SR.VERSO
Por Silas Falcão, no IV Seminário Revelando a Literatura Cearense com o tema Silêncios e Vozes do Poeta Francisco Carvalho, realizado no teatro Emiliano Queiroz – SESC -, nos dias 21-22/05.
Ele não está na mídia. Permanece distante das festas literárias. Ele prefere a reclusão, a “solidão” de sua biblioteca, redescobrindo novas artes de cantar a vida, de elevar a alma. Poetas assim não formam uma população no universo literário. Francisco Carvalho, fala mansa, timidez assumida, faz questão de se manter afastado das igrejinhas literárias, das noites de autógrafos em clubes sociais e, em silêncio, realiza uma das mais sólidas obras poéticas do nosso país. Atentem para essas declarações do próprio poeta: “não faço questão de aparecer; a timidez faz parte de minha personalidade, sempre assumi uma posição mais reservada. Tenho certo pudor, certa preocupação de não me envolver com grupos; no meio literário há muitas vaidades”. Francisco Carvalho, mantendo-se à margem da confraria do elogio mútuo, não soma lenhas na grande fogueira das vaidades.
Com a publicação de um folheto de cordel sobre a seca no Ceará, Francisco Carvalho se inicia na poesia. Os anos eram 0 décimo quinto da sua existência. Esse cordel ressoava a influência dos cantadores de viola, cantadores ambulantes. Era natural que assim ele começasse.
Em minhas pesquisas/leituras para evoluir esta biografia afetiva do poeta da simplicidade grandiosa, assentei nestas páginas uma entrevista de 9 de abril de 1988, quando lhe é perguntado qual o papel da poesia: “é um instrumento de paz e solidariedade entre as pessoas. Assim como você ouve música para se apaziguar, você lê poesia. É sempre um instrumento de enriquecimento. Quando leio um grande poema sinto uma alegria interior inexplicável. A poesia deve emocionar. E se alguém se emociona lendo um bom texto, então está justificada a poesia”. E Francisco Carvalho emociona com sua produção poética, pela qual manifesta sua preocupação com a realidade social e a possibilidade de sua transformação. Ele poetiza as suas inquietudes metafísicas, a família, a terra, o amor, as mazelas sociais e a sua infância permanente, de quem declara “ser a pátria dos poetas, a matriz das nossas sensações, dos nossos alumbramentos, da nossa magia”.
Poeta de fôlego montanhoso, Francisco Carvalho transforma um acontecimento aparentemente corriqueiro ou um simples objeto em pura poesia, como se observa em MESA DE JACARANDÁ:
Nesta mesa de jacarandá
Já houve muita paz
O vinho já acendeu corações
Taças já entoaram
seus cânticos de cristais”.
Justificando a mesa deste poema, o poeta explica: “Éramos pobres, modestos agricultores. Nossa mesa era de imburana. Madeira comum no Nordeste brasileiro. Jacarandá, madeira nobre, só existe na Amazônia e em outras regiões privilegiadas. A mesa de jacarandá do poema vai por conta da imaginação poética. Afinal de contas, o sonho é a matéria-prima da poesia”.
Em 1939, ano da morte do seu pai, Francisco Carvalho, nascido em Russas em 11 de junho de 1927, após realizar estudos iniciais no Ateneu São Bernardo, de Russas, busca em Fortaleza outras imagens, inéditos burburinhos e espaços mais vivos se contrapondo aos clichês do cotidiano urbano da sua cidade natal, trazendo definitivamente para estas terras de Iracema, um poeta adolescente querendo se expandir, se aperfeiçoar, conquistar a sua singularidade poética através dos seus recursos verbais, pois como afirmou Mallarmé: “Não é com ideia que se faz versos, mas com palavras”.
Certa vez, falando sobre as origens da sua construção poética, Francisco Carvalho declarou: “Sem indignação não se produz boa literatura. Ninguém escreve de bem com a vida, com lugar no céu”. Na multidão poética que compõe a obra de Francisco Carvalho, existem épocas dolorosas, como as registradas em VERSOS AO PAI, quando este agonizou seis meses antecendentes a sua morte:
Volto a ser o menino que segurava o teu braço
pelas ruas de uma cidade vazia.
Só a manada dos ventos dialogava com
as aldravas que restaram de antigos invernos
e ríspidos estios de pássaros e nuvens
que se acasalavam no ar.
À morte, essa grandeza tenebrosa
com sua grinalda de espanto na cabeça,
já se desenhava em teu corpo
com suas teias de escárnio e seu odor de matéria que se decompõe
ao gargalhar das mortalhas dançarinas.
Expulsando-se da gargalhada das mortalhas dançarinas, o poeta pulveriza na sua escritura poética a esperança em uma nova estrutura espiritual para o homem, manifestada na poesia CANTO PARA A DIMENSÃO DO HOMEM:
Um homem é o que se atira à posse das estrelas
por serem do alto e puras.
O que se identifica pela chama
do seu amor às outras criaturas.
Um homem é o que acende a sua brasa
para aquecer o sono do vizinho.
O que põe o seu olho à escuta
da oculta beleza que mora no mundo.
Este é o canto do poeta preocupado com a grandeza humanística das pessoas.
Filho de Clicério Leite de Carvalho e Maria Helena de Carvalho, Francisco Carvalho é um poeta que assume o papel de ser o interlocutor, o intérprete dos nossos anseios, dos nossos descontentamentos, das nossas fragilidades também simbolizadas na figura dos heróis. Necessitando manifestar a nulidade dos heróis, o poeta escreveu
NÓS, NÓS NÃO TEMOS HERÓIS:
Nós, nós não temos heróis
nem jamais os tivemos.
Afinal, para que servem os heróis e suas estátuas de granito ou mármore negro, seus cavalos de bronze, suas medalhas barrocas e as espadas que não passam de metáforas?
Para que servem os heróis se o ácido da chuva desdenha da glória dos homens e nem os pássaros se importam com eles?
Para que servem os heróis se o ácido da chuva desdenha da glória dos homens e nem os pássaros se importam com eles?
Para que servem os heróis se nem sabem quem somos nem jamais ouviram falar dos nossos mitos e utopias?
Infeliz do país que necessita de heróis
Na página literária d’O Povo de 27 de abril de 1987, encontrei a belíssima e trepidante poesia ROSA DA PEDRA:
Vi uma rosa nascer da pedra
Beleza ardente
Como a de um ser soprado pela boca de um deus
Vi uma rosa nascer da pedra
Pisada pela multidão
Uma rosa irrigada pelo sangue da síntese
Vi uma rosa nascer da pedra
Tamanha vida
Tamanho o impulso de ressurreição.
Na manhã do segundo domingo deste santo mês das mães, empunhando uma longa cerveja nevada, eu escutava atentamente João Cabral de Mello Neto declarar n’O curso do poeta, vídeo do distante ano de 1973: “Não pretendo fazer poesia lisa, macia como um carro deslizando no asfalto regular. Quero fazer uma poesia trepidante, de estrada de carroçal que faz o passageiro tremer aos solavancos. Quero fazer uma poesia que crie catarse”. A poética, com ritmo e planejamento, de Francisco Carvalho nos impõe seguidos solavancos a nossa alma.
No dia 24 de abril de 2012, o poeta Batista de Lima, cronista semanal do DN, publicou a II parte do ensaio A Pastoral Poética de Francisco de Carvalho, onde afirma: “Mesmo que esse filho de Russas pregue que seus poemas são menores e que todos morrerão consigo, não será morte com enterro final. Cada leitor disputará a alça desse esquife em busca de um sepultamento que nunca ocorrerá”. Retorno a outra leitura que fiz no jornal O Povo de 6 de março de 1964, em que uma nota do editorial anuncia: “Não faz muito tempo, o poeta Francisco Carvalho surpreendeu os meios literários cearenses com uma grave decisão de abandonar, em caráter definitivo, as suas atividades literárias. E apresentava uma estranha justificativa, com a qual não concordaram quantos conhecem a sua poesia. Disse que chega a conclusão de que realiza uma obra medíocre”.
Mas não foi assim que pensou a crítica literária nacional em 1982, quando o livro Quadrante Solar venceu o I Prêmio Nestlé de Literatura. Nem quando, em 1997, com Girassóis de Barro, Francisco Carvalho obteve o Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Outro reconhecimento cearense foi o seu ingresso na Academia Cearense de Letras, onde ocupa a cadeira 31.
As angústias velhas e novas, os acontecimentos corriqueiros, as saudades intermitentes do pai, dos sobrados e casarões de sua terra. Outros calendários do passado como a recordação do tempo em que o adolescente Francisco Carvalho trabalhava numa bodega de subúrbio poluído e melancólico desta capital, fato este que motivou a crônica O poeta e a bodega, de 6 de março de 1962, do jornalista Deusdete de Sousa. Houve outras bodegas em que Francisco Carvalho amarga experiência de garçom num restaurante noturno da periferia da cidade, onde o dono era míope e tocava violino fanhoso que maltratava a alma do poeta, que recebia de salário apenas um bilhete azul e alguns conselhos para melhor ser sucedido na vida. Não posso esquecer nesta biografia a atitude humanista do então Magnífico Reitor Antonio Martins Filho resgatando o poeta de uma esquelética empresa comercial e levando-o para assessorá-lo na reitoria da UFC, onde permaneceu por trinta e nove anos. Todos esses fatos e outras memórias voluntárias e involuntárias que não fogem das raízes do poeta Francisco Carvalho, e tantos outros passados pesquisados/lidos por mim em livros e ausentes desta biografia por determinação do tempo para cada palestrante deste Seminário, são responsáveis pela construção de um longo e qualificado projeto literário iniciado em 1942 e dedicado inteiramente a poesia nas suas mais diversas formas de expressão.
Distribuo para vossos ouvidos a leitura de um fato na vida do poeta Olavo Bilac. O dono de um pequeno comércio, amigo do poeta, abordou-o na rua: - Bilac, estou precisando vender o meu sítio, que você tão bem conhece. Poderá redigir o anúncio para o jornal? Olavo Bilac escreveu: "Vende-se uma encantadora propriedade, onde os pássaros cantam ao amanhecer no extenso arvoredo, cortada por cristalinas e mareantes águas de um ribeiro. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes, na varanda." Meses depois se reencontraram. O poeta perguntou se o amigo havia vendido o sítio. “- Nem pense mais nisso. Quando li o anúncio foi que percebi a maravilha que tinha”.
Eis a função do poeta: revelar a beleza escondida nas coisas, nos lugares e nas pessoas!
Para Francisco Carvalho a poesia é a sua pele.
“Encerro” esta biografia afetiva intitulada Sr. Verso, com o depoimento de outro titã da nossa literatura, o saudoso José Alcides Pinto: “A poesia de Francisco Carvalho é patrimônio da humanidade. No entanto, esta humanidade vive em débito com o poeta Francisco Carvalho”.
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