Quando o Amor é de Graça XV: Palavras Mortas
Raymundo Netto para O POVO
Piaf
Um dia aconteceu de a manhã anoitecer.
Na mente muda de pensamentos, apenas estrelas calçavam ideias.
Estas não me diziam nada, nem hálito ou hiato de luz, nada!
Pus-me na condição de pensador: à coxa, o cotovelo; o punho, como um Atlas, sustentava, acima do queixo, o grande cogumelo de Hiroshima e tudo mais que me restava.
Ouvia, como ao longe, a marcha de “Je ne regrette rien”, estivesse ela tão perto, tão perto, de pôr unhaduras no coração.
Perdeu-me o tempo nos lábios das palavras a lançar perfumes de se ouvir em pupilas.
“Non... je ne regrette rien/ Ni le bien qu'on ma fait/ Ni le mal - tout ça m'est bien égal!”
***
Ante manhã tão original, escandalizavam-se as vontades desapropriadas de si.
(AR) Risquei uma lua no céu e ela estava lá: fria como uma pedra de gelo; branca como uma nódoa de esquecimento. “Je me fous du passé!”
***
Enquanto pintava em verso o intervalo de Deus, meu espírito esmolava uma ou outra palavrinha esmorecida tão logo a desmanchar-se perdida num infinito vialático do amanhã ser.
Olhei novamente para cima, pelas frinchas do nubiloso céu, nem sequer bandalhos.
A pele adormentava o desejo enquanto a mente construía mosaicos ligeiros, recortes que são como hastes de sobrevivência para mim.
Centenas de relógios em mostradores brancos despertavam como sonhos que não podem ser descritos.
Entre muros, à calçada, a palavra rouca mal se ouvia.
Sentia, novamente das letras daninhas, o desejo de um fim que nem começara.
De repente, o velho rangido por detrás da parede a acompanhar a velha história que se esgotou aparecia novamente a dizer-me os passos, a pegar-me a mão cega, a espremer-lhe o dom.
Espalhava-se a febre que não ardia, o bafejo do falto de tempo num miasma de solidão.
Escrever era ulcerar-se em latejo, na terra sem piso, um amor descabido e roto bandeirante ao célebre mastro imanifesto.
Vali-me da ternura linda de dois rostos pequenos sempre a apaziguar meu coração e a torcer-me na vida. Gravei uma a uma das palavras inumadas, enquanto me enchia de vazios.
Abriram-se os umbrais azuis do horizonte. As palavras, em esquifes enfileiradas, vinham em andores de flandres, sustentados por anjos. Os demônios regicidas, logo atrás, compunham a bandinha a marcar o rasto desta vida.
Tomada pela sede e pela fome, minha alma os engolia, quase liberta de mágoas, tristezas e arrependimentos, abraçando do funeral a voz roufenha de um cânone sonoro:
“Balayé les amours/Avec leurs trémolos/Balayés pour toujours/Je repars à zéro”.*
raymundo.netto@uol.com.br
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