas (Editora Penalux)

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Este ensaio foi publicado originalmente em Letras in.verso e re.verso: 
http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/12/girandola-julio-cortazar-e-o-poeta-de.html