Liberalismo?
O Liberalismo, doutrina iluminista, prima pela defesa das liberdades individuais. Em seu mythus (lockeano) do contrato social jazem explícitas as ideias do indivíduo não como meio, mas como fim em si mesmo; da sociedade a serviço dos homens considerados um a um – e não como serva da Humanidade abstrata, do engrandecimento da pátria… –; da liberdade do outro como limite à minha liberdade.
É senso comum a opinião de que existe laço inextrincável entre liberalismo e capitalismo, quase como se fossem irmãos xifópagos. Falsa, esta pré-noção, e digo por quê.
O termo “capitalismo”, como indicam o lexema, o sufixo e, também, seu uso acadêmico, designa uma formação econômico-social subordinada ao critério da máxima lucratividade ou, nas palavras de Geoffrey Kay, “da busca irracional da quantidade pura” (lembro que a definição de capital é “dinheiro que gera dinheiro indefinidamente”). Ora, em tal sistema literalmente “de coisas” o homem não é fim, porém “instrumento” da acumulação pela acumulação: como trabalhador que aluga a si próprio, uma mercadoria entre mercadorias; como consumidor, suas demandas só contam quando, monetariamente solvíveis, “servem” para realizar lucros. Liberdade? Até os donos do capital não passam de joguetes das forças pseudonaturais do mercado — de fato, como apontou Max Weber, o capitalista é impelido a acumular menos por ganância e vontade de poder do que pela reles necessidade de sobrevivência: “Quem não adaptar sua maneira de vida às condições de sucesso capitalista” – escreveu o sociólogo em A ética protestante… – “é sobrepujado.”
Sim, o capitalismo, por definição, é iliberal. Há, entretanto – dou meu braço a torcer –, apologistas do livre-cambismo que, por boa-fé, também são liberais genuínos. A título de exemplo, cito Milton Friedman: Papa da Escola de Chicago, defendia a regulamentação da profissão de prostituta e a legalização das drogas (lembro que o liberalismo propugna que o Estado não deve imiscuir-se na escolha das pessoas, a não ser que por si atente contra a integridade e liberdade alheias).
Quanto à proibição dos narcóticos, o que a mantém? Decerto que seitas cristãs, que não querem competir com outros ópios, contribuem para isso. Há, porém, motivo mais forte: sendo o Estado mínimo o sindicato do Homo œconomicus, é função sua zelar pela peça fundamental da máquina de gerar dinheiro, promover a reprodução ampliada da mercadoria mais preciosa, a única que produz outras mercadorias: o homem-coisa. Ora, as substâncias psicoativas podem tornar a força de trabalho pouco produtiva “do pont o de vista do capital.” (A propósito, enquanto o hidrocloreto de cocaína – pó – era artigo de luxo, não havia restrição ao seu uso. A proscrição só se deu quando, barateado, tornou-se acessível aos baixos estratos da população.)
Nos EUA, em meados da década de 1960, o movimento da contracultura, com seu estilo de vida “sexo, droga e rock’n roll”, protestava pelos direitos civis e contra a intervenção armada no Vietnã. Foi nesse contexto que Nixon declarou guerra às drogas com perspectiva, inclusive, de estendê-la às fontes de suprimento, isto é, América Latina e Ásia. Óbvio que o alvo real dessa política era a turma, contestadora, do “paz e amor” e do “é proibido proibir”. Os motivos geopolíticos também me parecem cl aros.
Demais, lucrativa é a guerra contra as drogas. Pois, iliberais com os narcóticos, os EUA são libertinos com o comércio de armas — hoje, o palco mais sangrento dessa guerra é a fronteira daquele país com o México, ao longo da qual existem 7.000 lojas autorizadas a vender rifles & Cia.
A questão das drogas é complexa. Bons argumentos partem de proibicionistas e legalistas. O que não calha é o discurso do “missionário do bem”: pôr no saco dos imorais o traficante-profissional e o traficante-usuário, o usuário bandido e o doente, Charles Manson e Janis Joplin.
Manuel Soares Bulcão Neto, ensaísta.
Crônica publicada (com alguns cortes do autor) no jornal Diário do Nordeste, em 13/02/2011.
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