Ciência e ignorância
Certa noite, no Café da Bebel, estávamos eu e Augusto Pontes a degustar licores quando uma moça sentou-se à nossa mesa. Era psicanalista da escola lacaniana, e como, apesar de leigo, interessava-me por Freud, a conversa deslanchou. Ao ouvir meus comentários sobre conceitos tidos como avançados – nó borromeu, sinthome… –, quis saber qual minha formação acadêmica. “Apenas bacharel em Direito”, respondi. Ela, então, caiu na risada e disse: “Esses advogados são muito metidos.” Senti-me um sofista achincalhado por Sócrates. Augusto, porém, que nos deixou tiradas geniais, assim interveio a meu favor: “Amiga, todas as ciências são metidas umas com as outras.”
Realmente, com a descoberta de que a maioria dos sistemas físicos, químicos, biológicos e sociais compartilha uma característica fundamental, a não-linearidade (i.e., seus comportamentos, longe de serem “newtonianos” – simples, sem surpresas – tendem, em médio ou longo prazo, a se tornarem complexos ao ponto da imprevisibilidade), por este fato a ciência busca, hoje, sob os auspícios da matemática do caos, uma teoria interdisciplinar que a tire deste xeque. Pioneiros deste empreendimento são o físico Ilya Prigogine e, nas ciências humanas, Edgar Morin.
Tal “teoria da complexidade”, interface que acentua a interdependência dos saberes e corrobora a ideia do mundo como totalidade estruturada, constitui, em determinado aspecto, ponto de inflexão na história do conhecimento científico. Pois a ciência moderna, dado seu caráter analítico, para se firmar teve que, primeiro, haver-se com certa visão sintética, de cunho místico, segundo a qual não se pode conhecer as partes sem antes conhecer o todo. Do confronto com esse “holismo” surgiu o “atomismo” positivista: a noção de que o universo da experiência nada mais é que uma “soma” de fatos. Demais, à medida que se desenvolvia, a “Ciência” foi se dividindo em “ciências”, em estudos especializados cada vez mais autônomos — bifurcação contínua que catalisou o desenvolvimento. E vice-versa. O resultado desse processo, vislumbrei-o naquela noite, caricaturalmente estampado na gargalhada da lacaniana (uma expressão do que Ortega y Gasset denominou “barbarismo da especialização”).
Em miúdos: o volume atual do conhecimento científico é tamanho que se tornou virtualmente impossível a qualquer indivíduo, em seu curto tempo de vida, absorver sequer parte significativa dele. E quanto maior o conjunto, menor – em termos relativos – a quantidade assimilável pela mente particular. Sim, estamos diante de um quase-paradoxo: o aumento progressivo da ignorância dos “homens” em relação ao crescente saber da “Humanidade”.
Quanto à ultrafragmentação da ciência, esta gerou um tipo humano que é o antípoda do intelectual enciclopédico da Renascença. Cai-lhe bem o nome com o qual o filósofo Lucien Goldmann batizou-o: “analfabeto diplomado”. À guisa de ilustração, cito o caso – hipotético – do odontólogo com pós-doutorado em dente siso esquerdo da arcada superior, mas que, como Sargão I da Acádia, pensa que o Universo é uma tenda — referido rei autoproclamou-se “senhor dos quatro cantos da Terra” (Ai! Espero que meu dentista não leia esta crônica).
Digo, ainda, sobre muitos desses doutores, que, aferrados à sua subespecialização científica, não só perderam de vista a unidade do conhecimento: perderam-lhe também o senso. Orgulhosos macacos-no-seu-galho, “denominam diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber” (O. Y Gasset), e rechaçam com violência qualquer “palpiteiro”, seja ele quem for que tente se imiscuir em sua área de estudo.
Segundo o jurista Pontes de Miranda, “quem só Direito sabe nem Direito sabe.” Esta asserção é válida, mutatis mutandis, para todos os especialistas.
Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.
Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 27/02/2011