segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

                                      Ciência e ignorância


Certa noite, no Café da Bebel, estávamos eu e Augusto Pontes a degustar licores quando uma moça sentou-se à nossa mesa. Era psicanalista da escola lacaniana, e como, apesar de leigo, interessava-me por Freud, a conversa deslanchou. Ao ouvir meus comentários sobre conceitos tidos como avançados – nó borromeu, sinthome… –, quis saber qual minha formação acadêmica. “Apenas bacharel em Direito”, respondi. Ela, então, caiu na risada e disse: “Esses advogados são muito metidos.” Senti-me um sofista achincalhado por Sócrates. Augusto, porém, que nos deixou tiradas geniais, assim interveio a meu favor: “Amiga, todas as ciências são metidas umas com as outras.”

Realmente, com a descoberta de que a maioria dos sistemas físicos, químicos, biológicos e sociais compartilha uma característica fundamental, a não-linearidade (i.e., seus comportamentos, longe de serem “newtonianos” – simples, sem surpresas – tendem, em médio ou longo prazo, a se tornarem complexos ao ponto da imprevisibilidade), por este fato a ciência busca, hoje, sob os auspícios da matemática do caos, uma teoria interdisciplinar que a tire deste xeque. Pioneiros deste empreendimento são o físico Ilya Prigogine e, nas ciências humanas, Edgar Morin.

Tal “teoria da complexidade”, interface que acentua a interdependência dos saberes e corrobora a ideia do mundo como totalidade estruturada, constitui, em determinado aspecto, ponto de inflexão na história do conhecimento científico. Pois a ciência moderna, dado seu caráter analítico, para se firmar teve que, primeiro, haver-se com certa visão sintética, de cunho místico, segundo a qual não se pode conhecer as partes sem antes conhecer o todo. Do confronto com esse “holismo” surgiu o “atomismo” positivista: a noção de que o universo da experiência nada mais é que uma “soma” de fatos. Demais, à medida que se desenvolvia, a “Ciência” foi se dividindo em “ciências”, em estudos especializados cada vez mais autônomos — bifurcação contínua que catalisou o desenvolvimento. E vice-versa. O resultado desse processo, vislumbrei-o naquela noite, caricaturalmente estampado na gargalhada da lacaniana (uma expressão do que Ortega y Gasset denominou “barbarismo da especialização”).
Em miúdos: o volume atual do conhecimento científico é tamanho que se tornou virtualmente impossível a qualquer indivíduo, em seu curto tempo de vida, absorver sequer parte significativa dele. E quanto maior o conjunto, menor – em termos relativos – a quantidade assimilável pela mente particular. Sim, estamos diante de um quase-paradoxo: o aumento progressivo da ignorância dos “homens” em relação ao crescente saber da “Humanidade”.


Quanto à ultrafragmentação da ciência, esta gerou um tipo humano que é o antípoda do intelectual enciclopédico da Renascença. Cai-lhe bem o nome com o qual o filósofo Lucien Goldmann batizou-o: “analfabeto diplomado”. À guisa de ilustração, cito o caso – hipotético – do odontólogo com pós-doutorado em dente siso esquerdo da arcada superior, mas que, como Sargão I da Acádia, pensa que o Universo é uma tenda — referido rei autoproclamou-se “senhor dos quatro cantos da Terra” (Ai! Espero que meu dentista não leia esta crônica).

Digo, ainda, sobre muitos desses doutores, que, aferrados à sua subespecialização científica, não só perderam de vista a unidade do conhecimento: perderam-lhe também o senso. Orgulhosos macacos-no-seu-galho, “denominam diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber” (O. Y Gasset), e rechaçam com violência qualquer “palpiteiro”, seja ele quem for que tente se imiscuir em sua área de estudo.

Segundo o jurista Pontes de Miranda, “quem só Direito sabe nem Direito sabe.” Esta asserção é válida, mutatis mutandis, para todos os especialistas.


Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.

Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 27/02/2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

                                                       


                                              Fronteira


O vasto horizonte mirado com angústia: primeiro as sobrancelhas cerradas, a mão em pala; depois os óculos claros, vislumbrando ínfimos detalhes; mais além o binóculo rápido; e por fim a luneta de tripé apoiada no peitoril da janela. (A porta da frente travada, os galhos ressequidos sobre o muro.)

Em cima da mesa, o antigo manual de técnicas de fuga, de caminhos alternativos, de atalhos perfeitos. Aos seus pés a gasta bússola, mapas encardidos e rabiscados nos trópicos. A xícara de café esquecida; a bagana de cigarro inútil nas cinzas. (Quanto mais longe... — o país distante, um mundo imaginário, paisagens de televisão.)

Os olhos peritos não enxergam mais os pés sujos, as unhas compridas, o filete de baba maculando o colarinho, as baratas no canto escuro do quarto. No quintal o verde úmido dos musgos, o tronco seco da goiabeira, os cacos de telhas trocadas no último inverno.

Rangendo leve, a cadeira de balanço da companheira triste, também esquecida dos filhos distantes, a esperar eternamente pelo retorno das andorinhas, o cantar dos galos nos quintais vizinhos, rezando uma prece em silêncio, no mais absoluto silêncio...

Por último, cavou trincheiras no jardim e montou observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal. Canto algum ficou descoberto de um possível ataque. Testou todos os alarmes, checou lunetas e binóculos, lustrou a velha espingarda. E nem se deu conta de que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara há muito em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a confiança de sua companhia. (Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas no fogão.)


Pedro Salgueiro
                                                            

 Coisas Engraçadas de Não se Rir II: Monólogo Poético

Raymundo Netto especial para O POVO

Dava-se dia ensolarado e, à calçada, encontrei aquele escritor que acabara de lançar o livro príncipe. Poesia, para variar e aderir à coorte. O “poeta”, reconhecendo-me em suposta conta de intelectual — tal como o próprio, certamente — discorreu sobre o sucesso do lançamento de tão aguardada obra. Sorrisando largo o olhar faiscante, segredou, com devido anúncio de reserva, que o TT da madrugada anunciara — coisa que fez também, e ele não sabia, com todos os 500 usuários de seu espaço cultural —, o recorde, o maior sucesso da história de lançamentos nesta província.
Discreto como um elefante dançando a “macarena”, citou a cifra de 100, ou quase isso, livros vendidos — lidos, não garantiria nem o da mãe — e isso porque presentes apenas os seus familiares — membro de família do interior, ocupou o auditório inteiro — pois os dois escritores, os únicos que conhecia no Ceará, e, portanto, os melhores, prometeram de ir, mas no calor do derradeiro instante, assuntos de relevância os impediram, infelizmente, gratos por tão elevado galardão e certos da falta de uma justificativa original.
Daí, não deu outra: haja falar compulso de tal “úbere opúsculo”, ler seus trechos, compará-los à obra drummondiana, quitaniana e poetiana em geraliana, explicar-me a escolha dos títulos, denunciar-me a dedo os neologismos e metáforas, enfim, decifrar o indecifrável como se a descobrir ali, em momento invulgar, após a abertura da última pirâmide do Egito, o verso.
Já delongada a conferência de auto-encômios, porém, embaciou o olhar, agora terno e doce. Prenunciava esgotar o martírio do monólogo posto em pé e debaixo de sufocante sol quando desceu-me a voz, então, serena:
— Desculpe-me, senhor, mas é que sou um apaixonado pela poesia. Quando começo, até me emociono... Não estou deixando-lhe falar, não é? Pois bem, agora é a sua vez... Fale um pouco do que achou do MEU livro.
Dito isso, assomou-se todo em orelhas e ouvidos, de envergonhar-me por inteiro, certo de que nada que eu dissesse seria o suficiente ou tão preciso para exprimir a grandeza que ele achava — e sabia — que tinha. Uma palavra mal colocada ou esquecida evocar-lhe-ia, da alma lírica e embevecida, os gran terríveis demônios, aqueles mesmos que regozijam-se ante os destinos trágicos e merecidos dos poetas, mesmo os falsos e parcos, e que só enaltecem da aventura humana um único e transcendente sentimento: a inveja!
Fragilizado, cansado e confuso, com a moleira a ferver e a garganta seca, antes de tremer o lábio, nem sei como, mas senti meus olhos arderem e, creiam, lagrimejarem.
O rapaz, surpreso, fitou-me os olhos saltados, esticou os lábios, quase maternos, tal qual rede em varanda, e, insílabo, abraçou-me demorosamente enquanto apertava-me a lembrança, naquele momento, de perder a hora marcada com a minha oculista.
Raymundo Netto que não é o macaco Simão, mas é parente, por culpa exclusiva do Darwin.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Bazar das Letras com Carlos Vazconcelos

Carlos Roberto Vazconcelos é escritor cearense de Tianguá.
O livro Mundo dos Vivos é vencedor dos prêmios: Osmundo Pontes de Literatura(2007) e Clóvis Rolim de Contos(2006)da Academia Cearense de Letras.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011


                                              CARNAVAL
“E eu vou sair fantasiado de alegria por aí... mas na quarta-feira a gente vê que é mentira meu sorriso sem você.”
                                                                 (Ednardo)


Nunca fui um folião de verdade, daqueles que se paramentam de fantasia, confetes e serpentinas e sai por aí (sozinho ou em turma) curtindo os quatro dias de contagiante alegria.
Sou um brincante frustrado, desses que adora o carnaval, curte o clima de festa dos outros, mas que se sente um peixe fora d’água no meio de um bloco (O máximo que consigo é acompanhá-lo assim meio de lado, como querendo me esquivar. Então me rendo à minha falta de jeito, procuro um cantinho calmo de calçada e fico olhando de longe. O último dos pipocas!).
Culpa talvez da benéfica rigidez de meu pai, para quem festas, namoro cedo e vícios eram coisas mais que proibidas para os onze filhos.
Cresci, pois, um sujeito duro de corpo, que não aprendeu dançar, nadar e só fui beber aos 35 anos.
Mas não foi por falta de tentativas nem de oportunidades. Quando criança, lá pelos anos 70, dava umas escapulidas com os primos para ver de longe os descontraído jovens da minha pequena cidade, era moda se jogar muita maisena e limpar narizes com misteriosos lençinhos. No outro dia bem cedo saíamos pelas ruas, admirados com as paredes brancas, catando serpentinas, confetes e latas para brincar no restante do dia.
Nos anos 80, morando em Recife, não perdia um bloco de bairro, um Pátio de São Pedro, um cordão de Olinda. Sempre de viés, meio envergonhado, ia (em vão) tentando me tornar um descontraído folião.
Já em Fortaleza nos anos 90, terra de quase nenhuma folia, me aquietei de vez. Admiti minha total falta de jeito para a coisa.
Mas adoro quando chega o período dos pré-carnavais (que, ao contrário de um carnaval sem nenhuma história, vai se tornando uma tradição) e vejo alegria e descontração no rosto das pessoas. Escolho alguns blocos e fico urubuservando de longe, latinha de cerveja na mão, ligeiro meneio de cabeça, mesmo com os calcanhares bem presos no chão.
E como para coroar minha falta de jeito com a folia, recentemente o bloco “Luxo da Aldeia” (que só toca compositores cearenses) se instalou na rua em que eu moro, umas três casas da minha, com palco virado para a Rua João Gentil e devidamente de costas para a nossa calçada.
 
PEDRO SALGUEIRO para o jornal O povo
                                



                                               ALÉM

Meu novo poema não fala em estrela
Não menciona um pássaro
Nem imagina sequer que um dia
Alguém usou meu nome
Meu corpo e disso tudo
Criou uma sombra a vagar na cidade

Meu novo poema foi escrito
Minutos antes que os prédios soterrassem
As matas e os rios intactos
Mencionou o cheiro de terra molhada
Acariciou o vento e demarcou com a boca
A passagem de um rio límpido

Meu novo poema será rasgado dentro de mim
Em uma noite e mil manhãs
Será levado pelas águas servidas
E decomposto por antibióticos
Sairá na urina dos shoppings
Mas estará escrito, peço a Deus
Nalguma parte do teu coração


Frederico Régis Pereira

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

                                            Liberalismo?

O Liberalismo, doutrina iluminista, prima pela defesa das liberdades individuais. Em seu mythus (lockeano) do contrato social jazem explícitas as ideias do indivíduo não como meio, mas como fim em si mesmo; da sociedade a serviço dos homens considerados um a um – e não como serva da Humanidade abstrata, do engrandecimento da pátria… –; da liberdade do outro como limite à minha liberdade.
É senso comum a opinião de que existe laço inextrincável entre liberalismo e capitalismo, quase como se fossem irmãos xifópagos. Falsa, esta pré-noção, e digo por quê.
O termo “capitalismo”, como indicam o lexema, o sufixo e, também, seu uso acadêmico, designa uma formação econômico-social subordinada ao critério da máxima lucratividade ou, nas palavras de Geoffrey Kay, “da busca irracional da quantidade pura” (lembro que a definição de capital é “dinheiro que gera dinheiro indefinidamente”). Ora, em tal sistema literalmente “de coisas” o homem não é fim, porém “instrumento” da acumulação pela acumulação: como trabalhador que aluga a si próprio, uma mercadoria entre mercadorias; como consumidor, suas demandas só contam quando, monetariamente solvíveis, “servem” para realizar lucros. Liberdade? Até os donos do capital não passam de joguetes das forças pseudonaturais do mercado — de fato, como apontou Max Weber, o capitalista é impelido a acumular menos por ganância e vontade de poder do que pela reles necessidade de sobrevivência: “Quem não adaptar sua maneira de vida às condições de sucesso capitalista” – escreveu o sociólogo em A ética protestante… – “é sobrepujado.”
Sim, o capitalismo, por definição, é iliberal. Há, entretanto – dou meu braço a torcer –, apologistas do livre-cambismo que, por boa-fé, também são liberais genuínos. A título de exemplo, cito Milton Friedman: Papa da Escola de Chicago, defendia a regulamentação da profissão de prostituta e a legalização das drogas (lembro que o liberalismo propugna que o Estado não deve imiscuir-se na escolha das pessoas, a não ser que por si atente contra a integridade e liberdade alheias).
Quanto à proibição dos narcóticos, o que a mantém? Decerto que seitas cristãs, que não querem competir com outros ópios, contribuem para isso. Há, porém, motivo mais forte: sendo o Estado mínimo o sindicato do Homo œconomicus, é função sua zelar pela peça fundamental da máquina de gerar dinheiro, promover a reprodução ampliada da mercadoria mais preciosa, a única que produz outras mercadorias: o homem-coisa. Ora, as substâncias psicoativas podem tornar a força de trabalho pouco produtiva “do pont o de vista do capital.” (A propósito, enquanto o hidrocloreto de cocaína – pó – era artigo de luxo, não havia restrição ao seu uso. A proscrição só se deu quando, barateado, tornou-se acessível aos baixos estratos da população.) 
Nos EUA, em meados da década de 1960, o movimento da contracultura, com seu estilo de vida “sexo, droga e rock’n roll”, protestava pelos direitos civis e contra a intervenção armada no Vietnã. Foi nesse contexto que Nixon declarou guerra às drogas com perspectiva, inclusive, de estendê-la às fontes de suprimento, isto é, América Latina e Ásia. Óbvio que o alvo real dessa política era a turma, contestadora, do “paz e amor” e do “é proibido proibir”. Os motivos geopolíticos também me parecem cl aros.
Demais, lucrativa é a guerra contra as drogas. Pois, iliberais com os narcóticos, os EUA são libertinos com o comércio de armas — hoje, o palco mais sangrento dessa guerra é a fronteira daquele país com o México, ao longo da qual existem 7.000 lojas autorizadas a vender rifles & Cia.
 A questão das drogas é complexa. Bons argumentos partem de proibicionistas e legalistas. O que não calha é o discurso do “missionário do bem”: pôr no saco dos imorais o traficante-profissional e o traficante-usuário, o usuário bandido e o doente, Charles Manson e Janis Joplin.

Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.

Crônica publicada (com alguns cortes do autor) no jornal Diário do Nordeste, em 13/02/2011.

sábado, 12 de fevereiro de 2011


    Decór
                      Ação

Raymundo Netto

Vem de lasso o coração.
Na noite quente estrelar em fogo
Espelha-se num vogo mar de vagas a devagar.

Vem de vasso coração,
Nos vermes que roem as notas tristes da canção
Na trilha arena de areias entre as cenas a espraiar.
Vejo-te à noite, laxo, a desprender no céu um facho enluarado
O peito aperta e apertado espreme a lembrança da lança no peito a lancinar.
Um teu sorriso doutro me chega como em chamas que me chamam, e enchamado,
Posto em mim, trago a sem telha amarga do não abrigo
E comigo a lembrança esporeada — tarda música maculada,
E o fardo impenso da espera.
Derramam-se por trago chão, as migalhas do que sou em pão.
Em ti, do que sou, em pão e viscera.

Vem de lasso o coração.
O que move-se e morre-se a todos os teus dias;
O que vai de mim contigo quando te sais;
O mesmo que não me deixa quando então se foi;
O que é por nunca ter sido só e apenas;
O que me’dula mais do que a ti.
O teu, pois que a mim não-afora pertence
Qual pensa mente perdida no vão
Dos teus castanhos entretidos na distância vazia de
uma minha saudade
De esta tua boca, que quando silencia, finalmente, se entrega
E fala mais do que as tuas seguras palarvas.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

                        Coisas Engraçadas de Não se Rir I

Raymundo Netto para o Jornal O Povo




No desenho, de Baptistão, da esquerda para a direita, Sérgio Buarque de Holanda, José Olympio, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade.

  
Por si somente, o encontro de e entre escritores já se refestelaria em páginas e páginas de livro de crônicas — e este, uma espécie de "caixa-preta", não se teria para quem oferecer diante de tantos ex-amigos. Ô povo engraçado... Não que tal graça seja emoldurada por piadas ou “tiradas” criativas — fatalmente irônicas e com endereço certeiro — ou coisas assim, mas na sua forma de ser, de pensar (ou não), de agir (ou não), nas manias, confusões mentais, neuroses, paranóias e elocubrações outras que, devidamente observadas e registradas em apontamentos — ou desapontamentos, no caso —, comporiam um compêndio de invejar a alienistas.
Há, sem dúvida, uma velada competição. Alguns são lidos, outros não; alguns já ganharam qualquer dinheiro com literatura, outros nunca; alguns são publicados em livros e/ou em jornais, poucos até com coluna fixa, ou são convidados pelos canais de TV para falar dois minutos sobre qualquer coisa — até sobre o que eles não sabem — enquanto outros apelam, quando muito, para blogues, mas com a certeza cabal de que a cifra de seus leitores — confirmada por “contadores” desembestados — é maior do que a audiência do Jornal Nacional — que, convenhamos, um dia (distante da era Boni/Bonner/Boninho/ Bond, o James) prestou.
Para alguns dos colegas, entretanto, vale a máxima: “Não basta ser bem sucedido; os outros também precisam fracassar”.
Então, quando aquele autor com pouco mais de visibilidade começa a ser convidado para escrever orelhas e prefácios de “neófitos”, sua vida — acompanhada de perto pela gentil curiosidade dos colegas — encosta-se às coxias de um inferno. Enquanto, não resta dúvida, cabe-lhe a honraria da distinção, por outro, os riscos lhe são ameaçadores. Sem ter coragem de "baixar a lenha" na obra do “amigo”, escreve pelas beiradas, se detendo mais na pessoa do autor, citando alguma vaga característica aqui e acolá de um texto ou de outro (o discurso, subgênero em que se insere, a pessoa do narrador...) — também se aproveitando dos títulos maiores, ou de algum prêmio ou título anterior, que é para ocupar logo a orelha — e se, mesmo após tanta acrobacia, não conseguir preencher meia folha de papel sem ofender o convidante, alega ter escrito pouco “para não enfadar” ou porque “não é elegante”, e conclui: “deixemos que a obra fale por si própria...” Também utiliza, o destemido apresentador, do recurso de atribuir o sucesso da obra ao tempo, tempo este que, geralmente, ele não ocupou para escrever aquilo.
Mais perigoso ainda é quando o autor se dá ao trabalho e faz questão de encontrar com seu "prefaciador" a contar em detalhes, sem isentar-se do menor deles, de todo o mirabolante processo criativo — a maioria sempre fala de "um sonho" —  de cada uma das peças de seu livro, certo de que tudo aquilo será engenhosamente utilizado.
Por isso, alguns apresentadores/resenhistas tascam logo: “trata-se de uma obra pós-moderna”. Como ninguém sabe exatamente o que significa ser “pós” ou “neo”, acaba por se convencer da originalidade de tal obra. Ou então, o fiel leitor, após conferir, ao final da orelha, a firma de autor reconhecido no gênero — às vezes, nacionalmente —, se impressiona, até por desconhecer que é de acontecer no meio — não raro —, daquele “medalhão” aceitar tal tarefa, desde que o autor convidante escreva a própria orelha (meio Van Gogh isso), e ele, generosamente — pasmem! — a assina, sabendo-se lá se, ao menos, a leu, pois que a tal livro, certamente, esse sim, não teve tempo meeeesmo...

                                      Vilões e mocinhos

 Manuel Soares Bulcão

 Paulo Honório, personagem de Graciliano Ramos, pertence ao tipo que, nos Estados Unidos, chama-se self-made man, isto é, alguém que se fez por si próprio — no caso dele, destruindo almas pelo caminho. Não é, entretanto, pessoa inteiramente má: nas páginas finais do romance São Bernardo, esse homem agreste (elemento entre outros da caatinga) pune-se numa comovente autorreflexão. E diz: “Não consigo modificar-me, isso é o que mais me aflige.”
Decerto que, no processo de formação do caráter, este tende a se cristalizar a partir de certa idade, adquirindo a força de uma segunda natureza. Mas, não haveria na aflição do velho Honório algo que contradiz sua vileza, um quê de bondade que já consiste numa modificação? Ou seu fim, melancólico como um soluço, seria apenas a intensificação do seu modus vivendi pregresso? Pois seu isolamento – interpretariam alguns –, antes emocional, tornou-se também físico, e sua agressividade, menos viril do que sádica, espraiou-se a ponto de envolvê-lo como vítima, de voltar-se contra ele próprio, fazendo-o abandonar sua fazenda aos calangos e carrapichos. E quanto ao resquício de bonomia, isso subsiste em todos nós, inclusive nos sociopatas (definitivame nte, anjos e demônios não existem).

Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 30/01/2011.


                               No Velho Oeste (e sem armas)

Pedro Salgueiro especial para O POVO


Estamos ainda na segunda quinzena de janeiro e já temos o triste (louco, medonho, surreal) número de 114 mortos na cidade este ano (por enquanto, pois não vi os últimos noticiários). E não estamos em guerra civil (dizem), vivemos tempos de “paz”. Mas comparem nossa estatística de número de mortos com a de qualquer conflito armado mundo afora anunciado fartamente pelos meios de comunicação e verão que tal afirmativa é absurdamente falsa. Estamos em guerra, sim!!!! Guerra braba, descontrolada, cruel e injusta, pois quem tem mais grana para se proteger consegue ir escapando.

Vivo num bairro de classe média, remediada, de senhoras católicas, de artistas, funcionários públicos, estudantes: uma Gentilândia praticamente sitiada! Entregue à marginalidade da pobreza, da droga (que irmandade cruel essa entre o estudante universitário que divide um baseado com o louquinho da Marechal), do conluio entre a incompetência e o descaso de nossos três podres poderes.

Nosso minúsculo reino está condensado na democrática Praça da Gentilândia, onde o craque que outrora despontava no campinho entre mangueiras hoje é outro, cruel e sem possibilidade de gol. Ali, bem do ladinho, senhores e senhoras de preto pregam o fim de tudo, de todas nossas esperanças, e já quase anunciam o final do mundo. Em surdina preparam o golpe fatal: os velhos líderes (que um dia foram sonhadores jovens no Araguaia) organizam seus messiânicos seguidores para um ritual de suicídio coletivo que se realizará em breve na estação Benfica de nosso demoradíssimo metrô.

Enquanto isso, nossos meninos descem da Brasília, do Jardim América, dos mil buracos da Marechal e socializam na marra nossas parcas “riquezas”.

Enquanto isso, motoqueiros assassinos campeiam e matam nossos Eunucos e Eulinos.

Enquanto isso, nossos estudantes gazeiam aulas, fazem sinais de fumaça e perguntam (ou retornam?) ao pó.

E para nos proteger apenas o nosso Chapolim Colorado (de arco, cachaça e flecha), o índio Pelezinho.

E algumas piedosas senhorinhas, que preparam já as novenas de maio, quando Nossa Senhora (entre cânticos) peregrinará, de casa em casa, quase todo o bairro.

No lugar da hóstia o bolo de macaxeira, e do vinho, o copinho de Aluá.


                                            EXOANIMAL

Carlos Nóbrega

O homem bebe marcas.
Só encontra sustância nos símbolos.
Seu membro mais forte, uma arma.
O homem é gêmeo das máquinas.
E quando o homem acasala
direitos são reservados:
O homem é o museu da vida.
E se há muito é um ex-animal,
pois eis o ex-animal
ainda em estado de pupa:
Todo coberto de culpa
se sonha, sonha-se anjo
Esperando ter asas no Céu.