quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Em 10/07/2010, mediei o Percurso Urbano do Centro Cultural do BNB, com o tema Passeio com Milton Dias. Estas fotos registram alguns momentos dos locais visitados.


                                    Rua Coronel Ferraz, 230. Residência de Milton Dias.


       Cemitério Parque da Paz, onde o corpo de Milton Dias está enterrado


Momento em que eu lia a biografia de Milton Dias    


                                                                     
                                         SEMPRE MILTON DIAS

SILAS FALCÃO

 
                                            O celular
                                                                                             
Ao regressar do cemitério, o quarto da casa é seu refugio.
Solitária como uma rasga-mortalha, recorda boemia, literatura e infância – eterna trilogia da felicidade.
A noite cresce. Ao silêncio da madrugada, agrupam-se as metamorfoses das nostalgias diluindo o sono.
A amizade entre elas se avizinhava dos vinte e dois mil dias.
Aí, a morte irreversível: megera do último ato.
Sobre a mesa, afrontando a escuridão, uma pequena luz testemunha tudo.
De repente, o negro silêncio se assusta com a música da luz.
Alô.
Uma voz chama seu nome.
As recordações convincentes se esmigalham ao choque do sobressalto.
Mas...
Inquietos de pânico seus olhos se dilatam como dois balões. O coração, fora do compasso.
Mas... mas como? 

Silas Falcão





ID QUO MAIUS COGITARE NEQUIT (*)
Para Lígia, minha filha

Existe em algum recanto
Do mundo das ideias puras
O poema de amor perfeito.

É o poema que canta
Meu benquerer por ti:

Canção mais bela
Do que qualquer canção
Que a imaginação humana
É capaz de criar.

Esse poema existe
— Diz o meu coração —,
Embora impossível
Expô-lo em papéis
Com palavras mundanas

— Por ser uma ode
De infinitos versos
Escritos na língua dos anjos.

Manuel Soares Bulcão Neto

(*) Id quo maius cogitare nequit (latim): “Algo maior que qualquer coisa que possa ser concebida”. Trata-se da premissa maior do argumento ontológico favorável à existência de Deus, de Boécio e Anselmo.



                                               Outra pena 
Libertem o homem!
O alarme dessa ordem me acorda.
O portão de saída é meu limite. Distante desse momento, lembro o dia em que cheguei para cumprir a sentença. Algemas. Pés acorrentados. Nas torres, as metralhadoras me encaravam.
Angústias, sombras, espectros – inéditas mutações do medo.
Todos em fila – gritou um dos guardas que nos escoltaram.
Diante do meu pânico, braços e olhares observadores trespassavam as grades externas dos pavilhões.
Matei.
Na instauração do inquérito, o delegado confirma o que sou: réu primário. Eu tinha apenas vinte e cinco anos.
O júri foi implacável.
Coragem! – Disse alguém do fórum, olhando-me com alma.
Cumpri a sentença. Vinte e cinco anos entre os detentos. Momentos difíceis. Suicídios. Estupros. Drogas. Rebeliões. Acertos de conta. Condenados sangrando até morrer.  
E agora, a liberdade.
E novamente outra pena.
Silas Falcão 


"Pequena Crônica de Natal",

(Dedicada ao filho da Vivi e Miguel, que humildemente nascerá na sublime noite)


Há quem ache triste o Natal. Há quem critique o consumismo desenfreado a que foi transformada a tão nobre data. Há quem deteste os incontáveis símbolos importados. Há até quem espere pacientemente para se suicidar neste memorável dia (outros esperam até a passagem de ano).

Um dia conversando com um amigo que reside em São Paulo — e trabalha como segurança no metrô — ele me surpreende com a afirmação de que “neste período temos que estar atentos por aqui, pois muitos se matam!”. Concluindo, já conformado, que os Natais dele foram irremediavelmente estragados por tais sinistros acontecimentos.

Já eu não: sou um desvairado amante do Natal. Finda novembro e já curto alegremente as luzinhas de jardins, praças e residências (curiosamente nunca tive uma árvore enfeitada).

Entro em regressivo estado de espera.

Culpa de minha terrível infância feliz, de Dona Tizinha, que distribuía bolas e bonecas para as crianças pobres do meu Bairro das Pedrinhas, culpa do pai e da mãe que sempre compravam os brinquedinhos mais simples que fosse e deixavam embaixo das redes de todos os irmãos, assim meio de ladinho pra não serem respingados de urina.

Sou daqueles natalinos mais “bregas”, que põe coroa com fitinha vermelha na porta de entrada, que dependura desajeitadas luzinhas piscantes nas grades das janelas, que compra ainda hoje os discos de Roberto Carlos, enfim: que manda sonoros e-mails cafonas de Feliz Natal para os amigos.

Chega dezembro e deixo de lado o que esteja fazendo e passo a simplesmente esperar o bendito dia. Gosto e curto tanto que só paro de comemorar no Domingo de Páscoa, depois de ter ido impreterivelmente a Tamboril assistir à procissão do Senhor Morto.


Pedro Salgueiro

PORTADOR

está aqui
na percussão da rua
dentro
         do peito
um catavento

como um novelo
que fia tudo
que faço e vejo

cabem em mim
manias antológicas
pequenas tragédias
catástrofes

já estão escritas as estrofes
que ainda revelarei
e tudo que virá
está aqui
no sacolejo do ônibus
no beijo de daqui a pouco

está
estão
         posso sentir


Frederico Régis Pereira
Especialista Técnico
Banco do Nordeste
Ambiente de Responsabilidade Socioambiental
FELIZ SOLSTÍCIO

Natal é festa de confraternização cristã. Embora agnóstico, não sou bitolado: valorizo algumas tradições sociais, de modo que, quando convidado para uma ceia natalina, compareço. Da última vez, porém, na casa de um amigo, tive aborrecimentos. Pois, logo que cheguei, um dos presentes – católico praticante e litigante – abordou-me: “Ei você! O que veio comemorar aqui?”.  Enquanto a empadinha descia arestosa, respostei: “O solstício de inverno do hemisfério norte”. O sujeito fez cara de desentendido. Então, expliquei sucintamente.

No lado de cima do Equador, o solstício de inverno é o dia com a noite mais longa do ano. Dá-se em 21 ou 22 de dezembro (25 na Roma antiga, por convenção). Depois desta data, o período noturno encurta-se paulatinamente até 21 de junho. Ora, o pensamento mágico, que vê propósito em tudo, também interpreta tal fenômeno como resultado de ações intencionais: é a luz “vencendo” a escuridão; o Sol “derrotando” a treva. Por isso que esta data era comemorada pelos pagãos – enfatizei “pagãos” arregalando os olhos – que tinham, em seu panteon, uma divindade associada ao Sol. Como, por exemplo, Mitra: o deus persa da luz.

Aliás – continuei –, o mitraísmo, religião mais antiga que o cristianismo, difundiu-se amplamente no exército do império romano tardio. E diga-se, a bem da verdade, que, nessa época, 25 de dezembro era quando se festejava o nascimento do “menino Mitra”. — Ao ouvir isso, um senhor idoso, pai do anfitrião, deu uma risada. Empolgado com a aprovação sátira, e turbinado com a primeira dose de uísque, falei de outra semelhança entre Mitra e Cristo: ambos, antes de ascenderem ao Céu com corpo e alma, cearam pão e vinho com seus seguidores próximos.

“Quer dizer” – perguntou-me o velho, tentando incendiar o circo – “que o catolicismo é um sincretismo?”. Concordei, lembrando que outras seitas populares na Roma dos césares também contribuíram para sua formação. Caso do culto a Ísis (essa divindade egípcia, esposa de Osíris e mãe de Hórus, assim como a Virgem Maria era chamada de “Mãe de Deus”).

Sobre o natal do cristianismo – prossegui –, somente no século IV o Estado romano o pôs no lugar do festival mitraico, ocasião em que houve, por parte de muitos cristãos – que só celebravam o martírio, ressurreição e assunção de Jesus –, resistência a essa intromissão pagã. (Quando os padres de Roma, sob pressão do Imperador, consagraram o dia do solstício como data de nascimento do Filho do Homem, o clero armênio esconjurou-os como idólatras. Demais, até hoje existem seitas cristãs – Testemunhas de Jeová e Adventistas – que não consideram esta data.)

Observando as maneiras ébrias do ex-litigante – e a cara de bacante de uma mulher –, lembrei-me de que, na antiga Grécia, as orgias dedicadas a Dionísio (a comunhão extática com esta divindade era estabelecida por meio da intoxicação etílica) também se realizavam por volta do solstício de inverno. Ia lhe perguntar se era a Baco que ele estava louvando, porém me detive: dei-me conta de ter já exagerado na vingança. Em vez disso, para contemporizar, ergui meu copo e discursei: “Mas o que importa é o sentido do mito: a esperança de mais luz, de um meio-dia sem sombras e” – arrastando a fogueira para a minha batata – “da vitória final do iluminismo.” Todos sorriram, e para não estragar ainda mais a noite, concordaram.

Fomos, enfim, chamados para a mesa: peru, pernil de porco, saladas finas, panettone, figos, ambrosia e outros acepipes. Quando estava me servindo, o velho, após outra risadinha, altissonou a voz: “De acordo com o calendário juliano outrora usado em Woolsthorpe, na Inglaterra, a data de aniversário de Isaac Newton é 25 de dezembro.” – E arrematou: “Então, feliz Newtal a todos!”. Brindamos, e com olhar de pueril leveza, confidenciou-me: “Sou ateu!”.


 Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta

 Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste, em 19/12/2010.


sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

                                



Sob a espada de Dâmocles

Manuel Soares Bulcão Neto
A tragédia da vida não é morrer,
Mas deixar de amar.
 
 Somerset Maugham
Adoeceste fatalmente.
Agora, a sombra da morte come
E bebe contigo.

Mas não te assombres
Com essa sombra
— Seu silêncio eloquente
Mostra bons conselhos.

Como o que diz:
Não leves a vida muito a sério,
Antes ri dela;

Por pilhéria ou encantamento,
Tanto faz: o que importa
É tão-somente rir.

Pois apenas o amor
É mais gratificante que o riso,

E quando só ante a morte
Nada mais lenitivo que rir
Do orgasmo solitário
E da carta sem resposta.

Outro conselho sombrio:

Se o teu projeto de vida
Jaz no futuro do pretérito,
Não lamentes,

Nem faças do sótão do tempo
A água-furtada
Para o teu recolhimento.

Melhor abrir o olhar
Para o presente contínuo

E abismar
Pelos infinitos que existem
Em tudo que é singular.

Lembra-te que “um”
É apenas outra maneira
De dizer zero vírgula nove,
Nove, nove ab aeterno.




quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

No meu tempo...

PEDRO SALGUEIRO é cearense de Tamboril, nos Inhamuns, mas nasceu numa época em que o interior era tranquilo, acolhedor e próspero. E naquele tempo, sim, adorava passar férias por lá. Hoje tá mais violento do que na capital.

Alguém disse que começamos a envelhecer quando paramos de criticar a geração mais velha e passamos a falar mal da mais nova. (Algum engraçadinho poderia dizer que começamos a ficar velhos mesmo é quando passamos a esquecer os autores das citações que usamos o tempo todo...)

Meu pai dizia que educação era no tempo dele, mesmo que poucos pudessem frequentar uma escola. E ele mesmo, tendo conseguido fazer apenas até a 5.ª Série primária, alardeava entre os amigos que educação mesmo era naquele tempo.

Como fanático por Orlando Silva vivia a criticar os cantores mais novos. A Jovem-Guarda, então, era apenas um bando de cabeludos que não tinha voz alguma.

— Orlando, sim, esse cantava! Hoje o sujeito deixa crescer o cabelo e passa dez minutos gritando “Debaixo dos caracóis, dos teus cabelos” (cantarolava com voz anasalada, imitando Roberto Carlos) e diz que é cantor!

Apurando bem o ouvido, nos bancos da Praça do Ferreira ou ao pé do alambrado do PV, sempre escutamos alguém dizer: “Futebol, sim, era naquele tempo! Mozart, Gildo, Croinha... Hoje qualquer um é craque”.

Um pessimista de plantão diria que esse “meu tempo” geralmente se refere a uma juventude perdida, bom tempo de esperanças e sonhos, para compensar um presente sombrio de decadência física e/ou mental.

Outro, mais otimista, rebateria que nosso tempo é o de hoje, o que (bem ou mal) estamos vivendo ainda.

Mas pensando bem, e sendo justo, não se escreve mais crônicas de jornais como antigamente.

— No meu tempo era outra coisa! Caio Cid... Milton Dias!

Crônica publicada em 8/12, no jornal o Povo
BAZAR DAS LETRAS RECEBE SILAS FALCÃO EM 14/DEZ/10.

SILAS FALCÃO é cearense de Crateús. Escritor, diretor de eventos da ACE (Associação Cearense dos Escritores). Participou das coletâneas do Abraço Literário; Papo Literário; XII Prêmio Ideal Clube de Literatura prêmio Geraldo Melo Mourão, de poesia. Recebeu o Diploma Mérito Cultural da Almece Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará. Publicou o livro de crônicas Por quem somos?
Idealizou e desenvolveu diversos projetos culturais e humanísticos:
Crescer-Desenvolvimento humano;
Você Moda Cultural – camisaria;
Marketing holográfico;
Endomarketing literário, entre outros.

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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

 

                       
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POR QUÊ?

Manuel Soares Bulcão Neto
 
Afinal, por que existo?
Devir gratuito é viver?
Se cedo ou tarde se morre,
Então para que nascer?
 
Se o ponto de partida
É o ponto de chegada,
Me diga para que serve
Uma circular estrada?
 
Para que esta cacofonia,
Ruídos sem sentido?
Não seria o cabal silêncio
Tão ou mais significativo?
 
E todas essas estrelas,
Brilham por que razão,
Se tudo será, um dia,
Radiação tênue e fria
Num jazigo de escuridão?
 
Se a natureza inteira
Caminha para o nadir,
Por que ela então se deu
Ao trabalho de existir?
 
Por que assim é o mundo,
Redundante e complicado?
Em vez de  zero redondo,
Xis menos xis ao quadrado?
 
A vida não tem sentido.
Mas para que razão-de-ser
Se beleza, amor e vinho
São motivos pra não morrer?
 
 
 

Planeta África
Crônica publicada no Diário do Nordeste em 5/12/2010
MANUEL SOARES BULCÃO NETO
Ensaísta
Na festa de aniversário do escritor Pedro Salgueiro, estávamos eu e outros convidados a especular sobre a violência urbana e a pandemia do vício em crack, evidentes sintomas de anomia social, quando, de repente, surge-me uma ideia - um daqueles insights que tenho com frequência: aparentemente originais e ululantemente errados. "A principal causa do mal é a superpopulação das metrópoles, sendo as favelas os pontos de maior concentração", sentenciei; e para fundamentar minha tese (na verdade, de Rousseau), falei de uma experiência científica com camundongos. A seguinte: psicólogos behavioristas abarrotaram um viveiro com ratinhos de ambos os sexos e idades diversas. Mesmo não havendo escassez de víveres, constataram rupturas drásticas nos padrões comportamentais das cobaias: aumento significativo de relações sexuais sem fim reprodutivo (homossexualismo e necrofilia); formação de "bandos" entre os machos; agressividade mortal contra os fracos e isolados; canibalização pelas mães das suas crias recém-nascidas; secreção extra de endorfinas - estupefacientes endógenos - pela hipófise…
Os comentários à minha sacação, todos discordantes, foram imediatos: nossos índios caçam e coletam em amplos espaços, porém, na maior parte do tempo, vivem apinhados em ocas; as casas grandes patriarcais, habitavam-nas várias gerações da família e seu séquito. Mesmo assim havia paz e obediência às regras e valores.
Admiti meu equívoco. "Raios!" - Praguejei em pensamento. - "Por que sempre digo bobagem com ar professoral?". Concordamos, então, que a alta densidade populacional só se torna problemática quando quebra a estrutura social, o que nem sempre ocorre. Os comportamentos alterados dos ratos foram reações instintivas voltadas para um desses objetivos: a) Eliminar o excesso e recuperar a estrutura; b) Criar nova estrutura; c) Adaptar-se à situação de caos.
Voltando para casa, pensava no assunto e no que mais poderia ser socialmente desestruturalizador. Logo me veio à mente o método de conquista da África pelos colonizadores europeus, resumido na carta de um traficante de escravos aos fazendeiros da Virgínia, em 1712: colocar o negro velho contra o jovem negro, o negro de pele clara contra o de pele escura, o homem contra a mulher e vice-versa, até que todos só tenham a "nós" (i.e., os brancos) em quem confiar. Foi assim, dividindo (desestruturando) por meio da discórdia, que um bando restrito de assassinos, liderado pelo Rei Leopoldo II da Bélgica, pôs o Congo de joelhos e, durante trinta e um anos (1877-1908), explorou sua borracha e marfim. - A Enciclopédia Britânica estima que, neste período, a população congolesa declinou de vinte ou trinta milhões para apenas oito milhões.
Se a África, principalmente a subsaariana, mesmo depois da descolonização permanece violenta e paupérrima, não se deve essa tragédia apenas a causas internas (a opinião racista do biólogo James Watson não vale um comentário), mas, precipuamente, a este fato: os colonizadores, na pilhagem daquele continente, destruíram suas fundações sociais arcaicas e nada colocaram no lugar, a não ser instituições de fachada (frágeis gambiarras), desconfiança generalizada e ódio intertribal exacerbado.
Ah, e o que dizer da nossa anomia social e suas terríveis consequências? Ainda no caminho para casa, deparei-me com a epifania de uma possível resposta (espero que não seja mais um daqueles "insights"): ao estacionar o carro numa loja de conveniência, observei, ao lado, num outdoor, a imagem de uma belíssima e jovem mulher apenas de lingerie e um colar de pérolas. Próximo ao painel luminoso, escorado em seu carro de mão, um catador de lixo, feio e de meia-idade, mirava aquele luxo - com olhar encantado, desejoso, catatônico…

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

PORTADOR
 

Frederico  Régis

está aqui
na percussão da rua
dentro
         do peito
um catavento

como um novelo
que fia tudo
que faço e vejo

cabem em mim
manias antológicas
pequenas tragédias
catástrofes

já estão escritas as estrofes
que ainda revelarei
e tudo que virá
está aqui
no sacolejo do ônibus
no beijo de daqui a pouco

está
estão
         posso sentir

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010





Calcinhas

Raymundo Netto especial para O POVO

Por hábito, em tempo demais diante deste monitor, passeio pelos cantos da casa.
Num desses, alonguei-me à cozinha, esbarrando com o cesto de roupas estranhamente deslocado. Conhecendo o método da esposada, senti-lhe o esquecimento, e daí, vítima que sou da convivência cordial (poderia simplesmente fingir não ter visto que todos acreditariam, assim como fazem meus iguais) decidi eu mesmo pôr ao sol, no varal de chão da varanda, tais roupas.

Foi quando me dei conta de que tudo aquilo eram calcinhas (de minha esposa e das duas filhas). Pus-me a estender, uma a uma, a calcinhada. Na hora (quem escreve está sempre pensando bobagens), lembrei uma amiga que defende: os homens acreditam que cuecas nascem, no fundo escuro de suas gavetas, por geração espontânea! Obrigo-me a concordar. Conheço várias mulheres que estranham o infindável tempo de vida de nossas cuecas. Com meu pai também era assim. Geralmente, são elas, as esposas, que se ocupam de renovar-nos o acervo. Ao contrário, nós, homens, somos tomados pelo espanto do nada suficiente das mulheres: nem calcinhas, nem sapatos, e imagine o que mais... Elas são muitas dentro de uma só, justificada a complexidade de suas irresistíveis almas femininas. Comecei a pensar se existiria uma média racional entre o número de calcinhas para cada sutiã ou pescoço. Lembrei também de uma curiosidade: no Japão, para combater o calor, vendem-se, em máquinas encontradas no meio da rua — e em embalagens como as de sorvete —, “calcinhas geladas”, que, segundo os fabricantes, são recomendadas também para serem usadas nas cabeças. Imaginava a ridícula cena, quando percebi que das demais varandas e janelas dos outros apartamentos, algumas vizinhas ou suas empregadas observavam-me ao serviço. Surpreendidas se riam, desapareciam das janelas, escondiam-se por trás das cortinas. Já embaraçava-me, quando veio-me a ideia de colocar os pregadores de roupa (em Londres já existem pregadores com previsão de tempo, sabia?), mas eram tantas as calcinhas...“Haja pregador!” Ah, assim já era servilismo demais... Voltei ao trabalho e as esqueci.

À tarde, porém, num dos passeios pela varanda, constatei: as calcinhas, insufladas pela iniciativa de uma fresca, tomaram vida e voaram rumo ao ignoto. Tragédia anunciada! Pensei na bronca da esposa: “Quem mandou mexer no que não era chamado?” Bem que eu poderia culpar o macaco Chico, o do Lalau, aquele que, tarado por calcinhas, invadia as residências do Bonsucesso carioca a roubá-las e as rasgava em cima dos telhados. “Não, ela não acredita em literatura”... Tive que, então, rapidamente, catá-las no térreo, nas garagens, no jardim. Vendo uma a tremular à grade da janela de baixo, pensei em passar na vizinhança, bater-lhe à porta a recuperá-las. Indecoroso seria o zelador, com fingida normalidade, perguntar-me, calcinhas à mão, “É do senhor, seu Netto?”, e eu ter que, com constrangimento, responder-lhe que sim.

À medida que as encontrava, recolocava-as no varal, desta vez com os pregadores, antes de minha esposa chegar e ver o mal feito. Então, jurei a mim mesmo: nunca mais nesta vida haveria de tocar numa calcinha, a não ser na presença da usuária, e se, e somente se, ela me estorvasse em qualquer coisa.