Cinco espelhos e muitas desimagens
Batista
de Lima
“E5pelhos” é uma
antologia com cinco poetas. O primeiro deles, Carlos Nóbrega, desdiz-se. Não é
nada. É apenas feliz. Como árvore embriagada de vento, ele se embriaga de
poesia. Sua paixão lembrada é a moça da lata do Leite Moça. Na vingança dos
espelhos, estampa-se a ausência de Borges. Para não ser como duna que dura
algum vento, ele se poemiza pétreo à beira de um zodíaco, esperando um trem
antes do trilho. Como herança para algum póstero, ele leva, como prenda, três
batatas e uma felicidade. E se até o coqueiro enlouquece com o vento, quem será
ele para não desenraizar-se montado nos panos de sono, todos sujos de sonhos?
Carlos Nóbrega tem um boi incomodado que berra no seu cinto, se contorce no casaco,
mexe-se no prato quente para lhe dizer que também tem alma. Entretanto, foi no
dia em que pintou de palavras sua página branca que sua inocência fugiu
envergonhada. Esse poeta ferrado pelo vento leva nos ossos a inscrição CN, tu
és poeta, e sobre este abismo em que caem as horas, plantarei minhas trombetas
para que anuncie a ressurreição dos versos.
Frederico Régis é um poeta desbiografado. Seu verso é seu exame de sangue.
Quando apresenta o poema “Curatela”, abre as comportas dos açudes que carregamos
e os faz sangrar pelas janelas de nossas almas. Pungente e belo, dorido de um
lirismo avassalador, é o melhor poema da coletânea. Depois, para completar, nos
oferece seus avós nos semblantes de seus tios, numa lanterna sobre a mesa, numa
bengala sobre a praia. Que poeta memorial! Mesmo arrependido pelo que não fez,
imagine se tivesse feito. Depois sai a perguntar: “Onde será que te guardei?”
Frederico Régis é poeta das dimensões da memória, a reconstruir compartimentos.
Seu inventário poético é de quem não foi criança em vão.
Jorge Furtado é poeta itinerante. Transita pelo corpo da cidade como quem
vasculha quartetos de um poema. Sangra pelas bribocas do poema como quem se
esvai pelos escoadouros do Pajeú, do Cocó e do rio Ceará. Seu destino é o
grande estuário desse paiol que é o poema. Avulso como papéis soltos, o vento
que ainda resta é seu guia. No pântano de incógnitas com que se depara vai
plantando mudas poéticas como quem povoa solidões. Nesta selva, o único
transeunte a quem ignora é o tempo. Aos outros oferta versos como quem oferta
lares. Nos seus sonhos bocadioonisíacos, Alcides Pinto lhe oferta musas. Ante o
espelho, saltita o menino que um dia foi.
Lúcio Cleto biografa-se com a palavra e o traço. Sua poesia não se
conforma em ficar apenas enclausurada na palavra. Ela salta do verso e cola nas
paredes semióticas do mundo das coisas. Seus poemas experimentais são ávidos de
dimensões. O símbolo e o ícone bifurcam-se para que o grito lírico seja
crucificado na tela. Surreal é a sua criação. Do sonho à montagem, cada um dos
seus murmúrios vem binário e triádico. Linguístico e semiótico esse poeta busca
uma terceira dimensão do que produz. Nada para ele está definitivo. Tudo flui e
reflui. Há uma correnteza, um fluxo de mensagens que se sobrepõe para dizer
“ecce Cletus”.
Por último aparece o Poeta de Meia-Tigela, ou o Poeta de Tigela-e-Meia, ou
Alves de Aquino, querendo distar-se do que o cerca. Começa sonetando natalýnicamente
em quatro estações. Suas meditações lhe meditam, afinal filosofia e poesia lhe
atravessam, apolíneo e dionisíaco respectivamente. Seu amor pançudo vive da
própria fome. Sua heroína, “Tia Ioiô”, desviveu para dar vida a seu melhor
poema, sua culminância poética. Sua poesia tenta nos salvar a todos doentes de
entulho. Esse poeta, quando transita por esses ínvios caminhos poéticos, sempre
encontra alguns rostos impressos e desertos, algumas lágrimas neblinando sobre
um espinho que lhe perfura entre a unha e a carne.
De tanto se perguntar, Alves de Aquino não sabe de quem são os olhos com
que vê. De tanto se ver, termina por não se conhecer. Não se acha parecido
consigo mesmo, para desventura dos espelhos. Tudo isso quando passa, e o poeta
põe os pés em algum chão, ele metazoa zooludicamente à moda Manoel de Barros,
“passarinho / nota musical / emplumada (…) cachorro / espanador / que late.”
Também quando se refere ao cavalo, ele afirma que o animal “sofre espora / não
despiora / só desmelhora”. Ainda passeando pelo reino animal, impressiona-se ao
ver “o leão leonar / o jacaré jacarelar e o peixe-espada / espadanar-se”. Tudo
isso comprova que esse poeta tigelado desmantela a linguagem e depois lhe dá
uma nova ordem.
O Poeta de Meia-Tigela conclui-se no Departamento de Sonhadoria. Ali,
quando a sombra ameaça anoitecer sua alma é porque a solidão quer lhe passar
cadeado. Terminando seu contingente poético, Alves de Aquino nos oferta um
poema piada da mais bela feitura. E é assim que essa seleta se encerra. O
quinteto que espicha seus poemas ao longo da nossa leitura, nos põe em alerta
diante do fazer poético. Poesia é linguagem, artesanato sofrido. Esses
brinquedos verbais necessitam de experimentações. Coragem e sofreguidão se
aliam nesse parto. Esses cinco poetas quebram seus espelhos para nos mostrar
suas faces estilhaçadas e nos convidar para, na companhia de cada um, tentar
rearrumar esse mundo que desmantelaram.
jbatista@unifor.br
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